Em Portugal, a Iniciativa Liberal assume-se como partido liberal. Mas nem em todas as áreas diz ao que vem. E saberá se está mais à esquerda ou mais à direito no espectro político? Alguns partidos parecem querem beneficiar com a confusão, será a IL um deles? Certo é que para o eleitor é fundamental conhecer a identidade de cada um.
O liberalismo é uma política que privilegia a liberdade do indivíduo face ao Estado e ao poder. Mas não é uma coisa só, é muitas coisas e muitas coisas diferentes. Adapta-se às circunstâncias e muda de país para país, até de geração para geração.
Paulo Sande, especialista em assuntos europeus, professor de Ciência Política na Universidade Católica Portuguesa e antigo conselheiro político do presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, responde a algumas perguntas sobre um tema que, em véspera de eleições legislativas, se tornou ainda mais pertinente.
Afinal, o que é o liberalismo?
O liberalismo é uma filosofia e, depois, uma ideologia política, que nasce algures há 300 ou 400 anos, na sequência do Iluminismo, no fim da Idade Média, quando o ser humano é colocado de novo no centro da atenção da política.
É uma filosofia e uma política que privilegia o indivíduo. E que privilegia a liberdade do indivíduo. Face a quê? Face ao Estado, face ao poder. E o poder — que até então era mais ou menos fragmentado, mas muito centrado em reis, imperadores, monarcas, senhores feudais, senhores locais — era um poder muito absoluto, um poder que não privilegiava a liberdade individual. A ideia é que eram esses os responsáveis pelo bem estar das pessoas. Isso foi posto em causa.
O liberalismo tornou-se uma corrente ideológica muito importante; está um pouco na génese da democracia e, depois, tornou-se muita coisa — o liberalismo hoje é muitas coisas e muitas coisas diferentes. Tanto que, por vezes, quando oiço falar em liberalismo, acho que as pessoas não estão bem a falar da mesma coisa. Por causa desta ideia de que é sobretudo a liberdade individual que está em causa, o liberalismo é muito plástico, adapta-se às circunstâncias. E é diferente de país para país, muda de época para época, muda de geração para geração, praticamente. Está sempre a mudar.
É igual em Portugal e nos Estados Unidos, por exemplo?
Não, é completamente diferente. Aliás, eu ia dar esse exemplo, mas antecipou-se. É muito interessante, porque essa é talvez a grande separação do ponto de vista conceptual entre os Estados Unidos e, por exemplo, a Europa — e, naturalmente, Portugal, portanto.
O liberalismo nos Estados Unidos é uma ideia muito marcada pelo New Deal [programas implementados pelo presidente Roosevelt nos EUA para reformar a economia americana e ajudar os prejudicados pela Grande Depressão], pela a ideia de que o Estado tem uma obrigação para com os seus cidadãos, que deve garantir a sua liberdade, mas que essa liberdade também passa pela igualdade de condições e pelo acesso a condições de vida digna.
Por isso a intervenção do Estado e o desenvolvimento da Segurança Social, que é anterior a isso, mas que, em todo o caso, deixou muito marcada a ideia de que nos Estados Unidos o liberalismo é uma ideologia de esquerda, um pouco como no Reino Unido (um bocadinho menos, apesar de tudo), e o conservadorismo fica à direita.
Na Europa, acaba por ser um bocadinho diferente, porque chamamos liberais aos defensores do mercado, àqueles que querem a iniciativa livre, e confundimos isso muitas vezes com a inexistência de regras. E daí o neoliberalismo, que é outra ideia que também está presente no século XX e, de alguma forma, na recuperação do liberalismo clássico, aquele que vinha do século XVII.
Na Europa há quatro países com primeiros-ministros de um partido liberal: Bélgica, Países Baixos, Luxemburgo e Estónia. São mais avançados do que Portugal? Uma coisa é certa: todos têm seguro de saúde obrigatório.
Não é, obviamente, por serem regimes liberais ou lideranças liberais, porque é disso que estamos a falar — e que são episódicas, podem mudar, aliás, nalguns desses casos isso pode acontecer rapidamente —, que são mais avançados. Mas é sobretudo porque o liberalismo é esse conceito essencial, mas que se transformou muito nos últimos dois séculos. E já não é o que era.
