Mais um ano, mais uma edição do Primavera Sound Porto. Depois do facelift operado em 2023, neste primeiro dia do certame não houve alterações de maior a apontar no que toca à disposição do festival: o polémico Palco Porto, instalado junto à Estrada da Circunvalação continua a ter honras de espaço principal, apesar do Palco Vodafone, com o seu deleitoso anfiteatro natural e dimensões similares, continuar a recolher a preferência generalizada.
Correção: houve sim uma mudança. Desta feita, metade do Palco Porto dá para uma zona VIP delimitada com gradeamento, espécie de curral exclusivo para quem pagou pelo privilégio, mesmo em frente aos artistas. A ideia em si já parece má, pior ainda se revela quando acontece a metade dos espectadores no recinto comum estar a vibrar com os artistas e a metade que optou pelo auto-auto-Apartheid assistir passivamente a meros metros do palco. Enfim, são escolhas.
Não que esta bizarra disposição tenha propriamente provocado mácula no concerto de PJ Harvey. Ao longo das suas mais de três décadas de carreira, a rainha do rock alternativo britânica certamente terá passado por piores provações — até mesmo a que a afligiu em palco, quando a sua guitarra falhou uma e outra vez no início do concerto. Pedidos de desculpa feitos, pedidos de desculpa aceites — uma pequena lasca num monumento de música ao vivo, capaz de fazer gente adulta desfazer-se em arrepios e pele de galinha, como assistimos.
Arredada dos palcos nacionais desde 2016 — quando esteve neste mesmo festival e também em Lisboa — Polly Jean Harvey desta vez trouxe consigo “I Inside the Old Year Dying”, álbum mais bucólico, folk espartana que soa mais a outono e menos a verão. O início fez-se de ritmos quase marciais, melodias repetidas, pontuadas pela voz — aguda, nunca frágil — da artista que dá nome à restante banda — onde permanece John Parish, seu companheiro musical de longa data.
O início gentil deu lugar à assombrosa sequência de “This Glorious Land”, “Let England Shake” e “Words That Maketh Murder” — três temas que, pela temática anti-guerra e desgosto pela atuação da comunidade internacional, demonstram ser tão urgentes agora como quando foram lançados em 2010, criticando a guerra no Afeganistão. O refrão da primeira — “what is the glorious fruit of our land? / the fruit is deformed children” [“qual é o fruto glorioso da nossa terra / o fruto são crianças deformadas”] — recorda a mortandade que grassa na Ucrânia e em Gaza; já a referência irónica da terceira a “Summertime Blues” de Eddie Cochran — ”what if I take my problem to the United Nations?" [“e se eu levar o meu problema às Nações Unidas”] — denuncia a falência das nossas instituições. Sem precisar de fazer proclamações, a inglesa deixou uma mensagem para quem a quisesse ouvir.
Desengane-se, porém, quem pense que PJ Harvey veio ao Porto fazer um comício — deixemos isso para Ursula von der Leyen. Quando não esteve a rockar como gente grande em “50ft Queenie” ou “Dress”, esteve a revelar uma série de apocalipses pessoais e sentimentais, acompanhada por arranjos ora sóbrios, ora luxuriantes, quase sempre elegantes. “The Desperate Kingdom of Love” — onde esteve apenas munida de guitarra acústica — foi um claro destaque, assim como “Down By the Water” e a sua toada arrepiantemente ameaçadora ou “To Bring You my Love”. Ao longo de todo o concerto, o cenário atrás ia mostrando uma parede com a tinta a descascar, sinal da impiedade do tempo. Precisamente o oposto do que a inglesa apresentou em palco.
Mitski e a arte de fazer tanto com tão pouco
Para deixar o público siderado, tudo o que Mitsuki Miyawaki — mais conhecida por Mitski — precisa é uma plataforma circular no centro do palco Vodafone e um jogo de luzes. De regresso a Portugal depois de estrear-se em terras lusas neste mesmo palco em 2017 e repetir a dose dois anos depois em Paredes de Coura, a cantautora norte-americana de 33 anos escalou ao topo da montanha da música independente e por lá ficou a reinar. Aliás, fê-lo proferindo o nome do seu último álbum, “The Land Is Inhospitable and So Are We”, que fê-la expandir a sua paleta sonora da indie pop/rock à folk americana e ao country.
