Os números de sindicalizados caem há décadas em Portugal. No final dos anos 70, a taxa ultrapassava os 60%. Hoje em dia, rondará os 16%. «Temos tido uma estabilização em baixa», refere Hermes Costa, sociólogo e investigador do Centro de Estudos Sociais (CES), da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.

Filipe Marques, dirigente da Comissão Executiva do Conselho Nacional da CGTP-IN, confirma. Apesar de anotar que houve uma «muito ligeira» subida do número de filiados nos sindicatos desta central sindical nos últimos quatro anos, aponta que a precariedade é inimiga da sindicalização.

«Os trabalhadores têm receio. Não deixam de ter problemas, até têm mais. Mas muitas vezes têm receios naturais de se organizar, pela condição em que estão, pela fragilidade do vínculo», descreve.

Ainda assim, a precariedade não explica tudo. Hermes Costa acrescenta outras justificações para completar o cenário: a individualização, a segmentação dos mercados de trabalho, a globalização da economia. Mas também «a questão do [não] rejuvenescimento dos quadros. Acaba por se usar por vezes a expressão “sindicalismo jurássico”. Talvez até exageradamente». «O excesso de proximidade partidária pode ser visto também, por vezes, como um elemento de perturbação», remata.

«O sindicalismo não tem outra alternativa que não lutar pela sua reafirmação», considera o investigador. «Têm de vencer ainda o dilema persistente entre maximização das oportunidades geradas pelas tecnologias versus a necessidade de manter lutas físicas dos trabalhadores».

Portugal. 2021. António Fernandes tem 55 anos e é motorista TVDE (Transporte Individual e Remunerado de Passageiros em Veículos Descaracterizados a partir de Plataforma Eletrónica). É um dos quase 30 mil motoristas certificados em Portugal — dados do Instituto para a Mobilidade e os Transportes (IMT).

António Fernandes é também porta-voz do Sindicato dos Motoristas TVDE e acredita que, «neste momento, não estão a exercer todos os motoristas». «Uma grande parte deles desistiu, se calhar alguns nunca começaram», afirma, em declarações ao SAPO24.

Faz o mesmo raciocínio para o número de associados do sindicato. Conta-nos que, atualmente, têm aproximadamente 500 inscritos, mas que, na realidade, devem ser menos. «Com a pandemia, houve alguns motoristas que faziam parte dos órgãos sociais que deixaram de ser motoristas», explica.

Na altura de se organizarem, os motoristas decidiram criar uma estrutura sindical própria. António Fernandes justifica a decisão por não existir, em 2018, «nenhum sindicato, nem da CGTP nem da UGT, ou qualquer outro, que estivesse vocacionado para a área TVDE».

Filipe Marques, da CGTP, recorda que «há três anos não havia o nível de aproximação que há hoje, nem de organização sindical». Atualmente, já «há planos de trabalho direcionados para ouvir os trabalhadores» das plataformas digitais, e alguns deles — o dirigente não consegue precisar quantos — associaram-se a sindicatos desta central sindical, designadamente ao Sindicato dos Trabalhadores de Transportes Rodoviários e Urbanos de Portugal (STRUP).

Em Portugal, em rigor, os motoristas TVDE não são trabalhadores de plataformas digitais. Um motorista TVDE trabalha para uma empresa, e é a empresa que tem relação com a plataforma eletrónica, que disponibiliza a aplicação que faz a ligação entre o cliente e o motorista.

Greve nacional de trabalhadores TVDE convocada nas redes sociais «para uma maior tarifa por KM - 0,75€/Km; para uma menor comissão; para uma tarifa mínima maior: 3,50€» (Lisboa, 6 de janeiro de 2020). créditos: MÁRIO CRUZ/LUSA

"Estamos a caminhar para o ponto em que ou levamos grátis o cliente ou, então, ainda vamos pagar"

Assim é desde que saiu a «lei da Uber», em 2018 — desta forma chamada por a Uber ter sido a primeira plataforma a operar no país, altura em que se gerou grande contestação e tensão entre motoristas de táxis e desta plataforma. Atualmente, há nove plataformas inscritas no IMT, mas, segundo António Fernandes, apenas três estão efetivamente a operar — Uber, Bolt e Free Now.