Hoje em dia tem muito a ver, também, com outra ideia, que é a ideia de que o Estado tem a obrigação de proporcionar iguais condições de gozo e acesso à liberdade a todos os indivíduos. As desigualdades não permitem isso. Daí as diferenças de liberalismo.
Há pouco tempo, Portugal era o quarto país mais centralista da Europa, apenas com três países à sua frente: Luxemburgo, que não tem muito por onde descentralizar, Grécia e Irlanda. A Iniciativa Liberal assume-se como um partido liberal em toda a linha: quer reduzir o poder do Estado central e devolver algum poder às pessoas, para que possam decidir mais sobre a sua vida. Quais são os prós e contras?
É como tudo na vida, depende da análise que fazemos as coisas e, depois, se calhar os prognósticos e as terapêuticas.
A verdade é esta, o que interessa é que haja bom senso, moderação e equilíbrio. Talvez a palavra equilíbrio ainda seja a melhor de todas. As soluções radicais nunca resolveram nada.
Se formos à história, ficamos todos muito deslumbrados com determinados momentos fantásticos, mas que são momentos de grande sofrimento. O liberalismo assenta em três grandes revoluções ocidentais: a Glorious Revolution, a Revolução Americana e a Revolução Francesa — são, obviamente, momentos muito importantes da nossa história, mas marcados por grande sofrimento.
O liberalismo clássico, o liberalismo original, é um bocadinho avesso a mudanças muito radicais, querem mudança justamente para conseguirem o equilíbrio.
Portanto, o que eu aconselharia à Iniciativa Liberal é que tivesse em atenção esta necessidade do equilíbrio. Do equilíbrio para conseguirem resultados que beneficiem as pessoas.
Mas a verdade é que muitos Estados, através dos seus governos, falham em conseguir esses equilíbrios.
A ideia é — e foi aí que se fez a grande divisão entre o século XIX e o século XX, um período longo, que desembocou no New Deal dos Estados Unidos e nas preocupações sociais na Europa, que também são liberais —, justamente, de usar o Estado, ou usar o governo, como elemento propiciador de uma vida melhor para as pessoas, também na perspectiva da sua libertação.
Mas a ideia é também que o Estado não sufoque. Já agora, se quisermos, podemos recorrer a uma frase muito simples que gosto de usar: o Estado tem de fazer aquilo que deve fazer e não deve fazer aquilo que não deve fazer.
Parece a declaração dos alcoólicos anónimos; mas é preciso saber distinguir entre as duas coisas, é isso que é difícil.
Mas é verdade, o Estado deve fazer aquilo para que existe. No fundo, o liberalismo é isso, dizer que o mercado auto-regula-se, a sociedade auto-regula-se, não precisa do Estado.
O liberalismo clássico e o liberalismo mais radical do século XX, o chamado neoliberalismo, que depois se confunde com tudo para quem é seu inimigo, acaba por ser um pouco isso, dizer que o Estado não deve estar em nada. Não, o Estado deve estar. O governo deve garantir essas condições. Mas na origem não era assim.
Vamos a Adam Smith [pai da economia moderna], vamos a John Locke [pai do liberalismo], são filósofos políticos, são autores, são pensadores que teorizaram essa ideia: o ser humano é livre, deve ser livre; se é livre, não deve haver ninguém que se lhe imponha. Porque o Estado é importante, mas o risco de o Estado ser tirano, de se tornar tirano, é muito grande.
O que é que um partido liberal deve fazer? Deve defender isso tendo sempre em atenção que o desequilíbrio e as desigualdades sociais excessivas impedem as pessoas de serem livres (e, portanto, são contra o liberalismo).
Palavras como "liberal", "liberdade", "libertário" ou "libertino" têm a mesma origem, mas significam coisas diferentes. Ganhar as eleições e mandar pode parecer democrático, mas é de certa forma iliberal se for "quero, posso e mando". Tem de haver contrapesos. O que distingue uma democracia liberal de uma democracia iliberal?
Começava por ir ao étimo, já que falou na origem da palavra. Na origem de liberalismo não está a palavra liberdade, está a palavra liberalidade. Isto é, está a ideia de que o Estado, as organizações, o poder, têm também uma obrigação para com as pessoas, um conjunto de deveres - embora tenhamos hoje partidos muito extremos também nessa ideia de que o Estado deve desaparecer, praticamente.
