Introdução
Se não compreendeste que podes perder tudo, não percebeste nada do que é a política.
Michael Ignatieff (2013)
Passava já da meia‑noite e estávamos exaustos. Para trás ficavam longas horas de aceso debate no núcleo de confiança política de Pedro Nuno Santos. Naquele momento era ainda curta a informação documental disponível sobre o processo de saída de Alexandra Reis da TAP. Insuficiente para podermos reconstruir com segurança a fita do tempo daquilo que acontecera. Passados quase 11 meses, e depois de milhares de pequenas e grandes decisões entretanto tomadas sobre os mais diversos assuntos, as nossas memórias, sem o auxílio de documentos, não eram de fiar.
A memória, porém, tem horror ao vazio. Sobretudo quando é obrigada, sob pressão, numa emergência, a recolher e a organizar fragmentos do passado, transportando‑os intactos para o presente. Embora pairasse uma névoa sobre os passos concretos dados naquelas semanas atípicas — em plena campanha eleitoral e com o Governo a funcionar a meio gás —, a memória mais fidedigna que conseguimos reunir era a de que o secretário de Estado e a chefe de gabinete teriam comunicado ao ministro, en passant, que o processo de saída de Alexandra Reis da TAP estava encerrado e que, face às negociações iniciais, o acordo era o melhor possível para a empresa.
Porém, naquela noite de 28 de dezembro, com o ano de 2022 a chegar ao fim, o essencial não era a nossa névoa mnemónica. Todos sabíamos o suficiente para termos consciência de que era necessário assumir responsabilidades políticas. Alexandra Reis demitira‑se uns dias antes do cargo de secretária de Estado do Tesouro, na sequência das notícias vindas a público. Embora o ministro das Infraestruturas e da Habitação não tivesse memória da autorização dada para a indemnização de €500 mil paga à então administradora da TAP, considerou impossível ignorar o facto de o secretário de Estado ter acompanhado o processo e ter concordado com o valor. Assumir responsabilidades políticas implicava, por isso, que fosse aplicada ao caso a mais alta sanção política: a demissão. O comunicado enviado para as redações já a 29 de dezembro de 2022 é o resultado final dessa assunção de responsabilidade política.
Chegava ao fim a governação num ministério exigente e com um dos dossiês mais difíceis e ingratos a que toda a equipa se entregou de corpo e alma: a TAP.
Infelizmente, no entanto, o fim era apenas o início. Não antevíamos ainda o longo processo traumático de julgamento público que se seguiria. No olho do furacão, estava a empresa que o Governo salvara da falência em 2020, conseguindo aprovar junto da Comissão Europeia um exigente plano de reestruturação. Em 2022, fruto do trabalho desenvolvido, a empresa regressava aos resultados positivos, três anos antes do previsto. Nada disso interessaria para o que viria a seguir. Com acesso a e‑mails e mensagens de telefone, os deputados e os meios de comunicação alimentariam um auto de fé político, apagando o trabalho efetuado para salvar a empresa.
Pelo acervo documental a que o Parlamento teve acesso, atrevemo‑nos a dizer que nunca uma governação terá sido tão escrutinada como esta. De repente, nos jornais, televisões e rádios multiplicaram‑se peritos instantâneos perorando sobre a TAP, os procedimentos na relação entre membros do Governo e entre estes e administradores de empresas públicas. Falou‑se de «ingerência» e «controlo» — conceitos que ninguém definiu —, com base em mensagens de correio eletrónico ou de telefone cujo contexto tanto deputados como comentadores não conheciam, nem pareciam interessados em conhecer.
Do nosso lado, como visados diretos ou indiretos (1), questionávamo‑nos como era possível que, nos meios de comunicação social, opinadores que não conheciam a empresa e praticamente sem informação sobre o que se passara pudessem ter opiniões tão definitivas e sumárias acerca do trabalho de outras pessoas e instituições.
Este livro só foi escrito porque existiu a Comissão Parlamentar de Inquérito. Nunca antes dela nos passou pela cabeça ter de o escrever. Na verdade, estávamos longe de imaginar, quando nos conhecemos, em 2015, numa pós‑graduação em Direito Fiscal, que viéssemos a estar envolvidos, anos mais tarde, num pesadelo político destas dimensões.
Começámos a trabalhar juntos em 2017, quando Frederico se juntou à equipa de Pedro Nuno Santos nos Assuntos Parlamentares. Hugo era então adjunto do secretário de Estado desde 2015. Partilhámos intensamente o período da «geringonça», bem como a passagem pelo Ministério das Infraestruturas e da Habitação. Durante os quase quatro anos em que trabalhámos no número 5 da Avenida Barbosa du Bocage, estivemos nos diferentes momentos pelos quais a TAP passou entre 2019 e 2022. Fomos testemunhas diretas do trabalho de dezenas de pessoas no período mais crítico da vida da companhia e testemunhas indiretas do esforço de milhares de trabalhadores. Foi duro ver todo esse esforço ser desfigurado publicamente.