São três as reivindicações que apresentam: existência de um tarifário mínimo para cada viagem — «estamos a caminhar para o ponto em que ou levamos grátis o cliente ou, então, ainda vamos pagar», desabafa António Fernandes —; definição de um contingente de carros ou motoristas — sendo necessário estudar o número mais ajustado —; e criação de contratos coletivos de trabalho.

António Fernandes diz que é dos poucos em Portugal que têm contrato de trabalho como motorista TVDE. Estima que, em cada 10 motoristas, 9 estarão a trabalhar em regime de prestação de serviços (os chamados «recibos verdes») e 1 com contrato de trabalho. Pelo menos, esta é a sua perceção enquanto porta-voz do Sindicato dos Motoristas TVDE. Não há números oficiais.

Mas nem todos nas plataformas digitais preferem ter contrato de trabalho

Miguel e Raúl são estafetas da Glovo (nomes fictícios a pedido dos próprios, que têm receio de sofrer represálias). Encontrámo-los a subir o passeio da Avenida Fontes Pereira de Melo, centro de Lisboa (a zona com maior movimento de estafetas na capital), numa quinta-feira às 22h. Um de bicicleta elétrica, o outro de trotineta. Estavam no final do horário de trabalho.

Os dois, estrangeiros, explicam que trabalham diretamente para a plataforma e que, para começar a exercer a atividade, o processo é relativamente simples: o trabalhador inscreve-se no site, envia os documentos necessários e aguarda a aprovação. Esta agilidade torna estes trabalhos muito apetecíveis para a população migrante.

Raúl admite que, mesmo assim, já foi mais fácil. Hoje em dia, a lista de espera para começar a operar é longa. Conhece muitas pessoas nessa situação.

Trabalham como independentes, e não é o rendimento que os insatisfaz. A meio da conversa, Miguel faz-me sinal e aponta para o ecrã do seu telemóvel. Ao longe, só consigo ver o número que aparece em destaque: qualquer coisa como 690 euros. «É o que ele ganhou nas duas últimas semanas», comenta, ao lado, Raúl. Miguel confirma: faz, em média, 1 500 euros por mês. «Mas sempre a pedalar sem parar», acrescenta Raúl.

Os estafetas da Glovo deslocam-se, habitualmente, de mota, bicicleta ou trotineta. créditos: EPA/Jose Jacome

Em Lisboa, um estafeta da Glovo recebe, por cada viagem, 1 euro de taxa de base, 0,24 euros por cada quilómetro percorrido, desde que é chamado até ao cliente — a distância é calculada automaticamente pelo trajeto mais curto indicado no Google Maps — e uma taxa de bónus, consoante a hora (os valores de pagamento diferem de cidade para cidade).

À soma final é preciso descontar as obrigações fiscais de trabalhador independente. A cargo do estafeta estão ainda as despesas com o meio de transporte, que precisa de ser o próprio a garantir.

Os valores do rendimento de Miguel são difíceis de alcançar, considera Artur, um outro estafeta da mesma plataforma (nome também fictício). Artur é português e estudante do ensino superior. Este ano já não pode fazer mais disciplinas e, por isso, aproveita para ganhar algum dinheiro enquanto estafeta. Diz que consegue chegar aos 700 ou 800 euros mensais, a trabalhar cinco horas por dia, sete dias por semana, em mais do que uma plataforma.

A todos eles, agrada-lhes a condição de trabalhadores independentes. Gostam de poder definir os horários em que trabalham e os dias de descanso. Concordam, no entanto, que é necessário regular algumas questões neste mercado, porque as condições de trabalho são altamente imprevisíveis e, às vezes, inseguras.

