Os dados mais recentes, dos primeiros quatro meses do ano, apontam para a emissão de um valor médio de dióxido de azoto de 48 microgramas (μg) por metro cúbico (m3), em Lisboa. Além de ter superado os limites internacionais, os níveis de poluição do ar na capital portuguesa ficaram 3 μg por m3 acima da média registada no ano passado. Valores altos, portanto.
As notícias não são animadoras, ao contrário dos dados revelados em 2020 e 2021, quando as metas foram cumpridas. Essas boas notícias, contudo, têm uma explicação fácil.
“Os anos 2020 e 2021 foram fortemente condicionados pela pandemia. As medidas de confinamento, seja total ou parcial, e a aplicação do teletrabalho para a maioria da população derivaram numa drástica queda do número de deslocações. As emissões derivadas do tráfego rodoviário, principalmente da componente exaustão, mantiveram-se muito abaixo das emissões até 2019. Portanto, devemos considerar este biénio como algo atípico, e que não poderá ser utilizado como indicador de sucesso das políticas anti-poluição”, disse ao SAPO24 Ismael Casotti, da Associação ambientalista ZERO.
O mundo, e Portugal, abriu depois de mais de dois anos de confinamentos e a emissão de gases poluentes tem vindo a disparar gradualmente. De quem é a culpa? A ZERO começa por atribuí-las às autarquias.
“O quadro legislativo europeu, nomeadamente a Diretiva Quadro do Ar, obriga os estados membros a cumprirem determinados conceitos. Um exemplo é a obrigação de criar planos de melhoria da qualidade do ar para as cidades que registem incumprimentos nos parâmetros estabelecidos na mesma, pode ser PM2.5, NO2, etc. O plano deverá ser preparado, aprovado e implementado pela câmara municipal. Se quisermos atribuir culpas, teríamos de responsabilizar as autarquias”, diz Ismael, que também não iliba totalmente o Estado: “Não fiscaliza e não garante que se elaborem os planos de melhoria e os programas de intervenção”.
"Nas cidades históricas de Itália, França, Espanha, entre outros, as restrições ao trânsito proíbem a entrada indiscriminada de carros privados nos centros das cidades, permitindo somente a entrada dos residentes, serviços públicos essenciais e uma série de moratórias e autorização especiais/temporais"Ismael Casotti
Será assim necessário tomar medidas urgentes, para que os valores médios de gases não continuem a crescer e a ZERO dá alguns bons exemplos do que se faz pela Europa fora.
“A nível europeu, há décadas que se elaboram este tipos de planos, embora cada país o encare de forma diferente. Algumas autarquias ou autoridades metropolitanas atuam de forma a dar resposta a picos de poluição invernais, principalmente na Europa Central, mas não só. Nas cidades históricas de Itália, França, Espanha, entre outros, as restrições ao trânsito proíbem a entrada indiscriminada de carros privados nos centros das cidades, permitindo somente a entrada dos residentes, serviços públicos essenciais e uma série de moratórias e autorização especiais/temporais”, salienta, referindo depois o que poderia ser feito em Portugal.
“A ZERO defende a atualização da Zona de Emissões Reduzidas de Lisboa ou, desejavelmente, a criação de uma Zona Zero Emissões, quer em Lisboa, quer no Porto, abrangendo os centros das cidades. Nestas Zonas Zero Emissões, apenas poderão circular transportes públicos, veículos de residentes e veículos sem emissões de forma limitada. Da mesma forma, defende uma aposta firme na mobilidade suave, onde os peões possam circular em condições favoráveis, e com uma boa integração com ciclovias e transportes públicos fiáveis e acessíveis. O papel do Estado é fundamental para evitar a inação das autarquias, às quais deve ser exigida a criação dos Planos de Melhoria da Qualidade do Ar e a consequente implementação dos Programas de Execução. Para ultrapassar a representatividade limitada das estações de medição da qualidade do ar, é necessário efetuar medições complementares nas diferentes cidades para detetar outras situações que até o momento têm sido ignoradas.”
Estes são assim alguns exemplos práticos sugeridos, sendo que há outros além fronteiras que também são bem vistos por este especialista.
“Há uma questão, também dependente da coragem política dos governos, que é a alocação de fundos para estas grandes obras de requalificação do espaço urbano. Em Espanha o governo aprovou uma lei que obriga as cidades acima dos 50.000 habitantes a terem estes planos, mais acompanha esta medida com uma dotação financeira de 500 milhões de euros, além de outros 1000 milhões para a agenda urbana – mobilidade e digitalização”, diz.
"O papel do Estado é fundamental para evitar a inação das autarquias, às quais deve ser exigida a criação dos Planos de Melhoria da Qualidade do Ar e a consequente implementação dos Programas de Execução"
As Zonas de Emissões Reduzidas
Há muito que esta Associação defende a atualização das referidas Zonas de Emissões Reduzidas (ZER), tal como outros especialistas. Ainda assim, há pormenores que têm de ser revistos nestes locais de circulação rodoviárias e pedonal.
“A atualização da ZER é algo necessário mas não suficiente. Vamos supor que só carros muito recentes a gasolina, híbridos e elétricos podem entrar em Lisboa, mas sem restrições para não residentes. O que iria acontecer é que a baixa de Lisboa estaria colapsada por tráfego rodoviário relativamente silencioso, e com menos emissões, mas o espaço público continuaria a ser dominado pelos carros, quer a circular quer estacionados/parados em qualquer sítio. O que temos de impulsar é a atualização das regras de acesso à ZER, a sua fiscalização e um quadro legal atualizado, tal como o código de estrada. As medidas da ZER, e ainda melhor se for criada uma zona de ZERO EMISSÕES, deverão ser acompanhas por uma forte aposta pela mobilidade suave e transportes públicos, permitindo que só um numero reduzido de viaturas possa entrar na zona central da cidade, como os de residentes, serviços essenciais, etc”, disse Ismael Casotti, que dá um exemplo concreto do que poderia ser feito em Lisboa.