Evoluiu para a ideia da liberdade, e é para essa que nós hoje olhamos, mas é sempre uma liberdade, no caso do Estado, que deve ser sujeita a regras que não permitam, justamente — seja o Estado, em Estados iliberais, sejam os indivíduos, numa espécie de anarquia —, contribuir para uma sociedade que não seja aquilo que também os antigos, Aristóteles, por exemplo, chamavam uma sociedade bem ordenada. Isto é, uma sociedade que funcione bem.
Agora, o abuso é sempre possível e, portanto, é preciso haver, de alguma forma, algum controlo, é preciso haver regras. Foi isso que os Estados Unidos aprenderam.
Na minha pergunta estava outra pergunta, também, que é sobre a qualidade da democracia.
Se este liberalismo clássico esteve na origem da democracia, é também verdade que depois evoluiu e é hoje muito diferente. Como dizia há pouco, muda de país para país, de geração para geração, está sempre a mudar porque é muito plástico.
A democracia, essa construção que vem do século XVII e depois passa, por exemplo, por Montesquieu [Revolução Francesa], pela separação de poderes, por todas essas coisas, é uma realidade que, de facto, pode ser facilmente posta em causa.
A democracia, no fundo, tem dois pilares ou dois aspectos fundamentais. Um é aquilo a que chamamos a democracia formal, que tem eleições, que tem instituições, que tem uma espécie de independência garantida, mas ao mesmo tempo um controlo mútuo das instituições, os chamados checks and balances, os freios e contra-pesos. O outro é a parte material, e é essa parte que caracteriza uma democracia iliberal, aquela que aparentemente, de fora, tem todos os contornos de uma democracia, mas que depois, no seu funcionamento — porque, por exemplo, a independência da imprensa não é absoluta, começa a ser coarctada, ou porque a independência dos juízes, do poder judicial, pode ser posta em causa —, está comprometida, porque um dos poderes se impõe e se sobrepõe aos outros.
A democracia, e estamos a fazer uma transição da democracia como a conhecemos, é um dos grandes avanços da humanidade, digam o que disserem, e passa até pelo direito de a pôr em causa.
Aliás, já agora — estou a ter uma espécie de iluminação (estou a brincar) —, se calhar o que caracteriza uma verdadeira democracia é o facto de ela poder acomodar tudo o que é contra si.
Daí as questões do populismo, mas isso é outro assunto. Mas que, de facto, também são acomodadas e devem ser acomodadas por uma democracia. Desde que ela funcione bem, desde que ela esteja saudável. E estamos, neste momento, numa situação em que muitas democracias já não são saudáveis.
Muitos associam liberalismo ao fim do serviço público de saúde ou de educação.
A ideia de que o liberalismo é avesso aos direitos sociais é uma ideia errada.
O liberalismo clássico — que depois foi de alguma maneira recuperado, primeiro pela escola Austríaca, depois pela chamada escola de Chicago, tornando de novo o funcionamento da sociedade, em particular dos mercados, independente do Estado — já vem do século XIX. John Stuart [Mill], por exemplo, no livro "On Liberty" ["A Liberdade"], explica, com base no utilitarismo, a ideia de que deve haver um equilíbrio; máxima liberdade individual, mas, no fundo, num equilíbrio em que todos, o maior número possível, tenham direito à maior felicidade possível.
Repare que o Estado social constrói-se na Alemanha, que é um país que desde logo apostou na economia de mercado e foi um dos países que de alguma forma, depois da Segunda Guerra Mundial, enveredou por outro tipo de liberalismo, o ordoliberalismo [defende que a economia deve estar subjacente de regras criadas pelo Estado, para beneficiar a sociedade em geral], uma outra realidade, também com preocupações sociais.
Mas, como disse há pouco, é sobretudo nos Estados Unidos, numa resposta àquela que foi uma das primeiras grandes crises do capitalismo global, que é a crise de 1929, que se desenvolve essa lógica de uma sociedade onde o Estado intervém para garantir o acesso de todos ao mínimo de condições para os cidadãos poderem ser livres.
Podemos dizer que os países mais liberais são mais avançados?