Miguel, Raúl e Artur expressam ter extrema dificuldade de comunicação com a empresa, incluindo para esclarecimento de questões como a alteração dos valores de remuneração. Artur ironiza quando fala das respostas que recebe aos emails que envia (esta é a forma preferencial de comunicação dos trabalhadores com a empresa): «As respostas às vezes são tão estranhas, que parece que do outro lado está uma criança de sete anos ou uma máquina».

Num email a que o SAPO24 teve acesso, a Glovo informou, em outubro passado, os estafetas sobre os novos modelos de pagamento. Nessa mensagem, envia um link com informação relativa às tarifas praticadas em cada cidade e disponibiliza dois horários para reuniões online para esclarecimento de dúvidas. Mas, na opinião destes trabalhadores, a empresa não explica, de forma esclarecedora, a alteração dos critérios de avaliação dos estafetas, que ditam o rendimento — na Glovo, a ordem de escolha dos horários, por exemplo, é feita em função da pontuação: os trabalhadores com melhor pontuação escolhem primeiro.

Um outro problema comum a todos é o da sensação de insegurança. São vários os relatos de roubo das encomendas, de dinheiro ou do meio de transporte. Tanto Miguel como Raúl já foram assaltados. Artur nunca passou por isso, mas confessa que se recusa a fazer as entregas quando considera que a zona é de risco. Como consequência, pode perder o horário de trabalho desse dia, caso já tenha esgotado as três reatribuições de serviço a que tem direito. A Glovo exclui algumas zonas do seu mapa de entregas, quando o histórico revela elevado risco para os estafetas. Mesmo assim, os três gostavam que a empresa acautelasse melhor estas situações, comunicando de forma mais direta com os trabalhadores quando há casos de agressão e definindo de forma mais proativa as áreas de perigo (e por isso fora das entregas).

As preocupações da Comissão Europeia estão em linha com as de Miguel, Raúl e Artur. «Certos tipos de trabalhos em plataformas digitais estão também associados a condições de trabalho precárias, que se refletem na falta de transparência e previsibilidade das disposições contratuais, em desafios em matéria de saúde e segurança e no acesso insuficiente à proteção social. Outros desafios relacionados com o trabalho das plataformas incluem a sua dimensão transfronteiriça e a questão da gestão algorítmica», lê-se no comunicado de imprensa de anúncio da consulta dos parceiros sociais para a regulação destes empregos.

Para onde está a ir o trabalho?

A explosão da «gig economy»

Sem definição oficial ainda, «gig economy» refere-se ao mercado de trabalho em que a atividade é desenvolvida através de plataformas digitais e em que as tarefas são atribuídas «à peça» e individualmente a cada trabalhador — estafetas de entregas, motoristas das plataformas eletrónicas, trabalhadores que fazem tarefas de design, tradução, etc.

É, por vezes, considerado trabalho precário.

No mundo...

Cinco vezes mais plataformas digitais na última década:

  • 2010: 150
  • 2021:  777

Em Portugal...

  • Terceiro país europeu em que mais se recorre a este tipo de trabalho.
  • Mais de 1 em cada 10 pessoas já trabalharam em plataformas digitais.

(Fontes: OIT e Comissão Europeia)

O trabalho nas plataformas digitais é um «fenómeno em crescimento» — cerca de 11% da população ativa da União Europeia diz já ter prestado serviços para uma plataforma.

O futuro já chegou. E nós, como nos estamos a preparar?

Várias questões começam-se a levantar: que relação têm estes trabalhadores com as entidades patronais? Quem são os patrões quando o serviço é distribuído por uma plataforma? A que direitos laborais devem estes trabalhadores ter acesso?

Do lado dos patrões, António Saraiva, presidente da Confederação Empresarial de Portugal (CIP), afirma: «Sendo uma nova realidade, estamos disponíveis para, em sede de Concertação Social, apreciarmos e discutirmos evoluções que a lei possa vir a conter para regular corretas formas de relações de trabalho».

