Há muitos santos nos altares, e outros tantos aspirantes numa fila de espera que envolve grande burocracia e estudo — processos que só podem ser montados cinco anos após a morte do “candidato a santo”, salvo indicação direta do Santo Padre. Miguel de Salis Amaral é padre, vive em Roma e dá aulas de Teologia na Universidade Pontifícia da Santa Cruz, e é consultor teólogo do Promotor da Fé, no Vaticano. Ou seja, ajuda a analisar os processos de quem pode vir a ser beatificado e canonizado.
Feitas as apresentações, é preciso perceber quem é este português e como chegou ao Vaticano — um engenheiro de formação e padre por vocação. Quanto à decisão do sacerdócio, compara-a ao salto para uma piscina: “primeiro é preciso ver se tem água”, diz ao SAPO24.
“Há um processo de oração [antes da decisão]. Eu estava a dar aulas na FEUP [Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto] e um dia, depois de já ter pensado um bocado no assunto, recebi um recado do prelado [Bispo] do Opus Dei a dizer ‘olhe, tenho aqui um lugar em Roma, se quiser, para estudar Teologia’. Eu já tinha pensado em ser padre, era uma coisa que já tinha partilhado com o prelado”, contou. Por isso, o convite para estudar Teologia não surgiu do nada. E salienta: está é "uma decisão que deve ser tomada muito livremente. Deus também deixa tudo muito livre e [comigo] foi assim”.
Esta foi a primeira de muitas decisões. Analisar processos de beatificação e canonização não é tarefa fácil: são investigações morosas, detalhadas e cuidadas. Atestar que uma pessoa participa da santidade também não pode ser um salto para o vazio. Por isso, existe o Advogado do Diabo, o Promotor da Fé, que garante que todas as informações sobre o candidato a santo foram esmiuçadas, de modo a não existirem erros ou pontas soltas, rodeando-se de vários consultores teólogos, entre os quais o Pe. Salis Amaral, que explica como tudo se processa.
No início há apenas a fama de santidade
Habitualmente, quem “está mais próximo da pessoa pode detetar que esta é excecional e tem um maior contacto com Deus”, começa por dizer. “Às vezes são experiências que se partilham na família, com os amigos. ‘Olha, conheci aquele padre que é excecional, se calhar vai lá ver’. E são o tipo de fenómenos que começam a atrair, a atrair, a atrair. E quem diz um padre, diz outro cristão. E isto, pouco a pouco, vai gerando uma perceção de que há ali mais qualquer coisa. Qualquer coisa que não é ‘mafiosa', é qualquer coisa ‘sobrenatural’", diz.
Depois, "isto chega aos ouvidos do Bispo, normalmente depois da morte [do candidato]. Por exemplo, às vezes as pessoas vão rezar ao túmulo dessa pessoa, põem flores, vê-se que é um túmulo muito visitado. Como no caso do Padre Américo, no Porto, e do Padre Cruz, em Lisboa. Uma pessoa vai ao jazigo em Benfica e vê-se que ali há esse mais qualquer coisa. Mas ainda não é santo. Penso que ainda há pessoas vivas que o conheceram. Com a Jacinta e o Francisco, antes da canonização que vivemos [em maio de 2017], aconteceu a mesma coisa. Havia esta perceção. É o que se chama a fama de santidade”, explica.
E esta fama vai correndo de boca em boca. “É uma coisa que funciona naturalmente. (...) Depois, vê-se que as pessoas rezam e que começa a haver favores — as pessoas rezam a pedir um favor: 'cura ou pede a Deus que cure a minha sobrinha, a minha filha’. E aquela pessoa fica curada e vai-se agradecer”, acrescenta.
Quando a fama de santidade é grande, é pedido ao Bispo que abra "a causa” na Diocese em que a pessoa morreu — se corresponder ao local onde esteve mais tempo, porque “as testemunhas estão todas aí”. “Abrir a causa é como um processo [judicial], como podia ser num tribunal qualquer. É uma investigação sobre se aquela pessoa de facto viveu perto de Cristo, unida, amiga de Cristo. Uma pessoa que tem as virtudes naquilo a que se chama um grau heroico. É o excecional”.
