Toda a família rezava terços, enquanto o oratório da casa tremia com a força dos bombardeamentos às portas de Goa, horas antes da entrada das tropas da União Indiana no então território português.
“Cada granada que explodia, o cabelo literalmente quase que se punha em pé. O oratório lá de casa tremia e nós todos a rezar terços, aquilo tudo era terrível”, assume, em entrevista à agência Lusa.
“Pensávamos que ia cair qualquer granada na cidade e explodia, rebentava com tudo aquilo”, resume, num relato vivo, e emotivo.
Começara a batalha naval entre o navio português Afonso de Albuquerque e a armada indiana, três a quatro navios, pelo que se lembra: “Eu nunca tinha pensado, pouca gente sabe o que é. Nós não víamos porque estávamos [em casa] e o combate estava a dar-se na costa, mas a explosão de granadas era uma coisa impressionante”.
Os jornais locais começaram a noticiar tensões em finais de novembro, mas só a partir da primeira semana de dezembro a ameaça tomara proporções que já não era possível ignorar, pela concentração de tropas indianas na fronteira, as constantes violações do espaço aéreo e aproximações de navios de guerra na costa de Goa.
“Víamos também movimentos das tropas portuguesas que não era normal, principalmente à noite, quando havia transporte ou deslocação por meios militares, na cidade de Pangim”, precisa.
Porém, a grande parte da população civil “não fazia ideia da gravidade da situação”. Devotos de São Francisco Xavier, padroeiro do oriente e santo protetor de Goa, os goeses saíam à rua em peregrinação.
“Esses acontecimentos foram-se agravando de dia para dia. Até que no dia 18 de dezembro, recordo-me muitíssimo bem, estava na missa, era à volta das sete e meia, na capela dos Jesuítas, em Pangim, e ouvimos um estrondo de todo o tamanho. O altar até tremeu!”, demonstra, com gestos: “Não sabíamos o que tinha acontecido. Quando a missa acabou, o sacristão disse ´olha dois aviões indianos foram abatidos ou caíram´”.
O que aconteceu foi que os aviões fizeram “um voo picado” para bombardear a emissora e o sacristão deduziu que tivessem sido abatidos ou que tivessem caído, explica.
Chegado a casa, situada a apenas 100 metros da capela, Filipe Monteiro viu que no palácio do Governo se queimavam papeis, “documentos confidenciais”, para que não caíssem nas mãos do opositor.
Pouco depois surgiu tropa portuguesa, que se pôs em posição de combate. “A minha casa fica mesmo à frente do rio Mandovi e naquela altura não havia tropas indianas do outro lado do rio, mas estavam todos em posição de combate”, atesta o médico, que se dedicou à medicina intensiva, em Portugal.
“O que tinha havido naquela altura era o bombardeamento da emissora de Goa e o bombardeamento do aeroporto”, indica. “A primeira coisa que eles fizeram”, diz, “foi pôr fora de combate qualquer contacto de Goa com Portugal”.
O então jovem Filipe frequentava o 2.º ano do liceu e, apesar do ambiente que se vivia, dirigiu-se para as aulas. “Era uma segunda-feira, 18 de dezembro, estava tudo deserto. Não estava ninguém”.
Regressado a casa, a família decidira partir para casa de um familiar. “Estando as tropas em posição de combate, a nossa casa podia ser atingida e então decidimos ir para casa de uma tia, não muito longe, mas noutro local da cidade”, explica.
Entretanto, a pressão aumenta e a família volta a refugiar-se noutra casa.
Daquele momento, lembra-se de uma casa grande, mas tão cheia de familiares que não consegue precisar o número: “Esse combate durou mais uma ou duas horas, depois acalmou. Vieram familiares de todos os lados, concentrámo-nos lá”.
Por volta das seis da tarde, já no exterior da casa, avistaram jipes com tropa portuguesa “em grandes movimentações”.
“Às tantas há um que para ao pé de nós e diz ´A situação está péssima´. Ele também já estava com os copos um bocadinho [risos] e diz ´Não sei o que vai ser de nós, tudo depende do que eles façam´", relata.
Com a emissora de Goa silenciada, as informações chegavam através da rádio Voz da América e da BBC.
“Lá para as oito da noite começámos a ver já movimentações de alguma população pró indiana naquele bairro, com vivas à União Indiana, com bandeiras da União Indiana, percebemos que já tinha quase tudo terminado”. Estava consumada a ocupação de Goa e o fim do Estado Português da Índia.
Filipe Monteiro ficou em Goa até 1972. Durante a adolescência envolveu-se politicamente para defender um Estado de Goa, tendo o concanim como língua oficial.