Enquanto a sua banda a acompanhava numa profusão de instrumentos — do violoncelo ao acordeão, dos teclados à percussão — Mitski entrou num transe performativo raras vezes visto. “Working for the Knife” serviu de aviso, tendo a cantora sublinhado que, apesar de “amar muito” o seu público — que, diga-se, acorreu em barda a este palco —, ia “entrar em personagem”. “Posso não reconhecer-vos”, avisou.
Dito e feito, o que se seguiu foi um percorrer pelo seu catálogo de tortuosas canções de (des)amor — próprio e por outrém — retirado de grande parte da sua discografia. Tudo isto, enquanto dançou que se desunhou. Em “The Frost”, fez air guitar exagerado; já “I Bet on Losing Dogs” serviu para se prostrar como um cão. Com “Star”, correu atrás de feixes de luz que lhe fugiam por entre as mãos, mas em “Heaven” conseguiu captar um, dançando com ele como se de um parceiro se tratasse. Com Mitski, tudo é pose, tudo é teatro: cada gesto é medido, cada investida que faria Bob Fosse corar é pensada. A mão que gira no ar e vai parar à cintura, a perna pontapeia o vazio, a careta que força na sua cara, todos estes são instrumentos quase tão essenciais quanto a sua voz — servem a música, servem o espetáculo.
Houve momentos em que Mitski, se assim desejasse, nem teria precisado de pôr o aparelho vocal a trabalhar — bastava calar-se que o público, de letra bem sabida, teria feito o trabalho por si. Foi assim no puro êxtase de “Pink in the Night”, tal como na dolência de “First Love/Late Spring”. E se há que reconhecer que a reta final do concerto começou a perder fulgor cénico e musical em “Bug Like an Angel”, também seria difícil manter a energia imaculada ao longo de hora e meia de concerto num festival.
Foi por isso que recebemos de coração aberto — e o restante público, livre de amarras profissionais, mais ainda — “Nobody”, esse hino quase-disco à miséria de nos sentirmos um zé ninguém. Já em ponto de rebuçado, o público explodiu, tendo a igualmente antémica “Washing Machine Heart” servido para apanhar os cacos. “Se eu morresse amanhã, diria só ‘ok’”, afirmou prazenteiramente Mitski ainda no início da sua prestação. No final, ousamos dizer que boa parte do público teria aceitado igual destino, depois deste concerto.
SZA e a arte de fazer menos com mais
Em certo aspeto, SZA mostrou logo de seguida ser a antítese de Mitski, apesar de ambas terem uma abordagem maximalista similar à música ao vivo. A cantora norte-americana — dona de uma neo-mistura de R&B, Pop, Soul e Rap que lhe valeu encómios unânimes com o lançamento de “SOS” no ano passado — chegou ao Palco Porto com um batalhão de apetrechos. Desde uma turma de bailarinas a uma estrutura de vários metros a lembrar a ponte de comando de um navio, passando pelos efeitos que apareciam nos ecrãs laterais.
Não só toda esta parafernália é esperada de quem ocupa — ou espera ocupar — um lugar cimeiro no panorama pop contemporâneo, como não foi só isso em si o que provocou tamanha clivagem face ao concerto anterior. É que se o jogo cénico de Mitski é pensado para potenciar o espetáculo, adensar a experiência musical, o de SZA só serviu para distrair da sua voz extraordinária e canções à flor da pele.
Por mais divertido que seja ver a cantora em cima de uma bola de demolição ou de espadas em riste no mega sucesso “Kill Bill”, por mais impressionante que seja ver um farol a surgir em palco e a emitir feixes de luz para o público, tudo isto acrescenta ruído. E o pior é que isso nem foi o pior. SZA é também vítima da tendência para fazer de todos os arranjos de uma banda ao vivo o mais bombásticos o quanto possível. Quando cada canção é acompanhada dos mesmos fills de bateria, das mesmas sequências de notas pujantes, o resultado é que começam todas a parecer o mesmo. É música ao vivo que não soa viva, tão trabalhada é que acaba por ficar estéril.
