
É domingo. Foi domingo, poderá ser o próximo, é certo em qualquer domingo do ano desde que obedeça a uma condição prévia: não pode estar a chover.
Cumprida a regra da ausência de precipitação, o críquete tornou-se, nos dias de hoje, uma atividade habitual no Parque da Bela Vista, em Lisboa, . O desporto de eleição no subcontinente indiano tem dado vida ao parque urbano apresentado ao público para o Rock in Rio, uma cidade idealizada por Roberta Medina em 2004.
Ao sétimo dia da semana do calendário litúrgico, dezenas de jogadores confluem à enorme mancha verde encravada entre a avenida Almirante Gago Coutinho e Chelas, em Lisboa. Aparecem, pela manhã, a conta-gotas. Uns na bicicleta que usam para o trabalho, outros a pé, sozinhos, aos pares ou acompanhados pela família. Uns, usufruem do descanso semanal. Outros, fazem uma pausa laboral.
Durante mais de um par de horas, estes imigrantes, na sua maioria nascidos no Bangladesh, não tiram o pé do chão nos terrenos que Ivete Sangalo teimou em pisar aos saltos durante duas décadas. Estão ali para jogar críquete.
No vale, agora berço do MEO Kalorama e outros concertos, o palco principal assenta no tapete verde, no sopé do anfiteatro. O cenário alternativo muda-se para o cimento confinante quando as poças de água alagam a relva, como foi o caso durante a reportagem do SAPO24.
Tudo começa, no entanto, na véspera. A meteorologia é estudada com minúcia. O tempo limpo leva à chuva de mensagens nos grupos de WhatsApp para convocar, pelo menos, 22 jogadores. Se aparecerem mais, alargam-se as regras que impõe 11x11.
Vestem as camisolas dos respetivos clubes, espetam bandeiras de Portugal na sombra de uma árvore, pousam bebidas energéticas e comida para recuperar calorias gastas e delimitam o campo, oval, com cones, num perímetro calculado a passo.
Na Bela Vista, ao domingo o bengali é a língua oficial. O inglês é o passaporte de comunicação para interagir quem observa. “You can take photos” (Podes tirar fotografias). Quem está de fora, sentado à sombra de uma árvore, a aguardar a vez de jogar, estende a passadeira para que se entre e se interaja em campo. “He´s the captain and is good for the Portugal team” (Ele é o capitão e é bom para a equipa portuguesa), avisa um dos jogadores. Já se vai à descodificação do recado.
O SAPO24 escutou três vozes, cada qual teve o seu papel na divulgação do críquete em Portugal. Ao telefone, num minimercado, uma loja e num campo.
“Naquela época, não tínhamos campo em Lisboa”
“O meu nome é Amdadur Rahman Rayhan. Ou Rayhan. Todos me chamam por esse nome. Sou do Bangladesh. Da cidade de Sylhet. Em 2009, fui para Londres. Em 2015, cheguei a Portugal, há cerca de dez anos”, apresentou-se.
“A minha família mora aqui. A minha mãe, a minha mulher e os meus três filhos nascidos em Portugal, duas miúdas e um rapaz. O primeiro tem 3 anos. O segundo tem 20 meses e o terceiro nasceu agora”, revela de sorriso aberto.
A escolha do país não girou à volta da roda da sorte. Encontrou justificação na ponta da chuteira de dois ícones do futebol português. “Porquê Portugal? Porque via na televisão o Ronaldo, Cristiano Ronaldo e Luís Figo”, sorriu. “E disseram-me que o clima é bom, melhor do que em Londres (mais sorrisos) e as pessoas são incríveis”, fundamentou.
O críquete está-lhe no sangue. “Nasci em 1987, comecei a jogar em 1994, tinha 7 anos. Joguei no Bangladesh, na escola, em Londres e depois aqui, em Portugal”, adiantou.
Viveu, estudou e trabalhou na capital inglesa. A partir da Rua das Janelas Verdes, Lisboa, onde tem um minimercado. “Abri a primeira loja em 2015, no Campo Grande e mudei-me para as Janelas Verdes, em 2019. A minha mulher trabalha comigo. É um negócio de família”, adiantou.