Goa é hoje um dos 28 estados da República da Índia. O concanim é língua oficial.
Portugal perdeu Goa há 60 anos e recebeu centenas de refugiados
Em três dias, de 17 a 19 de dezembro, consumou-se a tomada de Goa, a que se seguiram Damão e Diu, pondo fim a 451 anos de soberania portuguesa naqueles territórios.
Os jornais portugueses publicavam extensas listas com nomes de refugiados chegados a Lisboa via Carachi, através da ponte aérea montada a partir do Paquistão, onde muitos encontraram o primeiro refúgio.
A operação de retirada fez-se também por mar, no navio “Índia”, da Companhia Nacional de Navegação.
Apesar de o regime garantir até ao fim que Goa resistiria aos avanços das tropas da União Indiana, em 16 de dezembro o Diário de Notícias publicava a chegada à capital de um grupo de 250 mulheres e crianças retiradas daquele território, de acordo com um plano já estabelecido.
Muitos outros seguiram o mesmo caminho, entre naturais de Goa ou da metrópole nos dias que antecederam e sucederam o conflito, familiares de militares e civis.
O filme dos acontecimentos está espelhado nos jornais da época, consultados pela agência Lusa na Hemeroteca Municipal de Lisboa e através do arquivo digital da Fundação Mário Soares, no caso do Diário de Lisboa, que em 18 de dezembro saiu com cinco edições.
É este o dia que os goeses assinalam como o da consumação da tomada de Goa, “invasão” para Portugal, “libertação” para a Índia.
Portugal preparava-se para o Natal, discutia o Orçamento do Estado para 1962 e descobria a atriz italiana Sophia Loren, quando Nehru surge aos olhos da nação como “um falso pacifista”, um dos termos mais brandos usados na imprensa nacional para descrever o primeiro-ministro indiano de 1947 a 1964.
“As intenções de Nehru de atacar a índia portuguesa condenadas pelo jornal Daily Mail”, titulava o Diário de Lisboa em 06 de dezembro, que no dia seguinte noticiava um agravamento da situação em Goa e a passagem de aviões militares indianos sobre Damão e Diu, ao mesmo tempo que se avistavam navios ao largo de Mormugão.
Após vários relatos de recontros esporádicos nas fronteiras, em 16 de dezembro, o jornal O Século noticiava - “Aproxima-se a hora zero em que forças indianas poderão desencadear a sua ofensiva contra as terras do Indostão”.
Espanha apoiava, como a Inglaterra, que já havia perdido o domínio na índia, o envio de observadores internacionais independentes e o Brasil oferecia-se para mediar conversações.
Em Bombaim, o semanário Blitz, redigido em inglês, escrevia que as forças indianas marchariam sobre Goa no fim de semana, o que veio a confirmar-se.
A imprensa portuguesa noticiava em 18 de dezembro (segunda-feira) a invasão de Goa, Damão e Diu e divulgava uma nota oficiosa da Presidência do Conselho, na qual o Governo manifestava a confiança de que todos saberiam “cumprir o seu dever”.
Três dias antes, o então secretário-geral da ONU, o birmanês U. Thant, enviara um telegrama a Salazar sobre a “séria situação” na fronteira da Índia com Goa: “Venho urgente e respeitosamente apelar a vossa excelência e para o seu Governo no sentido de assegurar que a situação não se deteriore ao ponto de poder constituir ameaça à paz e à segurança”.
O responsável da ONU sugeria “negociações imediatas”, com vista a encontrar “uma rápida solução para o problema” e informava que havia dirigido idêntico apelo ao primeiro-ministro da Índia.
Salazar responde no mesmo dia, afirmando ser o Governo português “muito sensível ao apelo” e aceitando negociações onde e como o Governo de Nova Deli desejasse.
Num discurso, em 03 janeiro, na Assembleia Nacional, onde foi recebido em ovação, Salazar apresenta-se com problemas na voz e entrega o texto para ser lido pelo presidente da câmara.
“Não costumo escrever para a História e sinto fazê-lo hoje”, começa por dizer, assumindo que a nação ficara “despojada do Estado Português da Índia”, Goa, portuguesa há 450 anos.
Nas palavras de Salazar, a “invasão de Goa” foi “um dos maiores desastres” da História de Portugal, um “golpe muito profundo na vida moral da nação”.
Ao longo de uma hora e meia de comunicação, documentada em imagens de arquivo da RTP, Salazar acusa Nehru de ser racista e rejeita negociar “a cedência de territórios nacionais”.
* Por Ana Mendes Henriques, da agência Lusa
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