SZA parece saber disso, acelerando pela sua setlist com músicas tocadas quase ao estilo de uma medley frenética que acha que o seu público vai se aborrecer se tirar o pé do pedal — e não, não foram apenas canções encurtadas por falta dos artistas convidados das versões originais. Sem espaço para respirar entre excessos opostos, é a própria cantora que acaba eutrofizada.
Quem foi ao Primavera Sound Porto para vê-la provavelmente discordará desta análise, o que é inteiramente justo, dada a festa que o público foi fazendo. Não obstante tudo o que foi escrito acima, SZA deu um bom espetáculo. Mas não deu um grande espetáculo. Para isso eram necessários mais momentos como a sequência de “Open Arms” e “Nobody Gets Me”, ou já no fim entre “Good Days” e “20 Something” — momentos onde a cantora apresentou-se mais aberta, mais vulnerável — menos uma artista pop e mais uma pessoa. Sendo a sua estreia em Portugal e tendo — presume-se, espera-se — uma longa carreira pela frente, é aguardar que volte com outra abordagem.
Uma arma a disparar em seco, um furacão chamado Amyl
Claro está que um festival como o Primavera Sound Porto não se faz apenas de headliners.
Houve muita música a fazer-se soar no Parque da Cidade, e felizmente nem toda soou com a frouxidão dos Militarie Gun. A banda de Los Angeles estava notoriamente em território lodoso — e não apenas porque se encontrava em frente ao relvado frequentemente lamacento do Palco Porto. É que, se por um lado, são uma banda de hardcore punk a tocar longe do público (o seu habitat natural são pequenas salas onde há saltos mortais a partir do palco a cada minuto) e diante da já denunciada zona VIP, por outro viram-se perante uma moldura humana que, manifestamente, não estava ali por eles.
“O meu amor vai para todos os fãs de SZA que têm de sofrer com isto”, disse o vocalista Ian Shelton. Foi uma de várias tentativas de tentar e fazer rir dadas as circunstâncias. Ainda assim, os Militarie Gun tocam um hardcore pouco hard, na linha do que várias bandas têm feito ao ir beber ao rock alternativo de uns Pixies ou uns Weezer. Com um som mais acessível, tinham todas as condições para sair do Porto com uma vitoriosa prestação — não aconteceu, nem mesmo ao tocarem a “Song 2” dos Blur.
O mesmo não se pode dizer do magnetismo animal dos Amyl and the Sniffers. Das duas vezes que os australianos passaram pelo nosso país, deixaram estragos, e não há duas sem três. Mostrando que não há desculpa para não incendiar o público, o quarteto de punk javardão de Melbourne fez do Palco Vodafone uma casa de banho onde a sola cola ao chão — muito por força do carisma da vocalista Amy Taylor e da urgência dos seus riffs.
Festivos por vezes, contemplativos outra menos — “Knifey”, por exemplo, arrepia na sua frontalidade com que aborda a violência sobre as mulheres —, os Amyl and the Sniffers não descansaram enquanto não puseram toda a gente a gritar “oi oi” como se os anos 80 tivessem sido ontem. E se é verdade que a falta de originalidade e variedade do seu som começa a cansar passado algum tempo, tudo se perdoa quando têm a atitude certa.
Estes, porém, não foram os primeiros australianos a subir a um palco nesta edição. Essa honra pertence aos Royel Otis, banda que parece o resultado de um algoritmo onde foram introduzidos os comandos “Primavera”, “fim de tarde” e “trailer de festival”. E como quase tudo o que o algoritmo oferece, soube bem ouvi-los, mas não deixam memória. Por fim, nota ainda para os American Football, lendária banda emo cuja vinda inédita a Portugal foi um marco em si mesmo, mas cujo concerto já de madrugada desafiou a resistência de todos aqueles que não os seus fãs mais ardentes.
O segundo dia do Primavera Sound Porto conta com Lana del Rey e Justice como cabeças de cartaz e, ao contrário deste primeiro, está previsto que chova — espera-se apenas que não seja em quantidades diluvianas como em 2023. Pelo sim, pelo não, é melhor levar os botes insufláveis.
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