É quarta-feira, dia habitualmente dedicado a visitar as famílias no âmbito do acompanhamento semanal às raparigas, entre os 10 e os 17 anos, que participam no programa de terapia pelo surf trazido há quatro anos para São Tomé e Príncipe por Francisca Sequeira, fundadora da Surfistas Orgulhosas na Mulher d’África (SOMA).
Sobrecarregadas desde cedo pelas tarefas domésticas, em risco de abandono escolar e de gravidez precoce e frequentemente vítimas de maus-tratos físicos e psicológicos, a missão do programa é promover junto destas raparigas consciência sobre os seus direitos, apoiá-las na escola e promover a educação para a saúde mental.
Após uma pausa de alguns meses para reorientar o projeto, é preciso agora assegurar que as autorizações são assinadas pelos pais a tempo de as raparigas marcarem presença na semana de socialização.
Por isso, Francisca Sequeira, acompanhada dos mentores das jovens surfistas, vai de porta em porta num trabalho laborioso de convencimento, umas vezes do pai, outras da mãe e outras mesmo da própria criança.
Minda, 14 anos, é um desses casos desafiantes. Participou no primeiro curso de surf da SOMA, que durou apenas seis meses, e agora Francisca quer trazê-la de volta, mas a menina, que é muito tímida, refugia-se em dores de cabeça reais ou imaginarias, ou na chuva ou no sol intenso para não aparecer no centro.
“É um dos casos em que não conseguimos perceber qual é o trauma ou sequer se há trauma. Ela não se abre e quando tentamos em grupo e damos espaço para a partilha, ela não quer partilhar”, relata Francisca.
Um silêncio que traz ralada Helena, a mãe, que se vira para a SOMA na esperança de uma encontrar uma luz sobre o que se passa com a filha.
“Ela fala muito pouco, tem muita vergonha. Precisa de falar e de ajuda nos trabalhos da escola e eu não sei ler”, diz Helena, enquanto mexe a panela de kisaca, um prato típico, que todos os dias cozinha para vender na cidade e que é a base do sustento da casa, onde já viveram 10 filhos e agora só restam Minda e um irmão mais novo.
A pensar em casos como o de Minda, Francisca espera conseguir operacionalizar uma parceria com a Universidade de São Tomé e Príncipe que, pela primeira vez, formou psicólogos na ilha que irão trabalhar com a SOMA.
A mãe garante que Minda está liberta de tarefas domésticas e insiste para que vá às aulas de surf e se concentre nos estudos da 7.ª classe que frequenta na escola Mestre António, em Santana.
Mas, apesar de o ano letivo já ter iniciado, continua em casa porque ainda lhe falta algum material. Por estes dias, Minda anda também descalça pelo lamaçal que são as ruas de Santana para poupar o único par de sandálias que há de levar para a escola e para o centro SOMA quando a temporada de surf começar.
O apoio escolar é uma das áreas do programa melhorada a partir desta temporada, com a SOMA a responsabilizar-se pelo pagamento das propinas e do material escolar das raparigas que frequentam o clube, um aliciante que pode fazer a diferença na hora da negociação com os pais mais irredutíveis, como o de Jéssica.
Aos 17 anos, Jéssica frequenta a 11.ª classe e também continua em casa por falta de material escolar. Anda às voltas com a lavagem da loiça e a limpeza do terreno em volta da casa quando chega o pessoal da SOMA para recolher a autorização do pai para frequentar as aulas de surf.
Sentado numa cadeira de plástico, o pai mostra-se desagradado com o que considera ser o desleixo da filha em relação às tarefas da casa.
“Só pensa no surf e não faz o trabalho de casa. Se organizar o trabalho da mulher, posso deixá-la ir”, diz Caíque, admitindo que quando chega a casa e vê que as tarefas não foram feitas “tem de se chatear” com a filha e acaba por lhe bater.
Sem criticar diretamente o pai, Francisca Sequeira assinala que esse não é um comportamento aceitável e sugere um compromisso em que Jéssica faz algumas tarefas de casa antes de ir às aulas de surf e termina as restantes no regresso. Ao pai, que ainda que relutante, acaba por dar autorização, convida-o a participar no curso de parentalidade positiva que deverá arrancar em janeiro.
“O pai da Jéssica pode ser um caso de sucesso porque em nenhuma altura disse que ela não podia ir. No fundo, sabe que é importante, mas não pode ceder muito porque isso questiona o seu papel enquanto homem. Temos de encontrar um equilíbrio, mas há abertura”, defende Francisca, que acredita que Caíque poderá mesmo ter perfil para vir a ser delegado dos pais, figura que a SOMA quer juntar ao programa.
“Estamos a quebrar com os estereótipos de género e com a narrativa que está tão enraizada na cultura do país”, acredita a fundadora da SOMA, que ajudou a formar a primeira geração de mulheres são-tomenses surfistas: “Devem estar muito orgulhosas por continuar a surfar, apesar das ondas difíceis no mar e na vida”.
A nova temporada de surf em Santana acolhe 40 raparigas, que terão aulas de surf, apoio escolar e psico-educação, num projeto nascido em 2020 e que em 2024 quer alargar-se a Cabo Verde.
Comentários