Essa questão de dizer que um país é melhor ou pior por causa do liberalismo não faz sentido. Vivemos em democracia e a democracia tem uma característica principal, já disse há pouco, na tal iluminação, que é a de acomodar tudo o que é contra ela, devolvendo a palavra às pessoas. Mas outro dos aspectos é ela ser muito diversa. E mudar. Os regimes mudam.
Temos sociais-democracias que em muitos casos são formas liberais de gestão das sociedades, temos soluções mais conservadoras e, depois, temos uma mistura. Aliás, cada vez mais temos misturas.
Em Portugal onde se situam os liberais no espectro político? E há liberalismo de esquerda, liberalismo de direita?
Há. Por exemplo, há muitas teorias daquilo a que poderíamos chamar liberalismo de esquerda, no fundo, um liberalismo social, para pôr as coisas assim. John Rawls, por exemplo, foi um dos grandes pensadores da ideia do liberalismo social, da teoria da justiça, de uma justiça para todos — não vou maçar as pessoas com isso.
Isto tudo para não responder à sua pergunta [ri]. Obviamente, aquilo que é mais importante para qualquer partido, sobretudo os que se reclamam do liberalismo, é ser capaz de fazer duas coisas: primeiro explicar o que isso significa, segundo explicar onde se situa.
Julgo que esse tem sido, talvez, um dos problemas da Iniciativa Liberal, para falar concretamente desse partido, já que a pergunta é essa: não ter sido capaz de explicar onde é que se situa. Talvez porque também não saiba. Acho que era importante que soubesse.
Há aqui uma outra dimensão que tem de ser encarada de frente por quem faz política e, em particular, por quem se reivindica de uma qualquer ideologia, seja ela qual for. Praticamente, diria que todos os partidos têm esse problema em Portugal.
Poderá ser porque, de certa forma, isso os beneficia?
Há os partidos do centro, os chamados catch-all parties, que são aqueles que apanham tudo, que, por definição, quase não precisam de se explicar, podem dizer que são sociais-democratas, que são socialistas, são um bocadinho isso, e depois há os partidos que são mais ideológicos, como o Partido Comunista.
E podia falar do Chega, porque o Chega também tem essa confusão ideológica, é isso que permite que lhe chamem partido populista ou de extrema-direita, o que lhe quiserem chamar.
Quando um partido não é capaz de se identificar, de dizer quem é — e vivemos um pouco nesse tempo, em que é mais fácil o tal sound bite, os comprimidos políticos —, é mais fácil gerar confusão. Mas isso passa por outra coisa, que não há tempo para falar aqui, que é a reforma dos sistemas, em Portugal e nas democracias em geral. Precisamos mesmo de uma verdadeira reforma do sistema eleitoral, do sistema partidário. É crucial, e temos de mudar os partidos por causa disto também.
Ora, à Iniciativa Liberal falta isso, porque lhe faltou também definir bem onde é que se situa. Comecei por falar nisso e depois hesitei um pouco, que são as questões dos costumes, as questões relacionadas, por exemplo, com estas ideologias novas, identitárias e outras, onde tenho a sensação de que a Iniciativa Liberal ainda não se situou. Ou, pelo menos, não ficou claro para mim. E isso leva muitas vezes a hesitações quando se trata de políticas públicas concretas.
Porque aquilo que os partidos fazem, na linha desta evolução que nos deu a democracia, é garantir aos indivíduos os seus direitos, em particular o direito a serem livres. Mas como? Como é que funciona o Estado? E é disso que temos estado aqui a falar. Por isso, quando um partido propõe aos seus eleitores ou propõe aos cidadãos, na tal lógica de obtenção de uma maioria, determinado tipo de objectivos, isso tem de ser muito claro.
Porque é que as pessoas se sentem tão traídas tantas vezes? Porque na maior parte dos casos, aquilo que lhes é prometido não é cumprido. Isto que estou a dizer é uma banalidade, mas era bom que evoluíssemos. Mas para isso têm de evoluir todos, tem de evoluir o sistema no sentido de toda a gente, todos eles [partidos] perceberem que aquilo que estão a propor tem de ser aquilo que entregam. Então, se não forem capazes, não proponham.
Só que, como agora, se cada um estiver numa corrida a ver quem dá mais e mais e mais, ganha quem der mais. Depois não consegue dar, porque não é possível.
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