Há uma Terra que é chamada Santa pelo que lá aconteceu: para os judeus é a Terra Prometida, para os cristãos foi lá que nasceu o Filho de Deus e para os muçulmanos foi onde Maomé ascendeu aos céus. Centro sagrado para as três religiões Abraâmicas, a zona que vai do Rio Jordão ao Mar Mediterrâneo abrigou, então, histórias incontáveis. Uma delas é a de Jesus, o chamado Cristo. O Filho de Deus para os que acreditam.
Mas é a história do homem que Rodrigo Alvarez, jornalista brasileiro, quer contar. A questão religiosa, diz-nos, é “menos relevante”. Mas Jesus tem uma força inegável. “O que interessa na figura de Jesus é o que mudou depois d’Ele, o que Ele trouxe para a humanidade”.
Entre textos reconhecidos pela Igreja e outros colocados de lado, o autor da biografia “Jesus”, tendo passado os últimos catorze anos entre São Paulo, Nova Iorque, São Francisco, Jerusalém e Berlim, como correspondente da TV Globo, quer juntar pedacinhos de história, sem cair numa procura da verdade que diz não existir quando se “fala de um acontecimento de há dois mil anos”. Procura, sim, possibilidades e olha para umas “hipóteses mais prováveis do que outras”. E é tudo isto que Rodrigo Alvarez explica ao SAPO24.
“Imagine Jesus a começar a pregar nas montanhas da Galileia”. No início do livro, começa logo a transportar o leitor para a Terra Santa. É este um requisito para perceber Jesus?
Pelo menos enquanto escritor, acho que era fundamental ter vivido na Terra Santa, ter pisado as mesmas pedras que Jesus pisou, ter caminhado por aqueles desertos... Para poder escrever uma história com a profundidade que queria escrever, com a densidade que tem a história de Jesus Cristo, acho que era fundamental ter vivido no mesmo lugar que Ele. O leitor que pode pisar aquelas mesmas pedras e aquele deserto também pode compreender melhor, mas eu acho que o livro tem justamente essa proposta de transportá-lo para o mesmo lugar onde Jesus esteve. Tentando inclusive entender a história d’Ele do ponto de vista da época em que viveu e não do nosso ponto de vista de hoje, porque [a forma como vemos as coisas] se vai alterando com o tempo.
De tempos a tempos aparecem ondas sensacionalistas sobre Jesus. Que Ele não existiu, que Ele foi de certa linha revolucionária.
Nos três anos e meio que viveu em Jerusalém, como foi visitar os locais associados à vida deste homem?
Durante o período em que morei em Jerusalém, vivia a pouco mais de um quilómetro, ou seja, a 15 minutos de caminhada, 10 minutos de bicicleta, do lugar onde a tradição diz que Jesus foi crucificado. Ia a esse lugar — o Santo Sepulcro — com muita frequência. Fui a diversos outros lugares, como por exemplo ao Monte das Oliveiras, às vezes só para admirar a paisagem e para ver como ela tinha mudado, como tudo tinha mudado naquele lugar; ao Muro das Lamentações, o que sobrou do Templo de Herodes que está lá até hoje... Esses lugares todos têm impressões digitais de Jesus. De alguma maneira, ao revisitar esses lugares, com conhecimento, não apenas como um turista, você começa a ter outra dimensão da história e ela começa a materializar-se de certa forma. Acho que esse é um dos propósitos do livro, porque muito já se disse sobre Jesus. De tempos a tempos aparecem ondas sensacionalistas sobre Jesus. Que Ele não existiu, que Ele foi de certa linha revolucionária. Sempre afirmativas, muito categóricas. [Dizem que] Ele foi casado, que teve filhos. Há sempre uma nova onda baseada às vezes em algum pergaminho, em algum documento, às vezes em indícios muito frágeis. O propósito deste livro não era trazer uma nova onda sensacionalista, o propósito era mostrar ao leitor que é possível reler a história. E ao reler essa história, sem os vícios que nos foram ensinados ao longo destes dois mil anos, surge um outro Jesus. Essa é a grande revelação que acho que o livro faz o leitor trazer. Não é que o livro traga [revelações]: ele abre espaço para que o leitor veja esse outro Jesus.