“O centro da cidade, como é o caso da zona Avenida-Baixa-Chiado, a zona onde foi anunciada em 2020 a implementação duma ZER, posteriormente esquecida pela autarquia, tem uma fraca dispersão de poluentes, com ruas estreitas e uma forte componente de tráfego rodoviário que se soma a outras fontes de emissões, como queima de biomassa, poeiras da construção/demolição das obras, emissões dos restaurantes, etc. Na nossa opinião, o tráfego nesta zona deverá ser o mínimo necessário e com menos emissões possíveis para garantir o bem-estar e a qualidade de vida dos residentes e dos visitantes. Na Europa há inúmeros exemplos, desde grandes cidades como Londres (Low Emission Zone e Ultra-Low Emission Zone), e uma série de cidades médias e pequenas que atuam por motivos de poluição e emergência climática”, refere, comparando as cidades portuguesas com algumas outras espalhadas pelo mundo.
“Há um atraso de várias décadas nesta área em relação a outros países. Alguns sinais positivos vieram de Lisboa com os planos lançados em 2019-2020, quer a aprovação do Plano de Melhoria mediante portaria 116-A/2019, quer com os planos de ZER Avenida-Baixa-Chiado, mas agora está tudo bloqueado e a autarquia não avança, pelo que a situação é bastante preocupante”, afirmou.
"O tráfego da zona Avenida-Baixa-Chiado deverá ser o mínimo necessário e com menos emissões possíveis para garantir o bem-estar e a qualidade de vida dos residentes e dos visitantes"
As diferenças entre Lisboa e o Porto
Os dados mais recentes 'apontam' assim o dedo ao incumprimento de Lisboa. Outras, no entanto, também têm estado em situação semelhante. A ZERO, contudo, realça mais a capital portuguesa por um simples facto.
"Até agora temos falado quase exclusivamente de Lisboa e há uma razão. É o único município português que já tem um plano de melhoria de qualidade do ar para resolver as situações de excedências de poluentes e incumprimento da legislação, embora não tenham elaborado o programa de execução. O que acontece no resto do país? Não há incumprimentos e portanto não há planos? A resposta não é tão linear!”, diz Ismael, abordando depois a situação de outras duas grandes cidades portuguesas.
“Há cidades que apresentam, ou têm apresentado nos últimos anos, algum incumprimento, como é o caso de Porto e Braga. E aí as câmaras não atuaram dentro das suas obrigações legais de elaborar o Portal de Monitorização da Qualidade do Ar. O Porto está a melhorar nos indicadores de qualidade do ar, mas sempre considerando os atuais valores limites. Nos próximos anos, quando a nova diretiva Quadro ao Ar estiver em vigor, estes serão muito mais baixos, por exemplo o NO2 provavelmente passará de 40 até 20 ug/m3, deixando o Porto e mais umas quantas cidades numa nova situação de incumprimento”, disse, particularizando ainda mais a cidade Invicta.
“Conheço bastante bem a Área Metropolitana do Porto, sendo que resido num concelho limítrofe. O trânsito têm piorado bastante depois da pandemia, comparado com 2019, mas podemos concluir que há um forte impacto das obras do metro e rodovia sobre as rotas de acesso aos locais de trabalho de Maia-Porto-Matosinhos para os residentes da margem sul do Douro. O mais interessante é, na minha opinião, ver como mudarão os padrões de mobilidade com as ligações Gaia-Boavista, nova linha do metro, com a paragem do metro que dará acesso ao Hospital de Santo António, uma referência no Norte do país junto ao São João. Também será interessante avaliar como evolui o condicionamento do trânsito no tabuleiro inferior da ponte Luís I que, com grande contestação do comércio local, voltou a abrir mas só admite alguns tipos de viaturas e autocarros”, referiu.
"Há cidades que apresentam, ou têm apresentado nos últimos anos, algum incumprimento, como é o caso de Porto e Braga. E aí as câmaras não atuaram dentro das suas obrigações legais"
Esta última medida, no Porto, com a restrição de viaturas e autocarros no tabuleiro inferior da ponte Luís I, é assim elogiada pela ZERO, mas pede-se mais à autarquia liderada por Rui Moreira.
“Há alguns sinais positivos, mas não são suficientes. A Câmara Municipal do Porto terá de atuar de forma mais holística planeando as novas políticas de mobilidade na baixa do Porto, terá de rever os indicadores de qualidade do ar e compará-los com a diretiva em vigor, isto é para um mero cumprimento da lei. Mas a segunda cidade de país deveria ir muito mais longe e ser pioneira na região Norte e dedicar um esforço muito maior em transformar a cidade seguindo a tendência de centenas de cidades europeias, com zonas ZER, ZZE, mobilidade suave, etc. Também é importante relembrar que as emissões dos motores são só umas das fontes de poluição na área metropolitana do Porto. A queima de biomassa para aquecimento doméstico com um parque habitacional em condições muito envelhecidas e com baixíssima eficiência energética vai contribuir a manter os níveis de partículas finas elevados nos meses mais frios do ano, agravando o problema”, concluiu.
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