O passo seguinte é a documentação. Mas cada caso é um caso, e nem sempre está dependente da notoriedade ou exposição pública da pessoa. “Até pode ser mais fácil montar o processo, por exemplo, de uma freira que viveu num convento, que entrou jovenzinha e morreu com 25, 30 anos. O arco das pessoas com quem ela conviveu é muito pequeno, vai ser muito fácil fazer os interrogatórios, recolher a documentação, porque ela não se mexeu muito; esteve naquele convento. Com um político ou um pastor da Igreja muito conhecido, que viajou, que esteve aqui e ali, que passou por trinta por uma linha e se saiu bem, há mais material para recolher, e portanto é preciso ouvir mais pessoas que possam dizer: ‘ele de facto viveu muito bem a fé, a esperança e a caridade, foi uma pessoa justa, prudente, forte, temperante’. Pergunta-se a cada um: ‘olhe, mas diga lá, como é que ele via a fé?’. ‘Ah, ele vivia muito bem a fé’. Mas o quê que isso quer dizer em concreto? E a pessoa tem de explicar um pouco. ‘Ele era uma pessoa que rezava todos os dias. E eu lembro-me, quando acontecia alguma coisa, o primeiro pensamento dele era rezar por isso’", exemplifica o Pe. Miguel.
Ouvem-se muitos testemunhos até que o Papa faça o “decreto das virtudes heroicas”. Aí, o Santo Padre “decreta que a partir de agora já não vamos rezar mais por essa pessoa, porque já se vê que está no céu. A partir do momento em que há as virtudes heroicas, essa pessoa já não tem as missas de defuntos, já não se reza pela alma dela”.
Se estas virtudes são apontadas com base em testemunhos de terceiros, pode dizer-se que há aqui uma espécie de democratização do processo? Miguel de Salis Amaral vê isto por outro prisma. Para o consultor teólogo, “é o próprio Deus que dá este atestado. Ao dar graças [realizar favores] através daquela pessoa está a dar sinais às restantes. Está a apontar! É como se Deus fosse para lá dizer: ‘vai por aquele e vai por aquele’. Não sei se é democracia ou não, porque acho que Deus também brinca muito com os homens", graceja, acrescentando que pode ser uma forma de Deus alertar os demais de que devem prestar atenção àqueles que Lhe responderam tão bem. "A canonização não é simplesmente um atestado de que a pessoa está no céu. É também um selo de Deus que diz que esta é uma pessoa concreta que caminhou na terra, tal como Jesus Cristo caminhou com os apóstolos, e que quer que nós vejamos a sua vida porque Lhe respondeu bem”.
Tendo o decreto, falta apenas a assinatura. “O milagre é a assinatura de Deus no decreto, podemos dizer assim. Aquela pessoa rezou a esta pessoa virtuosa e pediu-lhe esta graça, e foi-lhe concedida — normalmente são questões de saúde, aquelas que medicamente se podem verificar com mais facilidade”, diz. “Pode haver [casos que não sejam médicos] mas é raríssimo. Por exemplo, havia um de um submarino, acho que era peruano. Foi uma escotilha que se abriu, estavam dentro do submarino, submergidos a não sei quantos metros de profundidade, e estava a entrar água. E foi preciso fechá-la. O problema é que fechar uma porta de um submarino a uma tal profundidade… não há uma força humana que consiga fazer isso. Eram meia dúzia de pessoas e conseguiram. Mas 99% são de coisas de saúde”, refere.
Mas, ao contrário do início do processo, este milagre não tem de ocorrer na Diocese da pessoa em questão. "Pode acontecer num sítio muito diferente. Por exemplo, o que aconteceu com a Jacinta e com o Francisco: o milagre foi no Brasil, não foi em Portugal. O primeiro, o da beatificação, foi em Portugal, mas para a canonização foi no Brasil. Não foi instruído aqui em Portugal, na Diocese de Leiria-Fátima ou em Lisboa”.
Já no que diz respeito às beatificações e canonizações, existe uma regra: as canonizações devem acontecer na Praça de São Pedro, no Vaticano, e as beatificações no local de origem da pessoa. Contudo, por vezes também existem exceções. Além dos recentes casos de Francisco e Jacinta Marto, “aconteceu com João Paulo II, que canonizou o índio Juan Diego em Guadalupe e em alguma outra situação, mas são poucas. É um gosto, é uma graça do Papa. É um regime de exceção”, diz Pe. Miguel de Salis Amaral.
O Advogado do Diabo, aquele que quer provar que a pessoa “não se portou assim tão bem”
Ouvir testemunhas que relatam aspetos da vida de quem foi indicado como santo tem os seus riscos. Como em tudo, há quem seja a favor e quem seja contra. Existem verdades e mentiras em cima da mesa, no entanto, todas as versões têm de ser ouvidas. "Ouvem-se todas as pessoas, especialmente aquelas que estão contra. É curioso, porque há uma grande seriedade neste sentido. Especialmente se há testemunhas contra e que não são tendenciosas”, refere o consultor teólogo. "Os tribunais diocesanos das canonizações, que se organizam com o Bispo, têm a obrigação de verificar [tudo o que é dito]. Normalmente, faz-se um edital para ver se alguém tem alguma coisa a dizer contra. Como se faz para os casamentos. Nas paróquias põe-se um papel que diz ‘o Manel quer casar com a Joana. Se alguém tem alguma coisa em contra, faz favor de vir aqui à paróquia dizer’. A mesma coisa para a santidade. Abriu-se o processo para a canonização desta pessoa, quem tiver algo a dizer, tanto positivo como negativo, venha falar”, explica.