Foi o facto de estar perto destes locais que o levou a escrever este livro?
A vida é cheia de coincidências e há acasos, às vezes sorte, destinos. Chame-lhe o que quiser. Eu estava a escrever um livro sobre religião no Brasil quando fui em trabalho a Jerusalém por outros motivos. Mas acabei o meu primeiro livro sobre religião em Jerusalém e a partir dali quis continuar a pesquisa, quis continuar a temática religiosa porque estava com um tesouro na minha frente e fascinado por aquela história. E quando digo fascinado não o digo do ponto de vista religioso, mas fascinado por poder compreender melhor como é que nós chegamos até aqui, como nós, que somos todos de uma herança judaico-cristã, chegamos a ser quem somos. Interessava-me menos o aspeto religioso do que o aspeto histórico.
Porquê só quatro [textos] foram escolhidos para ser chamados de Evangelhos e contar a história oficial? Qual é a vantagem histórica destes quatro para os outros?
Tem uma curiosa divisão de capítulos, fazendo uma viagem temporal que não começa no nascimento de Cristo, mas em João Baptista. É ele que, tal como na Bíblia, prepara o caminho de Jesus nesta biografia?
A história de Jesus para a humanidade começa com João Baptista. Sobre o nascimento de Jesus nós temos tão pouca informação que qualquer afirmação é leviana, até mesmo [dizer] que Ele nasceu em Belém. Não se pode dizer isso com certeza, aliás, é muito provável que Ele não tenha nascido em Belém da Judeia. A opção por começar com João Baptista tem uma mensagem. Os Evangelhos não decidiram por acaso começar com João Baptista. Era preciso, primeiro, dar credibilidade a Jesus e só um mestre, um grande rabino no tempo dele, poderia dar essa credibilidade. Naquele tempo não era como é hoje. Agora Jesus é um nome estabelecido, é uma fé conhecida. Era preciso afirmar uma nova fé. E como é que você afirma uma nova fé? Trazendo primeiro as bases dela, de onde veio, o que sustenta. Quem reconhece esse homem é alguém muito conhecido no seu tempo, João Baptista. Para entender Jesus é preciso primeiro entender que Ele começou como um discípulo de João Baptista e só assim a vida d’Ele pôde ser o que foi. Então não foi por acaso que os Evangelhos começaram com João Baptista e não é por acaso que eu escolho da mesma forma, porque inverter essa ordem é adotar uma cronologia que não condiz com a realidade.
Ao longo das páginas vai cruzando dados bíblicos com dados de outros documentos — como os evangelhos apócrifos, os Manuscritos do Mar Morto, o Livro de João — que não são aprovados pela Igreja. O que se tira destes textos?