Terminada a CPI, depois da tempestade, sobreveio a tentação de gozar de alguma bonança. Teria sido mais fácil para os autores deste livro fazer como o Cândido de Voltaire: depois da desilusão sobre o modo como funciona o mundo, voltar para casa e cuidar do seu jardim. Teria sido taticamente mais prudente ultrapassar o período traumático e deixar que o que se passou viesse a diluir‑se na memória (ou amnésia) coletiva.
Confessamos, porém, que estamos um pouco cansados da prudência tática. Neste livro, decidimos trocar uma postura defensiva por uma reflexão aberta. Não o fazemos sem uma ambivalência que nos atravessou ao longo de meses. Por um lado, a nossa experiência profissional tendia a normalizar a cobertura e o aproveitamento político‑mediático. Essa mistura de realismo — sabemos como o jornalismo está sujeito a constrangimentos temporais cada vez mais intensos — e de fatalismo fazia‑nos olhar para tudo isto como business as usual. Quem atravessa um tsunami mediático destes facilmente se abandona à tentação de seguir a máxima atribuída a Oscar Wilde: «Nunca expliques. Os teus amigos não precisam disso e os teus inimigos, seja como for, não acreditarão em ti.»
Porém, o nosso outro lado dizia‑nos: não podemos deixar que o espírito do tempo, marcado pelo cinismo, vença sem pelo menos lhe darmos luta. Não aceitamos ser reduzidos ao que injustificadamente disseram de nós publicamente. Sem querermos ser quixotescos, ainda assim decidimos arregaçar as mangas. Em política, se alguém se deixa definir pelos adversários, perde a batalha — e nós não aceitamos que os adversários da intervenção pública na TAP possam fazê‑lo sem uma defesa do nosso lado.
Pela forma como decorreu a CPI, é provável que o tema TAP seja um caso perdido na opinião pública. Margaret Atwood escreveu que «publicar um livro é como enfiar uma carta numa garrafa e arremessá‑la ao mar». Se o leitor está agora a ler estas páginas, talvez ainda esteja disposto a resgatar a garrafa das ondas, a abri‑la, a ler a carta e a dar o benefício da dúvida a quem a escreveu.
George Orwell (2021) identificava quatro grandes motivos para escrever: o puro egoísmo, o entusiasmo estético, o impulso histórico e o propósito político. Há motivos pessoais para escrever este livro, sem dúvida, o que talvez levasse Orwell a encaixá‑lo na primeira categoria. A ideia nasceu por sentirmos que muito ficou por explicar da discussão pública em torno das decisões que envolveram a TAP. A forma como muita gente, direta ou indiretamente, em on e em off, tratou o caráter, o trabalho, o profissionalismo e a integridade de tantas pessoas que se empenharam em salvar a TAP gerou um sentimento de injustiça
que era necessário sublimar.
Acreditamos que é nosso dever contribuir para que possamos viver numa «sociedade decente» (Margalit, 1998) — expressão que o PS gosta de evocar —, numa sociedade em que as instituições procurem não humilhar os cidadãos. As instituições e quem as representa, a começar pelos membros do Governo. E acreditamos, ambos, que quem é atingido por práticas que visam a humilhação não só tem o direito, como o dever de se defender.
Mas este não é (apenas) um livro de defesa dos autores. Não escrevemos por procuração de ninguém, mas sentimos o impulso histórico de que fala Orwell, esse desejo de «armazenar [os factos] para uso da posteridade». Sentimos ser nossa obrigação descrever, explicar, analisar e refletir sobre o trabalho feito na TAP e no Governo — que testemunhámos e em que estivemos envolvidos — entre o momento em que a empresa olhou a falência nos olhos, em 2020, e o momento em que voltou aos lucros, em 2022.
Evidentemente, não somos observadores imparciais. Trabalhámos em governos que tomaram decisões sem as quais a TAP hoje não existiria. Esses governos foram criticados, à esquerda e à direita. Queremos mostrar como e porquê os adversários da intervenção na TAP estavam errados, no global, mesmo que algumas críticas e dúvidas possam ser legítimas. Mas também tentaremos mostrar como, em decisões desta envergadura e face aos constrangimentos legais existentes, não é possível escolher entre as fatias boas e as más.
Depois de enunciarmos o que nos levou a escrever este livro, é importante explicar o que queremos fazer dele. Talvez seja mais fácil começar por dizer o que o livro não é. Não é um panegírico em defesa da ação do Governo na TAP (2); não visa aprofundar o tribalismo partidário, cuja hiperbolização tanto mal tem feito à companhia nos momentos mais difíceis da sua existência; e não alimenta o registo voyeurista estimulado na (e pela) CPI.
