
João (nome fictício) tem 16 anos e revelou ao SAPO24 ter ficado com receio de andar de TVDE desde a última viagem. “Quando entrei, o condutor pediu-me para passar para a frente e fingir que era filho dele. Tirou a placa que dizia TVDE e começou a acelerar o carro e a dizer que oferecia a viagem de graça. Abri logo a porta”, conta.
O rapaz saiu do carro com medo e, até hoje, não soube explicar a situação insólita, mas também diz não ter apresentado queixa à Judiciária, nem querer fazê-lo. “Não sei se foi por simpatia ou por maldade”, diz.
“Pedi para parar, porque tive medo de ter um acidente. Estava a andar muito rápido dentro da cidade e não parava nos vermelhos”, relata outra fonte ao SAPO24. “Reparo que quando as viagens estão mais baratas, o condutor é pior”.
Também Joana teve uma má experiência, que partilhou com o SAPO24. Tinha sido diagnosticada com um cancro, e durante a pandemia teve de fazer uma viagem de TVDE que a assustou: “O condutor era um português negacionista. Recusou-se a usar máscara e foi agressivo comigo. Naquele momento, achei que me ia bater”, acrescenta.
Nenhuma destas histórias chegou à secretária da polícia. No entanto, Joana diz que a amiga com quem partilhava a viagem fez queixa na Uber, mas não obteve resposta. A reclamação é de 2022 e ainda não lhe foi devolvido o dinheiro da viagem.
Apesar de não existirem dados oficiais destas queixas, foram vários os relatos sobre casos em TVDE’s, e aqueles que ganharam mais atenção foram partilhados nas redes sociais, alguns com acusações fora do comum.
Nas redes sociais, novas acusações
No último ano, o caso de uma rapariga que chamou um TVDE que trazia duas pessoas no carro foi partilhado mais de uma centena de vezes. A segunda pessoa, no lugar do passageiro, dizia ser “um instrutor”, que estava a avaliar a condução do motorista.
Sobre esta história, a Bolt acrescenta que “não tem registado um aumento no número de queixas desde o ano passado”, em resposta ao SAPO24.
Outro testemunho que circulou online, tanto em Portugal, como no Brasil, referia um perfume lançado no momento em que as vítimas entram no carro para as fazer perder os sentidos. As acusações sugerem tentativas de rapto e assédio sexual, mas estas queixas, mais uma vez, nunca chegam à polícia.
Nos comentários, os restantes utilizadores questionam como só os passageiros podem ser vítimas deste perfume, inalado por todos dentro do carro. Apesar disso, vídeos e artigos publicados online explicam como se pode evitar ser intoxicado: abrir os vidros, destrancar as portas, partilhar a localização com um contacto de segurança.
Na verdade, os dados da PSP no Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) mostram que não existem queixas relativas às viagens. Em relação aos 519 casos de violação, e cinco queixas de crime de rapto investigados em 2023, não há ligação oficial aos TVDE.
Existem, no entanto, muitas situações de assédio que não são denunciadas e nunca chegam às autoridades.
O medo associado à imigração e ao preconceito
Muitas vezes, nos comentários online, há uma associação entre o mau serviço e a nacionalidade do condutor, desde de não falar português, inglês ou pelo simples facto de ser imigrante. Um texto que circulou nas redes sociais em maio de 2023 referia, inclusive, o perigo de “indianos, marroquinos ou nepaleses” na condução dos TVDE.
Ahmad (nome fictício) nasceu "na Pérsia", viajou pela Europa e agora está a viver em Portugal para acabar o doutoramento em programação na Universidade Nova de Lisboa. Mas para pagar a renda, precisa de um ordenado extra. Começou a trabalhar para a Uber e para a Bolt, também como forma “de aprender e melhorar a língua portuguesa”, conta ao SAPO24.
“Na verdade, a minha pontuação naquela época era 4,97 estrelas (em 5)”, apesar de, muitas vezes, as viagens não serem as melhores. As pessoas “fumavam cigarros dentro do carro" e, por isso, “no fim do serviço abria as janelas para arejar o cheiro e não incomodar os próximos serviços”, refere. Uma destas viagens custou-lhe uma queixa em tribunal, que até hoje Ahmad não consegue justificar.
“Entraram duas jovens mulheres, eu disse 'olá, tudo bem' (em português) e segui com respeito. O serviço era de cinco quilómetros, três euros, lembro-me bem. Tive de passar na autoestrada, e quando a janela está aberta sente-se muito barulho. Ainda por cima porque era uma janela de trás, que me tinha esquecido de fechar, e só depois de entrarem no carro é que disse ‘desculpe’ e fechei a janela”.
Sem saber falar bem português, Ahmad tentou explica porque precisava de fechar a janela. Estava vento e não suportava o barulho. Mas as duas clientes sentiram medo e abriram a janela, suspeitando da insistência de Ahmad. “Até que vi que me começaram a gravar com o telemóvel e disseram qualquer coisa em português que não entendi”, lembra, com uma voz enraivecida.