Na esplanada do Museu de Arte Antiga, desfia a sua via: “O negócio foi sempre o objetivo. Nunca pensei em tornar-me profissional de críquete. Na nossa cultura, temos de estudar e os antigos não estavam interessados no críquete ou qualquer desporto. Todos querem ganhar dinheiro e trabalhar, trabalhar”, diz, repetidamente.
“A loja está aberta sete dias por semana, das sete da manhã às dez da noite”, resume. “Somos cinco pessoas, fazemos turnos e, assim, podemos jogar”, justificou. Apesar do ímpeto os empurrar, por tradição, para o trabalho, o último dia da semana é desejado por muitos. “Estamos todos à espera de jogar aos domingos”, exclamou.
Convidou-nos para ir ao Parque da Bela Vista, para ver críquete e fomos. Duas equipas, uma de azul, outra em tons de amarelo.
Enquanto o jogo decorre, a pontuação é anotada num papel por quem está de fora. Outros enrolam bolas de ténis com fita cola branco para que configurem o peso e textura de uma bola oficial. Diálogos impercetíveis que mudam a latitude para a língua anglo-saxónica para interagir com o SAPO24.
Recuou no tempo. “Alguns dos meus amigos estavam à procura de emprego e juntámo-nos para jogar. Começou com dez, 12 pessoas e em três meses tínhamos duas equipas. Desde 2015, todos os domingos, jogamos”, realçou.
“Naquela época, não tínhamos campo em Lisboa. Jogávamos num parque de estacionamento em Moscavide. Juntava-me ao Rana (um dos mentores da introdução do jogo em Portugal)”, recordou Rayhan.
Formou uma equipa: Lisbon Cricket Club. “Não é um clube profissional, é um clube social”, informou. “Aceitamos todas as pessoas. Quase todos são do Bangladesh. Falamos bengali. Mas também temos do Paquistão e da India”. Por isso, quando jogam juntos, para facilitar o diálogo entre todos, “a língua passa a ser o inglês”, frisou.
A maioria dos jogadores é dona do seu próprio tempo e dos seus próprios negócios. Pequenas mercearias, lojas de souvenires e de arranjos de telemóveis, tablets e computadores. Trabalham também nas plataformas como Uber, Bolt ou Glovo.
Não fazem parte do lote do trabalho das “9 às 17”. A razão é simples. “Têm de ter tempo livre para jogar porque há quem se junte durante a semana e não sabe quando e onde jogar. Estão à distância de uma chamada”, explicou.
O domingo é dia de jogo, mas “no verão”, muitos jogam “dois ou três dias por semana”, antecipou o Rayhan que não leva tão a sério as partidas. “Só quero estar com eles. Alguns dos meus amigos são muito sérios, só querem vencer”, brinca.
Bom para a saúde mental e integração
Se hoje, o críquete é cada vez mais popular em Portugal, muito se deve a um cidadão. “Chamo-me Imtiaz Ahmed Rana , tenho 36 anos, nasci no Bangladesh. Fui para Londres em 2008, licenciei-me e estou em Portugal desde 2015. Vivo com a minha mulher e dois filhos que nasceram cá, são pequenos, mas já jogam”, atestou.
Rana é dono de uma loja em Marvila. “O críquete está no nosso sangue. Quando cheguei procurei sítios para jogar. Não havia quase ninguém. Jogava-se na Praça do Martim Moniz, mas as bolas iam sempre para a estrada e começámos a jogar num campo mais pequeno. E quem puxasse rápido, saía, para ter a certeza de que não magoávamos ninguém”, lembrou.
“Daí, fomos para um parque de estacionamento em Moscavide”. Novo local, adesão crescente. “Do onze para onze começámos a jogar 20 para 20. Éramos 40 no campo e pensei que podia fazer isto de forma organizada”. E é quando a relva da Alameda entra no mapa.
Faz uma pausa na contagem durante a conversa tida num café vizinho da loja. “Joguei no meu país, sei como funciona. Tomei a liderança e juntei indianos, paquistaneses, nepaleses e bengalis e joga-se críquete social”, esclarece.
“Tens de entender”, chamou à atenção, “quem entra na Europa, em Portugal, pensa em ganhar dinheiro, sobreviver. O críquete é um luxo, não é para ganhar dinheiro. Ninguém quer gastar dinheiro para jogar”, afiançou. “Por isso, perco alguns bons jogadores, porque necessitam de trabalhar”, lamentou.
