Há um navio com pavilhão português que transporta material explosivo e que tem como destino final dois países do Adriático. Depois, será encaminhado para três fábricas de armamento, uma na Polónia, outra na Eslováquia e outra em Israel.
Quem o revelou foi o ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, numa entrevista ao Público e à Rádio Renascença.
Mas a história não começou aqui. Como surgiu a discussão sobre o tema?
A 28 de agosto, o Bloco de Esquerda questionou o Governo sobre a suspeita de que um navio com bandeira portuguesa estaria a transportar armas para Israel e, depois desta denúncia, o ministro dos Negócios Estrangeiros esclareceu no dia seguinte que o navio, que transporta explosivos, tem pavilhão português mas é alemão e “não vai para Israel”.
Na sequência desta resposta, o BE lançou uma petição — que já conta com 2.500 assinaturas — para que o governo português "retire a bandeira portuguesa deste navio, anulando a sua inscrição no registo internacional da Madeira" e "exija a devolução à procedência [Vietnam] da carga criminosa contida no navio Kathrin", alegando que este "transporte é ilegal à luz da lei portuguesa".
"O cargueiro Kathrin está inscrito no Registo Internacional de navios da Madeira, o que faz de Portugal cúmplice das atrocidades e crimes da ocupação israelita", considera o partido.
O BE refere que o Governo da Namíbia impediu que aquele cargueiro atracasse nos portos do país e que "as autoridades namibianas informaram que este navio transporta oito contentores de explosivos Hexogen/RDX e 60 contentores de TNT, que deverão ser descarregados em Koper, na Eslovénia, com destino a Israel".
"O RDX é um componente chave nas bombas e mísseis de Israel que massacram e mutilam dezenas de milhares de palestinianos em Gaza. Cerca de metade destas vítimas, até hoje, são crianças", lê-se no texto da petição.
Dias depois, o BE anunciou que quer ouvir com urgência o ministro dos Negócios Estrangeiros no parlamento, o que vai acontecer a 15 de outubro.
Que material é transportado pelo navio?
O barco transporta "material de duplo uso, ou seja, pode ser utilizado para armamento, pode ser utilizado para, por exemplo, construção em obras públicas, túneis, pedreiras, etc., portanto é um material explosivo, mas de facto as empresas que são o destino final todas elas fabricam armamento – sobre isso não há dúvidas –, embora com uma cláusula que exclui as armas de destruição maciça", referiu hoje o ministro.
O governo vai retirar o pavilhão português ao navio?
Segundo Paulo Rangel, esta é uma matéria "jurídica complexa" e o governo ainda não tomou qualquer decisão sobre a eventual retirada do pavilhão português ao navio.
"Estamos neste momento ainda a analisar a situação e estamos em contacto com as autoridades, portanto, ao contrário do que se pensa, Portugal não está parado", garantiu.
"Estamos em consultas, em termos de circulação deste barco. Em termos jurídicos, em termos de direito internacional, ao contrário do que dizem certas plataformas, não há um risco real nem um risco sério, que é aquilo que seria exigível para esse efeito", acrescentou.
Confrontado com a possibilidade de retirar a bandeira portuguesa ao navio, Rangel reforçou que "nenhum Governo em Portugal teve até agora a atitude que este Governo teve", ou seja, "proibir a exportação de armas para Israel".
"Vejo partidos que defendem o reconhecimento da Palestina, mas quando tiveram poder efectivo nunca contribuíram para isso, em 2015 e até em 2022", lembrou.
Além disso, o barco "não vai para Israel" — e "não carrega armamento, carrega material de duplo uso".
O BE já reagiu a esta entrevista?
O BE alertou hoje para o risco de Portugal violar o direito internacional ao ter uma bandeira nacional num navio que transporta material para fabricar armas em Israel.
"Portugal não pode ser cúmplice deste crime, não pode ser cúmplice do genocídio, e é o que está a fazer e é do que poderá ser acusado caso não retire a bandeira do navio português", alertou Mariana Mortágua, em declarações aos jornalistas, na Assembleia da República.
A bloquista afirmou que, apesar de Paulo Rangel confirmar a informação para a qual o partido já tinha alertado, "dá a entender que o governo português nada fará para travar este carregamento de armamento".
"Esta passividade por parte do governo português implica uma violação das convenções que Portugal assina e subscreve de prevenção de genocídio, bem como de todas as determinações da Justiça Internacional relativamente ao risco de genocídio na Palestina pelo governo israelita e pelo exército de Israel", avisou.
A coordenadora do BE defendeu que a retirada da bandeira "é uma decisão política e legal" e avisou que Portugal "está em incumprimento ou pode estar em incumprimento da lei internacional ao permitir esta cumplicidade com o genocídio".
"Não há qualquer justificação à luz do direito internacional e dos direitos humanos para a não retirada da bandeira e qualquer desculpa não passa disso mesmo", considerou.
A bloquista defendeu ainda que "é tão cúmplice quem sabe quem envia as bombas, como quem envia os materiais que fazem as bombas".
"Acho que devíamos exigir ao governo português menos desculpas, menos hesitações, menos cobardia, menos hipocrisia na sua ação, mais respeito pelo direito internacional, mais respeito pelos direitos humanos, mais respeito pelas vidas daqueles que estão a morrer aos milhares na Palestina e, já agora, mais respeito pelas convenções da Organização das Nações Unidas (ONU), pelo secretário-geral da ONU [António Guterres] e por todos aqueles que têm defendido os direitos palestinianos neste massacre", defendeu.
Sobre a audição no parlamento, os bloquistas querem que o governante explique “porque é que desvalorizou, porque é que disse que não havia armas, porque é que disse que não eram para Israel e depois porque é que vem confirmar a informação que foi divulgada em primeira instância”.
“O governo português tem que ser confrontado com a possibilidade de Portugal ser levado a tribunal internacional por cumplicidade com o genocídio. É grave, a situação em que o governo português está a colocar o país é grave, Portugal pode ser confrontado com cumplicidade por genocídio e essa é uma mancha que nós não queremos no nosso país, não em nosso nome certamente”, afirmou.
Também o PCP se manifestou sobre o sucedido. O secretário-geral do partido, Paulo Raimundo, diz já não “aguentar a hipocrisia” do governo sobre o conflito na Palesitna, acusando o ministro Paulo Rangel de uma “manobra” sobre o caso da bandeira nacional no navio.
“O importante é agir em conformidade com isso, não basta reconhecer. De que é que nos vale o reconhecimento? Qual é a ação? Qual é a medida concreta? O que é que vai impedir? Não vale a pena dizer que vai trocar a bandeira”, acrescentou.
O secretário-geral do PCP insistiu na necessidade de o governo português fazer o que “a Constituição obriga” e “fazer de tudo para o caminho da paz” e um cessar-fogo na Palestina.
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