Antes que os textos que nós hoje temos à nossa disposição fossem queimados, antes de destruírem as bibliotecas dos primeiros cristãos coptas e gnósticos, havia todo esse conhecimento disponível. Então quando a gente consegue ler esses originais hoje, é como se a gente voltasse quase 1900 anos no tempo e pudesse ter o conhecimento que se tinha naquela época. O conhecimento foi censurado ao longo de muitos anos. A nossa vantagem hoje é ter voltado no tempo como nenhuma outra época voltou [devido à descoberta de documentos da época]. Na Idade Média, as pessoas não tinham acesso a estes textos, nós temos mais conhecimento hoje do que os cristãos do século V, que incrível! Hoje a gente pode dizer 'olha, há uma série de textos tratando da história de Jesus'. Porquê só quatro foram escolhidos para ser chamados de Evangelhos e contar a história oficial? Qual é a vantagem histórica destes quatro para os outros? Para muitos não há vantagem histórica entre os Evangelhos e alguns outros textos. Apenas foi uma escolha feita pelos homens que mandavam na Igreja no momento em que se fez essa escolha. Essa foi a verdade escolhida, não necessariamente a verdade. Não é que o texto encontrado agora seja o verdadeiro. Mas ele traz outra verdade — ou fragmentos do que pode ter sido a verdade —, então a gente hoje não tem mais o direito, a meu ver, de eliminar textos que foram escritos na mesma época, que são contemporâneos, alguns deles, dos Evangelhos. Não nos cabe mais censurar o que foi produzido na mesma época. A gente tem uma oportunidade única na História, depois de quase dois mil anos, de ter o conhecimento em estado bruto e poder finalmente dizer 'olha, pode não ter sido exatamente assim, há uma verdade aqui, há diálogos interessantes que podem ter sido verdadeiros aqui... quais vou escolher como verdadeiros? Do ponto de vista histórico não precisa de escolher nenhum, precisa de confirmar a historicidade desses documentos. Quando a gente conclui que eles são verídicos, quem vai dizer que não devemos ler esses textos? O que acho que é interessante hoje é que quando você consegue ler os Evangelhos sem a limitação que nos foi imposta, incluindo todo o conhecimento sobre o judaísmo que se tinha naquela época e que se tem hoje — todo o conhecimento que os gnósticos tiveram, que os coptas tiveram —, temos uma visão muito mais ampla de Jesus e é por isso que se torna uma personagem histórica mais interessante. A gente conhece outros aspetos filosóficos atribuídos a Jesus muito interessantes também. Não mais interessantes ou menos interessantes do que os que estão nos quatro Evangelhos, mas muito interessantes e dignos de serem lidos.
Jesus existiu? Claro! Já tentaram negar isso, mas não é possível. Há registos históricos não-cristãos que comprovam a existência de Jesus.
Por vezes, as fontes entram em contradição — até os próprios Evangelhos.
O tempo todo! Os Evangelhos estão cheios de contradições. Por exemplo, pelos Evangelhos Jesus pode ter morrido com 33 anos ou com 48. Qual é a verdade? [silêncio] A contradição faz parte da história. Foram seres humanos que escreveram os Evangelhos, mas algumas pessoas acabam achando que foi Deus quem ditou os Evangelhos. Não, os Evangelhos foram escritos por escritores e esses escritores escolheram dar nomes aos Evangelhos. Evangelho segundo João, segundo Mateus. Essa era a forma de literatura da época, não é que foi João quem escreveu. É quase que ingénuo dizer que Lucas foi quem escreveu o Evangelho de Lucas. É atribuído a Lucas, é como [se fosse] o personagem Lucas escrevendo. Em todos estes textos há a particularidade do autor. Há erros, há imprecisões. Há a possibilidade de o Evangelho de João ter sido escrito quase um século depois da crucificação de Jesus. Onde foi registado o diálogo que é citado naquele Evangelho? Oralmente? Se hoje a gente depois de 80 anos de um crime, de uma crucificação, fosse tentar reconstituir sem a Internet, sem os jornais, sem nada, como é que a gente reconstituiria um diálogo? Então quanta imprecisão não há nesses textos? A contradição é natural de uma época em que a gente não tinha os recursos que a gente tem hoje. Os livros eram copiados à mão, um por um, letra por letra. Não havia precisão naquele tempo. Muito mais importante nos Evangelhos é entender o conteúdo deles, o que é que eles querem dizer, a filosofia que eles trazem, não o detalhe supostamente histórico de cada frase.
Como é que um investigador contorna isto para chegar à verdade?
Não há verdade quando a gente fala de um acontecimento de há dois mil anos. Há possibilidades, há hipóteses mais prováveis do que outras. Por exemplo, que Jesus tenha sido seguidor de João Baptista e tenha convivido com os essénios e que venha daí a filosofia do começo do Cristianismo. Essa é uma hipótese muito possível. Agora certezas há muito poucas. Jesus existiu? Claro! Já tentaram negar isso, mas não é possível. Há registos históricos não-cristãos que comprovam a existência de Jesus. A verdade é extremamente particular e subjetiva.
Podemos dizer que, na História da Humanidade, este capítulo de Jesus Cristo é dos mais difíceis de contar?
