O ministro da Presidência, António Leitão Amaro, anunciou-o durante o fim de semana: o capítulo das migrações é uma das “heranças mais pesadas” que o atual executivo recebeu do anterior Governo e hoje tratará de fazer algumas alterações.

O ministro, que tutela a política migratória, prometeu que o plano contempla regras mais apertadas, uma estratégia para atrair quadros qualificados e um tratamento diferenciado para os lusófonos. Tudo isto, sem especificar se vai assegurar a continuidade da AIMA, criada para centralizar os serviços prestados pelo SEF e o Alto Comissariado para as Migrações.

A agência que substituiu o SEF enfrenta um cenário de falta de trabalhadores, ao passo que os pedidos de residência de imigrantes já ascendem aos 20 mil por mês. Em 2023, Portugal processou perto de 180 mil regularizações de imigrantes, mas ainda há 400 mil pendências, “incluindo manifestações de interesse para a primeira autorização de residência, pedidos de reagrupamento familiar, pedidos de vistos, renovação de vistos ou das autorizações de residência, processos dos vistos dos cidadãos da CPLP [Comunidade dos Países e Língua Oficial Portuguesa]”.

Não obstante, Leitão Amaro revelou em entrevista que a AIMA recebe uma média de cinco mil processos por semana e tem “uma capacidade de resposta que poderá andar neste momento abaixo dos 2.000”. Essa, contudo, não é a única causa para o atual fluxo de processos a inundar a agência.

Em que consiste a atual lei para a imigração?

Trata-se do “regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional”, estabelecido inicialmente numa lei publicada em 2007, e subsequentemente alvo de 14 atualizações — a mais recente das quais datada de outubro de 2023.

Em linhas gerais, a lei prevê a necessidade de um visto para entrada em Portugal, a não ser que os requerentes integrem regimes especiais — como serem provenientes da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa ou serem requerentes de asilo — ou estejam dispensados de autorização de residência (integram aqui famílias de pessoas em missão diplomática, entre outras categorias).

Os vistos dividem-se em quatro categorias:

  • Visto de curta duração;
  • Visto de estada temporária;
  • Visto para obtenção de autorização de residência ou visto de residência.
  • Visto para procura de trabalho.

Conforme explicado pelo Portal Diplomático:

  • O visto de estada temporária destina-se a permitir a entrada para estadas em Portugal por período inferior a um ano. Este é válido pela duração da estada e para múltiplas entradas em território nacional.
  • O visto para obtenção de autorização de residência é válido para duas entradas e por quatro meses, período durante o qual o seu titular deverá solicitar junto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras um título para fixação de residência.
  • O visto de procura de trabalho habilita o seu titular a entrar e permanecer em território nacional com finalidade de procura de trabalho, autoriza-o a exercer atividade laboral dependente, até ao termo da duração do visto ou até à concessão da autorização de residência.

Já o de curta duração tem a extensão máxima de apenas 90 dias e pode ser destinado tanto a turismo como a trabalho. Dadas a suas características, não é o que importa explicar neste artigo.

Para que lhes seja concedido um visto de estada temporário ou de residência, é necessário que os migrantes comprovem ter meios de subsistência — ou seja, remuneração a partir de um certo valor — que lhes permitam viver em Portugal, ou que estarão em condições de os vir a obter após a sua entrada. Como alternativa, podem ter de assinar um Termo de Responsabilidade para esse mesmo fim, subscrito por um cidadão nacional ou por um estrangeiro habilitado a permanecer regularmente em território português. 

Por fim, importa realçar que não são concedidos vistos também a cidadãos que, por motivos criminais, se encontrem inelegíveis a recebê-los.

O que é que está em causa?

Após obter um visto dos diferentes acima descritos, seguem-se os pedidos de autorização de residência. Estes podem ter um cariz temporário ou permanente.

Segundo a atual lei, a autorização de residência temporária é válida pelo período de dois anos contados a partir da data da emissão do respetivo título e é renovável por períodos sucessivos de três anos. Já a autorização de residência permanente é emitida por um período de cinco anos e não tem limite de validade.

Um dos artigos centrais no qual se baseia todo o desenho legal da atual lei é o 77, que estipula as condições gerais de concessão de autorização de residência temporária. Em traços gerais, obriga a que os requerentes tenham um visto válido, os meios de subsistência acima descritos e que não se encontrem perante nenhuma situação legal que os impeça de fazer esse pedido.

A questão é que, continuando a percorrer a lei, se encontram excepções ao artigo 77, nomeadamente nos artigos 88 e 89. Ambos explicitam que tanto estrangeiros a trabalhar por conta de outrem como por conta própria podem evitar as condições gerais de concessão de autorização de residência temporária mediante a apresentação de uma manifestação de interesse à AIMA.