Quando questionado sobre se as plataformas digitais, como a Uber ou a Glovo, estão representadas na CIP, António Saraiva responde que não. «Não sei se estarão nalguma das nossas associações, mas creio que não».

Em Portugal, o Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho, ainda em desenvolvimento e elaborado a pedido do Governo, apresenta inúmeras linhas de reflexão que podem ser usadas como pistas para políticas públicas futuras.

Uma delas é a proposta de «criar uma presunção de laboralidade adaptada ao trabalho nas plataformas digitais».

Que quer isto dizer? Teresa Coelho Moreira, co-coordenadora científica do documento e professora auxiliar na Escola de Direito da Universidade do Minho, explica: «É necessário encontrar mecanismos que tentem saber qual a relação existente entre quem presta a atividade na plataforma e a própria plataforma, atendendo a que vários fatores clássicos numa relação de trabalho não são iguais num trabalho nas plataformas. Não quer dizer que não seja uma relação de trabalho ou que não seja uma relação de trabalho autónomo». «Não é uma resposta clara, porque estamos perante uma nova forma de prestar trabalho», acrescenta.

No Reino Unido, por exemplo, o Supremo Tribunal decidiu, recentemente, que os motoristas da Uber devem ser considerados «workers» — termo usado no ordenamento jurídico britânico para designar uma terceira categoria que não a dos trabalhadores autónomos, nem a dos trabalhadores «típicos», explica Teresa Coelho Moreira.

Os «workers» têm, por exemplo, direito a salário mínimo, férias pagas e podem aderir a um esquema de poupança-reforma, para o qual a empresa contribui.

Já em Espanha, o Governo chegou a acordo com os parceiros sociais e introduziu a figura da «presunção de estatuto de assalariado», aproximando os estafetas de entregas da proteção conferida pelo regime dos trabalhadores por conta de outrem. «Porque estão sujeitos a um enorme controlo por parte da plataforma, a um tempo de trabalho definido pela plataforma, têm um algoritmo que os segue, têm um algoritmo que decide quem é que vai [fazer cada serviço]», esclarece Teresa Coelho Moreira.

«O trabalho gerido por plataformas tecnológicas é talvez a questão mais crucial do futuro» para as relações laborais, assume o investigador Hermes Costa.

«As mudanças a que assistimos são de tal ordem que muitos defendem estarmos perante uma “Quarta Revolução Industrial”», surge nas primeiras linhas da versão provisória do Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho, estes dias em discussão na Comissão Permenante de Concertação Social.

O trabalho gerido por plataformas tecnológicas é uma preocupação à escala internacional e está a mudar «todas as dimensões das nossas vidas», assim o diz a Organização Internacional do Trabalho (OIT), nrelatório publicado em fevereiro deste ano. Já a Comissão Europeia tem estado, nas últimas semanas, a consultar os parceiros sociais para garantir a proteção social dos trabalhadores das plataformas digitais.

Por cá, para chegar aos trabalhadores do futuro, o movimento sindical usa os formatos clássicos  — «Não há outra receita: é ouvir os trabalhadores», garante Filipe Marques, da CGTP. Ao lado, surgem novos sindicatos para agregar aqueles que trabalham para plataformas digitais. Uns e outros assumem colaborar. Mas sem se fundirem. Ainda assim, já vão aparecendo juntos nas ações da central sindical. Andam a experimentar o que pode funcionar na luta pelos direitos laborais.

Em 1848, Marx e Engels, no Manifesto Comunista, exclamavam: «Proletários de todo o mundo, uni-vos!». Quase 175 anos depois, ainda os trabalhadores andam a descobrir como o fazer. Aliás, num mundo cada vez mais conectado parece ser cada vez mais difícil essa união. À escala transnacional, mas também num mesmo país.

[Artigo atualizado às 18h13 do dia 01/05/2021 — Correção para acrescentar a taxa de bónus no pagamento aos estafetas da Glovo e para clarificar que o estafeta, quando reatribui uma entrega a um colega antes de aceitar o serviço, só perde o horário de trabalho dia ao fim de três reatribuições.]