Se o autor quiser um artigo científico, é dificílimo. Mas quando você fala de Jesus não é o dado objetivo que está interessando. O que interessa na figura de Jesus é o que mudou depois d’Ele, o que Ele trouxe para a humanidade. O que é que aconteceu depois da morte de Jesus? O que podemos entender como tendo sido a salvação que Ele trouxe, se é que vamos acreditar que houve uma salvação? Isso é muito mais importante do que saber se Ele foi ou não casado com Maria Madalena, por exemplo. Interessa-me saber porque é que depois de Jesus a humanidade mudou. Há elementos fortíssimos de mudança depois de Jesus. Ou depois de Paulo, porque não foi Jesus que saiu pregando a sua filosofia pelo mundo. Foram os apóstolos e posteriormente Paulo, que não foi um apóstolo direto de Jesus. Aquilo que Jesus representa é o que foi feito de Jesus. Muito mais do que um dado histórico sobre ter nascido ou não em Belém da Judeia.
Toda a história de Jesus foi usada em benefício de inúmeras formas de poder. De Papas a reis. A própria escolha dos quatro Evangelhos foi uma decisão política.
Mesmo que não se acredite em Jesus como Deus encarnado, há um Jesus histórico impossível de negar, como referiu há pouco. E este homem marca a sociedade.
O tempo de Jesus, como a gente sabe, é um tempo de muita crueldade. O instinto humano, se a gente for ver no tempo de Jesus, não está muito distante da Idade do Bronze, a gente não está nem muito longe da Pré-História. É um tempo de muita crueldade. A lei judaica tinha várias formas de pena de morte previstas; a mulher era tratada como um bicho, era apedrejada, acusada de traição à menor suspeita do homem e executada por isso. Jesus incluiu uma mulher nos seus apóstolos. Uma mulher não podia nem conversar com um rabino. Jesus deixou que as mulheres O seguissem e fez pelo menos de uma delas apóstola, se não de outras também. Jesus revolucionou inúmeras questões e abriu-nos o caminho para que a gente evoluísse. A questão do amor ao outro... amor ao outro nada! O outro é meu inimigo, pensava-se antes. Não foi Jesus que inventou isso, faz parte do judaísmo também. Há uma corrente judaica anterior a Jesus que já pensa assim também, mas Jesus trouxe isso para o mundo. Ou Paulo, ou os seguidores de Paulo. O Cristianismo trouxe isso para o mundo. Há uma revolução ética da humanidade trazida por Jesus que não pode ser negligenciada, não pode ser esquecida, não pode ser deixada de lado. Tudo isso mudou depois de Jesus. Agora, se foi Ele que fez a mudança ou se foram os seus seguidores é uma outra discussão. Quando isso se tornou universal não foi logo depois de Jesus, foi 300 anos depois de Jesus, tamanha é a força da mensagem, que resistiu milénios e chegou até nós. Não é por acaso. A meu ver, a discussão menor sobre pequenos detalhes geográficos, históricos, não leva a nada quando você deixa de lado ou quando você não percebe que a importância está na mensagem, está no que mudou na humanidade depois de Jesus.
Acredita em Deus?
Passo a pergunta [risos].
Não quer mesmo responder?
[Silêncio] Como respondo a essa pergunta? [Silêncio] Não, eu não acredito em Deus. Acho que hoje a gente já conhece o suficiente sobre o universo para ter aquela visão antiga que se tinha do que era Deus. No tempo de Jesus, Deus era um ser assustador, era uma entidade assustadora. No tempo dos homens no Paleolitíco, Deus era aquilo que os seres humanos temiam na floresta ou aquilo que eles consideravam como forças da natureza importantes. A noção de Deus mudou muito ao longo dos milénios. E eu não vejo hoje como ter a mesma noção de Deus que você tinha no tempo de Jesus. Aquele Deus, que era o Javé do judaísmo, o Deus vingativo, e mesmo aquilo em que depois se transformou esse Deus, que pensa em cada ser humano e que controla o que cada um de nós faz... Não, não acho que ainda seja possível pensar nesse Deus como uma possibilidade.