O que é uma manifestação de interesse?

É um processo que pode ser aberto em que os requerentes pedem autorização de residência para exercício de atividade profissional. Por outras palavras, é um mecanismo através do qual qualquer estrangeiro pode referir que está à procura de trabalho em Portugal, mesmo que tendo apenas consigo um visto de curta duração (que, de outra forma, não seria permitido).

De acordo com a lei, estas são as condições para apresentar uma manifestação de interesse — por exemplo — no caso de quem queira trabalhar por conta de outrem:

  • Possua um contrato de trabalho ou promessa de contrato de trabalho ou tenha uma relação laboral comprovada por sindicato, por representante de comunidades migrantes com assento no Conselho para as Migrações ou pela Autoridade para as Condições do Trabalho;
  • Tenha entrado legalmente em território nacional;
  • Esteja inscrito na segurança social, salvo os casos em que o documento apresentado nos termos da alínea a) seja uma promessa de contrato de trabalho.

Qual é o problema?

A questão é que tanto o artigo 88 como o artigo 89 referem que “presume-se a entrada legal prevista na alínea b) do n.º 2 sempre que o requerente trabalhe em território nacional e tenha a sua situação regularizada perante a segurança social há pelo menos 12 meses”.

Ou seja, qualquer estrangeiro — mesmo que tenha entrado ilegalmente no país — é considerado legal desde que consiga comprovar que trabalha em Portugal e já tenha feito descontos durante um ano.

As exceções previstas nestes dois artigos levaram a que esta se tenha tornado, no fundo, a maior via de legalização de imigrantes em Portugal — e a razão pela qual a AIMA se encontra entupida de processos.

“A manifestação de interesse permitiu que muitas pessoas entrassem em Portugal, algumas delas sem documentação adequada, com processos que estão mal instruídos”, o que veio “também facilitar o trabalho de redes de clandestinas de tráfico que conseguem aproveitar estas lacunas na lei para trazer pessoas de forma ilegal e aproveitar-se da sua vulnerabilidade”, explicou o investigador Gonçalo Matias à agência Lusa.

O que é que o Governo vai fazer?

Sabe-se pouco ainda, mas António Leitão Amaro levantou o véu na entrevista de 1 de junho quanto a esta questão da regularização em Portugal de pessoas independentemente das suas condições de entrada, ao final de um ano de desconto.

O ministro já tinha sugerido que tal situação é incomportável e, segundo o que é hoje avançado pelo Correio da Manhã, os artigos acima referidos — 88 e 89 — deverão ser revogados na parte em que estabelecem uma “presunção” de entrada legal no País para concessão de autorização de residência a todos aqueles que “tenham a sua situação regularizada perante a Segurança Social há pelo menos 12 meses”.

Segundo o CM, a medida do Governo contempla como alternativa a obrigatoriedade dos migrantes apresentarem um visto de trabalho ou de procura de trabalho nos postos consulares quando pedirem um visto de entrada para que lhes seja posteriormente concedida a autorização de residência.

Esta alteração, contudo, não deverá ter efeitos retroativos. De acordo com o CM, o decreto-lei a ser apresentado pelo Governo vai salvaguardar os pedidos já realizados ao abrigo do regime atual.

Vai haver alterações também para os migrantes provenientes da CPLP?

Não neste domínio, avança também o CM. O artigo 87.º-A da Lei de Estrangeiros já previa um regime de exceção, mais favorável, aos cidadãos oriundos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, devido a um Acordo sobre a Mobilidade assinado entre todas as partes.

“Os cidadãos nacionais de Estados em que esteja em vigor o Acordo CPLP que sejam titulares de visto de curta duração ou visto de estada temporária ou que tenham entrado legalmente em território nacional podem requerer em território nacional, junto do SEF, a autorização de residência CPLP”, pode ler-se na lei.

O Governo, na verdade, pretende facilitar ainda mais a integração destes migrantes. Na mesma entrevista, Leitão Amaro refere ser relativamente unânime entre os partidos e associações que deve haver “uma discriminação positiva, um tratamento mais favorável aos imigrantes que vêm de países da CPLP, por uma razão de proximidade cultural e linguística que torna a integração social mais fácil”.

O problema atualmente a afetar esta área é que o regime para os migrantes da CPLP concede permanência em território português, mas não a livre circulação no espaço Schengen nem o direito ao reagrupamento familiar. Os migrantes nestas condições, lamenta o ministro da Presidência, “chegam com papéis que não correspondem às capacidades para essa livre circulação e cujas renovações nunca mais acontecem”.