No final da viagem teve a conta bloqueada. Ahmad não pôde trabalhar para a Uber durante oito meses. Tinha de pagar a renda da casa e o aluguer do carro para conduzir na Bolt, que custava 250 euros. Para o doutoramento, só a bolsa não bastava, “foi um custo muito caro”, disse.
Além disso, o motorista confessa que todo o processo o afetou muito, principalmente a nível mental. No entanto, reconhece que há outros casos em que de facto as queixosas possam ter razão, mas acredita que "a maioria são jovens que querem aparecer na televisão e ganhar seguidores em redes sociais”, e surgem "de um lugar de preconceito".
O medo gerado por estes testemunhos volta a ter origem na nacionalidade do condutor e não no perigo dos seus comportamentos. A percepção da criminalidade, associada à imigração, tem sido um dos combates das empresas de TVDE, que referem os recentes dados apresentados pelo diretor da Polícia Judiciária (PJ), Luís Neves, para desmistificar o preconceito.
Em 2023 foram registados 372 mil crimes em Portugal, mais 28 mil do que no anterior. O próprio RASI não associa o aumento da criminalidade à imigração, mas refere um aumento dos crimes contra imigrantes - crimes de tráfico de pessoas, crimes de auxílio à imigração ilegal e crimes de ódio (étnico ou racial).
O crime de ódio é relacionado no relatório com o surgimento de mais grupos de extrema-direita e neonazis em Portugal e na Europa.
Serão as funcionalidades das empresas suficientes?
Durante uma viagem, um motorista confessou ao SAPO24 que “o controlo de cartas de condução, motoristas e identidade é motivo de queixa entre dos próprios motoristas da plataforma Bolt, porque há situações de pedidos respondidos com um nome de trabalhador que são atendidos por outra pessoa, que à partida não é motorista”.
Segundo a fonte, vários motoristas fizeram queixa, ao que a Bolt terá respondido que não controla quem usa cada matrícula. Esta situação permite que existam pessoas a conduzir sem carta e a usar as credenciais da aplicação de outros trabalhadores inscritos na aplicação e licenciados. Ao SAPO24, a empresa disse que “os motoristas TVDE são livres de exercer a sua profissão se tiverem a sua certificação pelo IMT e devidos documentos regularizados”.
Sendo um TVDE um “transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica”, segundo a legislação, associados a uma aplicação e rastreado pela conexão ao GPS, seria, à partida, mais seguro.
Segundo a Uber, os motoristas são “devidamente licenciados” e, de acordo com a Uber, “cumprem com todos os requisitos”, inclusive têm de ter uma “autorização de residência, se aplicável, e não podem ter quaisquer antecedentes criminais”, monitorizada pelo IMT. E acrescenta: “Verificamos regularmente a sua identidade e credenciais na aplicação, seja pela verificação de um conjunto vasto de documentação, seja através de tecnologia pioneira de reconhecimento facial”.
Já a Bolt mencionou que tem ferramentas de verificação de identidade como o "selfie check operacionais", sendo também subscritora do protocolo de partilha de dados com o IMT. A empresa diz verificar "os registos criminais de todos os motoristas a utilizar a aplicação, as frotas e os seus carros, a cada três meses".
O SAPO24 soube também pelo mesmo trabalhador, que não quis revelar a sua identidade, que nas plataformas de TVDE os carros não podem ter mais de sete anos. Se não cumprirem a regulamentação vigente, a Uber tranca o acesso à aplicação, enquanto que a Bolt não o faz, havendo, segundo o próprio, carros com 10 e 11 anos.
Em resposta às questões levantadas, a Bolt esclareceu que "há uma proposta para mudar a legislação atual sobre o setor de TVDE que implica prolongar a idade máxima dos veículos usados". No entanto, a medida ainda não entrou em vigor, mas a Bolt garante que "cumpre com todo o contexto legal".
A aplicação Uber permite “a partilha do estado da da viagem em tempo real com até cinco contactos” e tem ainda um “botão de emergência que permite ligar diretamente para o 112 e receber toda a informação útil para partilhar, como a posição GPS em tempo real, a marca, o modelo do carro e a matrícula, entre outras”, explica a Uber.
A Bolt tem as mesmas funcionalidades, a que acrescenta a possibilidade de, perante uma classificação de uma estrela, a conta do motorista e do utilizador não poderem voltar a ser conectadas. Se for detetada uma “anomalia em viagem - irregularidades excessivas no trajeto ou paragens mais prolongadas”, a aplicação contacta diretamente o motorista e o passageiro, explica ao SAPO24.
“Estamos absolutamente empenhados em garantir a segurança de todos os que utilizam a nossa plataforma”, reforça a porta-voz da Uber.
Por fim, ambas as empresas apelam a que tanto os condutores, como os utilizadores, “submetam os seus pedidos e queixas através da nossa aplicação e, se necessário, junto das autoridades competentes”.
Até à data de publicação deste artigo, a PSP não respondeu aos pedidos do SAPO24 de mais informação sobre motoristas multados sem carta.
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