Jesus não pode ser entendido apenas como o que foi no tempo d’Ele.
E de outra forma?
Aí a gente começa a entrar noutras formas de interpretar o que é Deus. Quando a gente fala das forças do universo, quando a gente fala das forças da natureza, quando a gente fala de buracos negros. [Essas] parecem-me forças mais atuantes sobre nós.
Como é que se conjuga o não acreditar em Deus com o investigar este tipo de coisas?
O que vejo como importante de Jesus é entender o impacto que Ele teve sobre a humanidade, como a humanidade mudou depois de Jesus. A questão religiosa, para a minha pesquisa, para o meu texto, para a minha literatura, é menos relevante. É mais importante o que houve de humano nesta história. Não falo do Jesus humano, falo do humano que estava em Jesus, do humano que veio depois de Jesus, da humanidade que Ele nos trouxe e do impacto que Ele teve. Não é que não faça sentido [a parte religiosa], mas não é o que me move. O que me move é o sentido histórico humano, especialmente daquilo que mudou com Jesus.
Fala, logo no início do livro, numa biografia “o mais livre possível dos interesses políticos e religiosos que manipularam a História”. Que manipulação é esta?
Toda a história de Jesus foi usada em benefício de inúmeras formas de poder. De Papas a reis. A própria escolha dos quatro Evangelhos foi uma decisão política. Em tudo, toda a escolha é política. O esforço que os primeiros cristãos e os posteriores também fizeram para censurar outras formas de pensamento, a criação do termo heresia, a adoção desse termo pelo cristianismo. O combate ao que se chamava de heresia era o combate à divergência, o combate ao pluralismo, então foi uma história feita de censura, uma história feita de limitações. E é por isso que acho importante hoje a gente olhar para tudo o que existe e ler tudo o que está à nossa disposição, porque só assim a gente pode de facto entender essa história.
Seguindo apenas uma linha histórica, quem é Jesus? O que podemos dar como certo sobre este homem?
Jesus foi um homem que provavelmente nasceu na Galileia e certamente passou uma parte importante da sua vida na Galileia. Foi um grande mestre no seu tempo, foi um rabino, um pregador. Na sua época o que Ele fazia era considerado magia — quando Ele curava doentes, quando Ele ressuscitava pessoas mortas. Jesus contestou o poder constituído no tempo d’Ele, não só o poder romano mas o poder judaico que tomava conta de Jerusalém. Nesse sentido Ele foi um seguidor do pensamento essénio, que era revoltado contra o que estavam fazendo com a religião. Ele foi um defensor do que acreditava ser a verdade da religião judaica. E depois da morte tornou-se ainda mais importante, por uma série de fatores que merecem outro livro para serem explicados, mas o primeiro fator desses é a destruição de Jerusalém pelos romanos no ano 70, a destruição do segundo templo com a diáspora. Os judeus saíram pelo mundo e também saíram pelo mundo os primeiros cristãos e eles disseminaram a mensagem de Jesus. Por vários fatores essa mensagem de Jesus acabou chegando até nós. Jesus não pode ser entendido apenas como o que foi no tempo d’Ele. É preciso sempre entender as consequências que nos foram trazidas pela existência de Jesus.
A crucificação de Jesus foi uma coisa comum, foi um acontecimento do tempo d’Ele. Ninguém parou, o mundo não parou para ver a crucificação de Jesus naquele dia.
Jesus pode ser considerado como uma figura “revolucionária” para o seu tempo?
Jesus trazia dentro d’Ele, na mensagem d’Ele, aspetos revolucionários. Por exemplo, a maneira de tratar as mulheres. Mas também revoltosos, não só revolucionários. Ele tinha aspetos revoltosos na forma de agir. Ele não queria — pelo menos não está dito por Ele, — uma completa mudança de paradigma. Ele queria uma correção de rumo, via que algumas coisas estavam indo errado, estavam indo mal. E queria mudá-las. Mas não era um revolucionário que trazia uma religião completamente diferente. Nasceu e morreu judeu, pregando o judaísmo. Ele nunca pregou o Cristianismo. O Cristianismo é depois de Jesus. Então nesse sentido não foi revolucionário, Ele apenas contestava o poder constituído no tempo, não pregava uma revolução completa da sociedade.
