Joana Martins é jornalista de formação, profissão que, aliás, exerceu até há pouco tempo. Mestre em Ciências da Comunicação, deu aulas em Viseu, na Escola Superior de Educação. Na sua tese de doutoramento, “A morte na imprensa: a evolução no tratamento mediático da morte de figuras públicas”, parte da ideia da noticiabilidade da morte e aprofunda a cobertura do tema nos meios de comunicação social.
Ao SAPO24, a autora explica que tinha vários temas que podia ter tratado, mas surgiu-lhe esta ideia de perceber a cobertura jornalística da morte de algumas figuras públicas portuguesas ao longo destes 40 anos [de 1970 a 2014], a partir de Carlos Paião. O compositor e intérprete português faleceu tragicamente aos 30 anos, num acidente de automóvel a 26 agosto de 1988, data que hoje se assinala, quando se dirigia para um um espetáculo em Penalva do Castelo. O carro onde seguia embateu num camião que seguia em sentido contrário, causando a morte de mais um ocupante da viatura.
Da morte de Carlos Paião pouco se lembra e diz que o que tem “são memórias construídas”. “Lembro-me melhor da reação da minha mãe e dos amigos quando aconteceu a morte do que propriamente de ter noção do que tinha acontecido ou do desaparecimento dele”, diz.
Essas memórias vêm de uma ligação do cantor aos seus entes próximos. “Ele era amigo da minha família, era amigo de infância da minha mãe e eu recordo-me vagamente de ele ter morrido, eu tinha seis anos na altura. Tinha alguma curiosidade em estudar a cobertura mediática da morte dele e daí surgiu também a ideia de juntar outras figuras públicas, até porque entretanto tinha morrido o Angélico [Vieira], mais ou menos nas mesmas condições que o Carlos Paião. Primeiro surgiu esta ideia de poder fazer um paralelismo: perceber como foi tratada a morte de um e de outro. A partir daí fui juntando outras figuras públicas até chegar a estas 20 cujas mortes tratei”. Para além do cantor de “Pó de Arroz”, contam-se os de Francisco Sá Carneiro, Álvaro Cunhal, José Saramago, António Feio ou Angélico Vieira.
A tese de Joana Martins debruça-se apenas em três jornais: Correio da Manhã, Diário de Notícias e Jornal de Notícias, e considera para análise 48 edições, 16 de cada um dos títulos. Considerando que as figuras públicas que fazem parte deste estudo começam em António de Oliveira Salazar e terminam em Eusébio, a autora justifica que seria necessário três jornais diários, que estivessem nas bancas durante todo este período de análise, excluindo à partida o Público, que é dos anos 90, e o i, que já é dos anos 2000. Já o Expresso, como semanário, não fazia sentido para Joana Martins: “Aquilo que eu queria era o imediatismo, era o dia logo a seguir à morte”.
Sobre a morte de Carlos Paião, a autora caracteriza o destaque dado pela imprensa, a 27 de agosto de 1988, como tendo sido “muito parco” — algo que foi, aliás, uma surpresa para si. “Uma das maiores surpresas da minha tese de doutoramento foi quando percebi que os jornais quase não tinham falado da morte do Carlos Paião e também percebi rapidamente porquê: o Chiado estava a arder, ainda. Tinha sido o grande incêndio do Chiado um dia ou dois antes e estávamos no meio de agosto [o incêndio deflagrou a 25 de agosto]. “Talvez se o incêndio não tivesse acontecido a cobertura da morte do Carlos Paião tivesse sido bastante mais extensa e comparável até com a de outras figuras públicas”, continua a autora.
Na tese defendida em outubro de 2017, Joana Martins evidencia que os três jornais fizeram chamada de capa com o assunto, com uma pequena fotografia do cantor e uma chamada para a notícia, “muito mais pequena do que a manchete”, que neste caso era o incêndio do Chiado. Nas páginas interiores mencionam o acontecimento, “mas com uma pequena notícia”. Foi o Correio da Manhã quem maior destaque deu à morte do cantor, cerca de meia página, e a antiga jornalista destaca que foi o único jornal, por exemplo, “que teve a preocupação de fazer a cobertura do funeral” onde descreve o ambiente e as personalidades presentes.
A notícia, essa, era “pura e dura”. O Diário de Notícias e o Jornal de Notícias publicaram exatamente o mesmo texto, sem estar assinado, e as mesmas declarações das mesmas pessoas — entre elas a de Amália. Mais: não foram publicados artigos de opinião nem por parte dos colunistas do jornal nem por parte dos leitores — algo que Joana Martins verificou na análise da cobertura de outros óbitos.
O espetro da investigação não se limita aos dias seguintes ao falecimento das personalidades que aborda. Foram analisados o primeiro mês, os primeiros seis meses, o primeiro ano, os primeiros 10 anos e os primeiros 20 anos da morte. No caso do Carlos Paião, denota a já Doutora, só o Correio da Manhã é que data o primeiro aniversário. “O jornal fez uma pequena notícia a recordar a carreira. De resto, nenhum dos outros jornais o fez, nem nenhuma das outras efemérides foi também recordada”.
