A jornalista filipina Maria Ressa chamou "bomba atómica invisível" à arquitetura das redes sociais, que acusou de disseminarem ódio mais rapidamente do que factos, quando recebeu o prémio Nobel da Paz, em dezembro de 2021.
Cerca de dois meses depois, em fevereiro, a Rússia invadiu a Ucrânia e em maio, Ferdinand Marcos Jr., filho do ditador Ferdinand Marcos deposto por uma revolução popular em 1986, foi eleito Presidente das Filipinas.
Estes dois factos têm em comum o terem sido antecedidos de campanhas nas redes sociais que criaram a narrativa usada pela Rússia para justificar a invasão e, no caso do país do Sudeste Asiático, converteram Marcos pai “de pária em herói”.
“Como fazer frente a um ditador: a luta pelo nosso futuro”, o livro lançado por Maria Ressa no final de 2022, conta com prefácio da sua advogada, Amal Clooney, e conta a história pessoal da jornalista e agora presidente do grupo Rappler, um ‘site’ de notícias digital que cofundou em 2012, num percurso que usa para denunciar a impunidade das empresas que controlam as redes sociais, como a Meta, de Mark Zuckerberg.
Maria Ressa, 59 anos, diz, no livro, que o escreveu para tentar “mostrar que a falta de um Estado de Direito no mundo virtual é devastadora”.
Jornalista há mais de 36 anos, Ressa ganhou notoriedade internacional na cadeia de televisão norte-americana CNN, durante a década de 1990.
Do seu “poleiro no Sudeste Asiático”, diz ter assistido à emergência de movimentos democráticos em antigas colónias, do “terrorismo islâmico muito antes do 11 de Setembro” ou de novos dirigentes “democraticamente eleitos que transformariam os seus países em quase ditaduras”.
Viu também “o potencial e o poder estonteante das redes sociais, que não tardariam a ter um papel decisivo no derrube de tudo” o que diz que lhe era querido.
Foi por se considerar “a mais fiel dos verdadeiros crentes no poder das redes sociais para fazer o bem no mundo”, que Ressa usou o Facebook e outras plataformas para afirmar o Rappler no jornalismo de investigação e em campanhas sociais nas Filipinas.
Esse envolvimento levou a equipa do Rappler a perceber e a documentar a forma como a arquitetura do Facebook favorece a disseminação do ódio em vez dos factos.
Além dos casos russo e filipino, a autora refere também o papel das redes sociais na disseminação de narrativas de grupos extremistas que levaram à violência nos Estados Unidos, em janeiro de 2021, quando Donald Trump perdeu as eleições para Joe Biden.
“Acredito que o Facebook representa uma das mais graves ameaças às democracias de todo o mundo”, afirma no livro.
Ressa conta que o Rappler começou a denunciar a impunidade em duas frentes: “na guerra às drogas do presidente Rodrigo Duterte e no Facebook de Mark Zuckerberg”.
A guerra às drogas de Duterte (2016-2022) foi uma campanha de execuções sumárias de alegados traficantes e consumidores que terá provocado cerca de 27 mil mortos entre 2016 e 2018, segundo a Comissão de Direitos Humanos das Filipinas.
A antiga colónia espanhola que deve o nome ao rei Filipe II, mas que também foi colonizada pelos Estados Unidos e esteve sob ocupação japonesa, é um arquipélago de 7.600 ilhas e 113 milhões de habitantes, maioritariamente católicos.
Em 2021, foi pelo sexto ano consecutivo o país cuja população passou mais tempo nas redes sociais, segundo dados da empresa We Are Social, com sede em Londres, citados no livro.
“O que vi e documentei durante a última década foi o poder divino da tecnologia para infetar cada um de nós com um vírus de mentiras, virando-nos uns contra os outros"
Ressa conta que quando referiu a Zuckerberg, num encontro em 2017, que 97 por cento dos filipinos estavam no Facebook, o patrão da plataforma respondeu: “onde estão os outros três por cento”?
“Na altura, ri-me ante o seu gracejo oco. Já não lhe acho assim tanta graça”, afirma no livro.
As Filipinas têm sido, segundo Ressa, um viveiro de contas falsas envolvidas em campanhas de desinformação em vários países.
“O que vi e documentei durante a última década foi o poder divino da tecnologia para infetar cada um de nós com um vírus de mentiras, virando-nos uns contra os outros (…) e acelerando a ascensão de déspotas e ditadores em todo o mundo”, afirma Ressa, ao introduzir a obra.
A este processo chama “a morte por mil cortes da democracia”, socorrendo-se de uma forma antiga de tortura e execução na China que consistia em fazer inúmeros cortes na vítima para lhe provocar uma morte lenta e dolorosa.
Segundo Ressa, as plataformas que dão as notícias a uma parte significativa da população mundial “são tendenciosas em relação aos factos” e espalham “mentiras temperadas com raiva e ódio” muito mais depressa do que os factos.
“Sem factos, não pode haver verdade. Sem verdade, não pode haver confiança. Sem estas três coisas, não temos realidade partilhada, e a democracia tal como a conhecemos — bem como todos os esforços humanos significativos — estão mortos”, defende.
Ressa recebeu o Nobel da Paz juntamente com o jornalista russo Dmitry Muratov. Até então, só um jornalista tinha sido laureado com o prémio, o alemão Carl von Ossietzky em 1935, “que não o pôde aceitar porque estava a definhar num campo de concentração nazi”. Morreria em 04 de maio de 1938, com 48 anos.
Ressa defende no livro que a decisão do Comité Nobel Norueguês de distinguir de novo o jornalismo foi uma indicação de que o mundo estava “noutro ponto existencial para a democracia”.
Por isso, alertou no discurso de aceitação do Nobel para a “bomba atómica invisível” que disse ter explodido no ecossistema da informação.
Denunciou, então, que as plataformas tecnológicas “tinham oferecido aos poderes geopolíticos uma forma da manipular individualmente” cada um dos seus utilizadores.
Ressa diz que o mundo tem de lidar com este “silencioso holocausto nuclear”, como fez no rescaldo da Segunda Guerra Mundial com a criação das Nações Unidas, da NATO (Organização do Tratado do Atlântico Norte) ou da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
“Hoje em dia, precisamos de novas instituições globais e de uma reafirmação dos valores que nos são caros” para criar um mundo “mais compassivo, mais equitativo, mais sustentável. (…) Um mundo livre de fascistas e tiranos”, defende no livro.
Em setembro de 2022, Ressa e Muratov lançaram um plano para, entre outros objetivos, “pôr fim ao modelo de negócio da vigilância [das redes sociais] com fins lucrativos” e reconstruir “o jornalismo independente como antídoto para a tirania”.
O plano contém pedidos específicos aos governos democráticos, à União Europeia e à ONU, à qual propuseram a criação de um emissário especial do secretário-geral dedicado à segurança dos jornalistas.
Mesmo reconhecendo que tem sorte comparativamente a outros jornalistas que “estão escondidos, no exílio ou na prisão”, Ressa sabe do que fala: “em menos de dois anos, o governo das Filipinas emitiu 10 mandados de detenção contra mim”, conta no livro.
E em 2018, começou a usar um colete à prova de bala em deslocações no país.
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