Teria sido Jesus também perseguido pela fama que tinha?
Não o vejo. É que Jesus fazia parte de um grupo de pregadores que contestavam o poder, que contestavam o judaísmo da época. E nenhuma contestação era tolerada, então o maior motivo para Jesus ter sido perseguido e morto é ter contestado o poder instituído, não é exatamente a fama. Claro que quando você tem fama, você chama a atenção e ao chamar a atenção os poderosos querem eliminar esse revoltoso. Foi o que fizeram com João Baptista antes dele, de uma forma muito mais cinematográfica: cortar a cabeça, que como, divulgado pelos Evangelhos, foi colocada numa bandeja de prata. Foi algo feito para impressionar. A crucificação de Jesus foi uma coisa comum, foi um acontecimento do tempo d’Ele. Ninguém parou, o mundo não parou para ver a crucificação de Jesus naquele dia. Era mais uma, havia dois outros crucificados do lado. A cada semana mais umas dezenas, num mês centenas. Há relatos e relatos de crucificados naquela época. Não foi dado a Jesus um fim mais espetacular do que àqueles outros que eram considerados revoltosos na época.
Refere na biografia que Jesus é o homem mais amado da História. Porquê esta expressão?
Primeiro por exclusão. Se você me disser alguém que foi mais amado do que Jesus, eu te dou a razão. É uma figura de linguagem, uma forma de me referir a Ele. Procurei várias maneiras de me referir a Jesus, querendo procurar algo que O definisse. O subtítulo no Brasil foi “o homem mais amado da História”. Como você define Jesus com uma única frase? Às vezes para escrever um livro a gente precisa de definir um subtítulo. E muito mais do que pelos feitos de Jesus, que muitas vezes podem ser questionados pela História, pela arqueologia, o que se pensou de Jesus é impossível de questionar, porque o mundo se moldou a partir de Jesus. Hoje temos um bilhão e não sei quantas centenas de milhões de seguidores de Jesus. No judaísmo você tem Moisés, você tem Abraão, mas você não tem este tipo de veneração que existe no Cristianismo, a um homem. É uma liberdade que o autor tomou de concluir algo não científico, mas algo percebido.
A informação que nós temos nos Evangelhos é de repulsa de Jesus pela sua família. Jesus não quer a família por perto.
Se olharmos para a vida pública de Jesus, para a parte mais mística, podemos dizer que é a partir das palavras de Maria, nas Bodas de Caná, que tudo se desenrola. Conhecemos também o Filho pela relação com a mãe, e vice-versa?
O episódio das Bodas de Caná [em que Jesus transforma água em vinho] é um dos mais contestáveis dos Evangelhos. É difícil erguer qualquer pilar sobre as Bodas de Caná. Para a devoção mariana, aquele episódio, narrado apenas no Evangelho de João, foi entendido como a capacidade de Maria apelar a Jesus para que Ele fizesse algo pelas pessoas. A ideia de Maria como intercessora nasce daquele episódio. Mas eu não penso que para a história de Jesus tenha tamanha relevância este episódio. Por vários aspetos e especialmente porque o Evangelho de João é o último, é tardio, é escrito já com conhecimento dos outros Evangelhos e com conhecimento da repercussão que tiveram. É um Evangelho escrito com mais cuidado. No sentido espiritual, teológico, da devoção a Maria, as Bodas de Caná são um capítulo, um episódio fundamental. Mas, a meu ver, para a história de Jesus, se não tivéssemos conhecimento deste episódio não mudaria a nossa compreensão de Jesus.
Escreveu também a biografia de Maria. Olhando para estas duas figuras que investigou, como é a relação entre elas?