Como diz um amigo de um dos autores, o jornalismo é, por definição, um «exercício de empobrecimento», no sentido em que tenta sistematizar em artigos curtos realidades altamente complexas. Ora, tal implica um empobrecimento da linguagem e, na medida em que as fronteiras da nossa linguagem são as fronteiras do nosso mundo, um empobrecimento sistemático da capacidade de compreendermos a realidade. Quando os problemas são complexos e as respostas políticas são também elas complexas, esse empobrecimento traduz‑se não apenas numa incapacidade dos decisores políticos em explicar decisões difíceis, mas também na menor predisposição das pessoas para tentarem sequer compreendê‑las. Por isso, Daniel Innerarity (2019) afirma que a «principal ameaça à democracia não é a violência nem a corrupção nem ineficiência, mas o simplismo».
Se o jornalismo assenta, muitas vezes, num exercício de empobrecimento da realidade, este livro pretende ser o oposto. Numa mistura de reflexão intelectual, testemunho pessoal e debate político, queremos fazer aquilo que a CPI sobre a TAP não fez nem nunca esteve interessada em fazer: um exercício de enriquecimento, um trabalho de memória analítica, uma tentativa de entender coisas complexas e cuja compreensão não cabe num soundbite nem em veredictos pré‑formatados de um minuto.
Tendo participado, por dentro, num processo como o do resgate da TAP e tendo assistido, por fora, à forma como ele foi retratado por deputados, comentadores e jornalistas, sentimos de forma singular não apenas o fosso existente entre esses dois polos, mas o modo como as regras do discurso mediático e os valores‑notícia do jornalismo constituem barreiras que impedem a explicação e o debate em torno de decisões e políticas importantes para a comunidade. Porque o discurso político depende deste ecossistema mediático e das suas regras de brutal simplificação. Os decisores políticos são obrigados a compreender os problemas complexos que enfrentam, a tomar decisões difíceis para os resolver e a comunicá‑las da forma mais simples. Neste contexto, é imperativo evitar tudo o que complique a mensagem, que deixe pontas soltas, que exija explicações adicionais.
A vantagem de poder escrever um livro como este, fora das nossas antigas funções, é não estarmos limitados por essas regras. Nele procuramos combinar uma lógica narrativa com um registo que nos permitiu fazer curtas reflexões sobre temas importantes: qual deve ser o papel do Estado numa relação de conflito com acionistas privados; como se desenrola uma negociação com a CE; como garantir que o setor público possa ser competitivo com o privado respeitando as regras remuneratórias em vigor; de que modo devem os decisores políticos relacionar‑se com as administrações das empresas públicas e com os sindicatos; ou como funcionam as relações das tutelas setoriais e das empresas públicas com o Ministério das Finanças. Eis algumas questões que dariam azo, se algum membro do Governo as abordasse em público, a um tal alvoroço mediático que impediria qualquer discussão séria.
Face à velocidade com que a informação circula e ao modo como as opiniões são formadas, talvez Orwell viesse a encontrar, se estivesse vivo, um quinto motivo para escrever: o dever cívico de tratar os cidadãos como adultos. Foi isso que procurámos fazer em relação à TAP, honrando o lema da editora que nos acolheu: «descodificar a complexidade do mundo».
Uma nota curta sobre o método: a maior parte da informação que usamos ou já é pública ou, quando não é, diz respeito a dados ou episódios que julgamos necessários para sustentar a argumentação. Procurámos encontrar o melhor equilíbrio, no conflito sempre existente para quem trabalha ou trabalhou em política, entre a ética da convicção e a ética da responsabilidade (3): entre a ética que governa aquilo que julgamos dever ser feito ou dito, independentemente das consequências que daí advenham; e a ética a partir da qual avaliamos as nossas ações e as nossas palavras pelas consequências que provocam no mundo, e pelas quais temos de assumir a responsabilidade.
(1) Neste livro, não abordaremos nem os eventos ocorridos no Ministério das Infraestruturas no final de abril de 2023, nem o facto de o primeiro‑ministro ter pontual e estrategicamente deixado de cumprir o mantra «à política o que é da política, à justiça o que é da justiça». Ambos seriam tema para outro livro e, no que toca à intervenção do SIS, um tema bem mais sério para avaliar aquilo a que se costuma chamar o «normal funcionamento das instituições».
(2) Sobre a reconfiguração acionista de 2017, responderá quem foi responsável por ela e/ou quem tem a esse respeito um conhecimento mais profundo do que nós, que não participámos no processo.
(3) 3 Distinção introduzida há pouco mais de um século pelo sociólogo alemão Max Weber.
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