Na sua análise, a Joana Martins utilizou um parâmetro a que chamou de “marcas de subjetividade”. A autora explica: “Quanto parti para esta análise, do ponto de vista quantitativo, ou seja, ao ver número de notícias, páginas, margens, tive como preocupação perceber se haveria aqui alguma diferenciação nestes 40 anos em termos de escrita jornalística”. Isto é, “se o período de luto após a morte de alguém pode servir como justificação para, por exemplo, utilizar-se adjetivos, atribuir qualidades às pessoas, algo que normalmente está excluído do jornalismo. O jornalismo quer-se distanciado, imparcial, mas na investigação foi necessário perceber se havia ou não estas marcas de subjetividade aquando da morte de alguém”. E essa foi efetivamente uma das hipóteses confirmadas. “Com a morte do Carlos Paião, como a cobertura é muito limitada — não há muitas notícias e são pequeninas — também não há muito espaço para estas marcas de subjetividade e de pesar, mas há outros casos [na tese] em que isto é mais visível. Ainda assim, chamam-lhe por exemplo um ‘triste anotável’. Ou, ainda, o Correio da Manhã escreve ‘Carlos Paião, magro, tímido, nervoso, otimista’".
E hoje, como seria?
Joana acredita que a morte prematura de uma figura pública como a de Carlos Paião seria muito mais explorada hoje do que foi há 30 anos. “Hoje os meios de comunicação social estão muito mais virados para a espetacularização e para a dramatização dos acontecimentos”, diz. “Se acontecesse hoje [a morte] seria, de certeza, muito mais explorada e haveria ali uma série de outras vertentes sensacionalistas em que os jornais não pegaram sequer e que hoje em dia teriam pegado”, defende.
Vertentes sensacionalistas como os mitos e boatos que circularam na sequência da sua morte, nomeadamente sobre o seu cadáver e sobre o enterro — entre eles que o cantor teria sido enterrado vivo. “Não encontrei nenhuma referência sobre isso nos jornais da época. Era um mito infundado e pouco credível, mas os jornais da altura nem sequer se sentiram tentados a pegar nisso e hoje em dia de certeza que pegavam. Quer nas redes sociais, quer em alguns jornais, isto teria alguma repercussão”.
Para além disso, o digital mudou muita coisa. E a autora faz, a nosso pedido, um exercício de como seria hoje a notícia. “Primeiro, a notícia seria divulgada de imediato. No dia seguinte já não poderíamos dar a notícia pura e dura, já teríamos de acrescentar alguns factos. A notícia pura e dura já não é o amanhã, é o hoje; o digital alterou isso. E muito provavelmente haveria mais espaço para desenvolver o tema. O digital também potenciou esta abertura do espectro que estava muito mais reduzido quando se estava só no papel”.
Da presença do cadáver na imprensa à dramatização
Sobre as conclusões da sua tese, a autora admite ter chegado a coisas que já esperava e a outras que a surpreenderam. “É óbvio que eu não esperava encontrar uma linha reta entre 1970 e 2014. Sabia que iam existir mudanças [na abordagem da morte de figuras públicas], mas, por exemplo, uma das coisas que me surpreendeu é a presença do cadáver na imprensa. Ao contrário do que eu achava, é uma coisa relativamente comum nos primeiros 20 anos da minha análise [entre 1970 e 1990]. Não havia nenhum pudor em mostrar o corpo morto dentro do caixão. As imagens que estão publicadas nos anos 80 do cadáver do Joaquim Agostinho são absolutamente aterradoras, a meu ver. Ele com a cabeça envolta em ligaduras, a mulher a beijá-lo e aquelas imagens são publicadas em primeiro plano sem qualquer problema. Pelo contrário, à medida que os anos vão avançando e hoje em dia, existe um distanciamento da lente do fotógrafo em relação ao cadáver, em relação ao corpo da personalidade dentro do caixão”.
Outra conclusão tem a ver com o facto da dramatização. “Hoje está de uma forma muito mais presente, os jornais assumem aqui o papel de mediadores do luto coletivo das personalidades”. Algo que, considera, se foi acentuando com o passar dos anos e sobretudo no Correio da Manhã e no Jornal de Notícias, “onde encontramos muitos mais casos de espetacularização e de estratégias de chamada da atenção”.
A questão do ruído foi outra das suas conclusões. “Às vezes não basta morrer uma personalidade célebre para que isso seja imediatamente uma notícia, ou uma notícia de relevo, que é o caso do Carlos Paião, em que o ruído foi o incêndio do Chiado, mas é o caso também do António Variações, em que o ruído foi a doença que o matou e que na época era absolutamente desconhecida, e terá havido algum medo dos jornais em noticiarem muito mais do que o que noticiaram sobre o Variações. É também o caso da Sophia de Mello Breyner, que vem quase a seguir à final do Euro 2004. O ruído, nesse caso, foi o jogo de futebol que permitiu, penso eu, que não existisse tanto destaque para esse acontecimento”.
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