Esse tema é muito delicado. A informação que temos nos Evangelhos é de repulsa de Jesus pela sua família. Jesus não quer a família por perto. Hoje a gente conhece a história, os códigos e as regras dos essénios. Os essénios eram uma comunidade religiosa praticamente formada só por homens, em que uma das regras para se entrar era abrir mãos dos bens e da família. Jesus parece agir da mesma forma, não parece possível uma pregação de alguém que caminha por Israel, pelas terras desconhecidas, acompanhado de uma família. O papel de Maria na vida pública de Jesus é muito limitado. A meu ver, a devoção mariana parte de um outro ponto de vista, que é o ponto de vista de Maria, do que foi para ela aquele acontecimento e do eventual papel dela numa esfera religiosa. Quando a gente analisa historicamente, ela não foi uma personagem que mereceu grande atenção dos Evangelistas, por exemplo. As falas de Maria são seis, nos Evangelhos. Numa das vezes acena com a cabeça e acaba sendo contado como fala de tão poucas que são! E é coerente com a época: a mulher não tinha relevância naquela sociedade. O estranho é Maria Madalena, o estranho é ter uma mulher entre os apóstolos com aquele poder, com aquela importância que ela teve. Nos textos apócrifos ela é tratada como uma apóstola. E muito importante, talvez até como a principal conselheira de Jesus. Pedro, nos Evangelhos canónicos, morre de ciúmes de Maria Madalena. 'Quem é essa mulher no meio de nós e ainda por cima com tanta influência sobre o nosso Mestre?'. E vão dizer os apócrifos: 'Ainda por cima dando beijos na boca d’Ele'. Hoje é muito claro para mim que a grande mulher na história à volta de Jesus foi Madalena. Maria tem a importância da mãe, tem a importância da devoção que surgiu em torno dela. Mas a importância histórica, factos, atos de Maria, quase não há.
A ressurreição é uma questão de fé e fé não se discute. Ou se tem ou não se tem.
E afinal quem é Maria Madalena?
Quando a gente começa a ler [o apócrifo de] Maria Madalena sem a censura que a história nos impôs, ela é uma apóstola tão importante quanto Pedro e às vezes mais. É a ela que Jesus recorre quando tem dúvidas, não é a Pedro. Mesmo que a gente não entre na discussão sobre o que foi a ressurreição, o que leva a que Jesus apareça primeiro a Madalena? Tem algum simbolismo nisso, nessa escolha. Essa é a grande mulher da história.
Estamos na Semana Santa, a Semana Maior para os cristãos. Podemos dizer que existem provas da morte e ressurreição de Jesus ou aqui é mesmo uma questão de fé?
Até à crucificação parece haver elementos históricos suficientes para que a gente possa afirmar que de facto Jesus de Nazaré foi crucificado por ordem de Herodes, a pedido dos sacerdotes que mandavam em Jerusalém. Não há dúvida, há elementos históricos suficientes para essa comprovação. A ressurreição é uma questão de fé e fé não se discute. Ou se tem ou não se tem. Eu, neste momento, estou-me dedicando a pesquisa sobre a ressurreição, porque este livro termina com a crucificação e agora vou continuar da ressurreição até ao momento em que os cristãos são expulsos pela destruição de Jerusalém, que é quando o Cristianismo se começa a espalhar pelo mundo. O tema ressurreição é extremamente complexo. Os próprios Evangelhos divergem. A leitura simples do Evangelho não nos permite dizer se para os cristãos a ressurreição foi corpórea ou foi espiritual, porque quando Jesus entra no cenáculo, quando ele se encontra com os apóstolos — está nos Atos dos Apóstolos — o que está descrito é que Jesus atravessa. Não há uma porta aberta para que Ele entre. [À entrada do sepulcro] Madalena vê um jardineiro, não reconhece Jesus. Parece muito mais próximo ao pensamento gnóstico, que acreditava mais neste tipo de ressurreição, neste tipo de espiritualidade, do que numa ressurreição corpórea, como foi defendida por todo o cristianismo. Paulo vai dizer que sem ressurreição nada disto faz sentido. Então de novo: a ressurreição é a base da fé cristã. É uma questão de fé.
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