É precisamente para pesar estes aspetos menos positivos que existe o Promotor da Fé, comummente chamado Advogado do Diabo. “É a pessoa que tem de verificar todos estes processos. Diz-se que é o Advogado do Diabo porque quer mostrar que aquela pessoa não se comportou bem. Normalmente, o nível de santidade que se pede é a plenitude das virtudes, é igual para todos. Mas cada pessoa vive da sua forma. E há muitas formas de viver a caridade”.
A santidade, essa, tem muito que se lhe diga. Quem é santo? Quem não é? “Só Deus é santo. Penso que às vezes é uma frase que se diz e nós pensamos ‘sim, está bem, mas o quê que isso quer dizer?’. Quer dizer que só Deus é fonte de santidade, só Deus é totalmente santo. Deus é a santidade. Os outros participam da santidade: têm um bocadinho mais, um bocadinho menos; quanto mais próximos estão de Deus mais têm, quanto mais longe estão de Deus menos santidade têm”, explica Pe. Miguel de Salis Amaral.
Há, portanto, o fator proximidade — ou capacidade — a ter em conta em cada caso. “Jesus disse que no céu há muitas moradas. E ao dizer que há muitas moradas, quer dizer que alguns estarão mais aqui e outros mais acolá. Não sabemos muito bem onde, mas obviamente estão todos no céu. E alguns têm um recipiente maior, outros menor, mas todos os recipientes vão estar cheios. (...) Há plenitude em todos. O que acontece é que um tem menos capacidade, mas está cheio nessa capacidade que tem. Neste sentido, podemos falar de diversos graus de santidade”.
Normalmente tidas como “extraordinárias na fé”, as pessoas que sobem aos altares também são comuns no dia-a-dia. “Pessoas doentes podem ser santos. Isto também pode acontecer com alguém que passa por uma depressão ou por um desgosto muito profundo. Também esse pode ser santo. O Papa João Paulo II promoveu várias vezes a santidade de pessoas que eram mais recentes [na História], pessoas que ainda conhecemos. Isto aconteceu no pontificado do Papa João Paulo II, mas também com o Papa Emérito Bento XVI e com o atual Papa Francisco. Às vezes há santos mais antigos, de há 500 anos ou mais, mas há outros, muitos, que são recentes, e portanto podemos conhecê-los e saber coisas como: ‘ah, era do Benfica como eu, ou era do Sporting’.
Depois de Francisco e Jacinta, Manuel Formigão?
Em maio de 2017 foram canonizados, em Fátima, dois dos pastorinhos de Fátima, Francisco e Jacinta Marto. Estas foram as duas primeiras crianças não-mártires a ser elevadas à categoria de santos pela Igreja Católica. A sua canonização marcou o ponto alto das comemorações do Centenário das Aparições na Cova da Iria. A elevação dos dois pastorinhos, pelo Papa Francisco pôs fim a um processo com mais de 60 anos.
Beatificados em 13 de maio de 2000, a sua canonização estava dependente da aprovação, pelo Papa, do “milagre” anunciado pela Santa Sé, a 23 de março, a "cura inexplicável" de uma criança brasileira de 6 anos. Francisco e Jacinta morreram ainda crianças, pouco anos depois de, com a sua prima Lúcia de Jesus (1907-2005), terem estado na origem do fenómeno de Fátima, entre maio e outubro de 1917.
Já em outubro de 2017, o Papa Francisco canonizou o sacerdote português Ambrósio Francisco Ferro, morto no Brasil em 1645 durante perseguições anticatólicas, por tropas holandesas. O novo santo faz parte do grupo dos chamados “protomártires do Brasil”, que foram mortos no atual território da Arquidiocese de Natal, então sob jurisdição portuguesa.
Ambrósio Francisco Ferro era vigário de Rio Grande e terá sido torturado e assassinado no chamado “massacre de Uruaçú”, onde outras vítimas também foram torturadas, nomeadamente cortando-lhes a língua para que não proferissem orações católicas. No local do massacre foi erigido um monumento aos mártires, visitado especialmente em outubro.
Mais recentemente, em 14 de abril de 2018, o Papa Francisco aprovou a publicação do decreto que abre caminho à beatificação do sacerdote português Manuel Formigão, figura central na investigação e divulgação das Aparições na Cova da Iria.
Este é um passo central no processo que leva à proclamação de um fiel católico como beato, penúltima etapa para a declaração da santidade. Para a beatificação exige-se o reconhecimento de um milagre atribuído à intercessão do agora Venerável Manuel Formigão. Estão assim abertas as portas para a proclamação de mais um santo português.
Comentários