No entanto, o trabalho tem outro lado da moeda e permite-lhes jogar quando são chamados. “Se não se tem liberdade no trabalho, não se consegue jogar”, admitiu.
Retomou as contas. “Chegámos a ter 150 pessoas. Reduzi para 100. Depois corte, corte e, no final: 34 pessoas. São organizados, querem jogar, dou-lhes a oportunidade de o fazer, arranjo o espaço e ensino quem quer aprender”, confessou. “A quem achasse que não tinha espaço incentivei a criar o seu próprio grupo e clube”, relatou.
Rana criou o Friendship Criket Club Portugal (FCC). “Nos últimos três anos trabalhei arduamente para ter tudo organizado e somos um clube profissional do Bangladesh”, apontou. “Hoje em dia, há oito equipas do Bangladesh na Liga Nacional”, soltou em tom de felicidade. “Foi através da minha ligação”, exaltou, orgulhoso do que viu nascer.
Fixa os olhos num mapa imaginário em cima da mesa do café. A mão desenha uma rota do críquete: “Alameda e Martim Moniz”, serviram de montras de expansão e popularização da modalidade. Seguiu-se “Moscavide, num parque de estacionamento perto da Estação; o Parque da Bela Vista; Coruche e (Vila Nova de) Mil Fontes. Mil Fontes é um lugar fantástico”, descreveu. “Vive lá muita gente do Bangladesh”.
No campo, o feudo não está só reservado ao caldeirão de nacionalidades do subcontinente indiano recém-chegada a Portugal. “Os portugueses misturam-se e também se envolvem”, assegurou o líder do FCC, abrindo, desta forma, as portas para a integração de pessoas vindas “da Índia, Nepal, Sri Lanka e Bangladesh”, indicou.
Mas também há portugueses. “Algumas escolas pedem-me para ensinar crianças. O problema é que não falo muito bem português. Para ser honesto, quem ensina precisa saber mais do que o básico”, alertou.
“A escola é onde podemos aprender, logo não posso ensinar o português errado, por isso prefiro meu contato com o Paulo (Buccimazza, a terceira personagem da história). O Paulo é português, fala português e é ele que vai às escolas”, clarificou.
“O Paulo organizou a Federação Portuguesa de Críquete, a Liga e ensina nas escolas. Eu criei a origem. A origem”, frisou. A realização pessoal é patente. “O críquete continua. Estou tranquilo o meu sonho, está a realizar-se. Ter uma estrutura, as pessoas sabem onde jogar, onde é a federação, sabem da existência do Paulo, do Sani, pai do Paulo”, afiançou.
Antes de fechar a conversa, Rana deixou um alerta à sua comunidade. “Sabe o que acontece hoje em dia? Não me interprete mal, mas as pessoas da minha cultura têm mais frustrações. É a questão das migrações, o trabalho, morrem por problemas de coração e saúde mental, é realmente agonizante e avisa-nos sobre o que estamos a fazer com a nossa vida, apenas a ganhar dinheiro e frustrações”, lamentou.
O antídoto “é tentar envolvê-los em algumas atividades de lazer e não temos tantas, há o cinema e pouco mais. Por isso, o críquete é bom para a saúde mental. E para a integração”, finalizou Rana, praticante de badminton no Inatel (onde criou um grupo para praticar este desporto igualmente popular no Bangladesh) e boxe.

Subida no ranking e seleção feminina
As raízes do críquete em Portugal remontam aos finais do século XIX e, tal como aconteceu com o futebol, foram os ingleses a introduzir o jogo em território nacional.
Paulo Buccimazza, 43 anos, nascido na Cidade do Cabo, África do Sul, filho de mãe portuguesa e pai italiano conta a sua história. “Viemos para Portugal em 1995. Tinha 14 anos e convidaram-me para jogar críquete em Carcavelos, no Saint Julian’s. Em 2016, comecei na seleção”, lembrou.
Volta atrás no tempo. “A seleção começou em meados dos anos 90, começámos a competir na European Cricket Federation, agora ICC Europe, que gere o críquete na Europa. A federação é formalizada nos anos 2000”, recuperou.
Detém-se nos selecionados. “No início, havia portugueses de Goa, Diu, Moçambique e sul-africanos”. Hoje, a maioria são jogadores não nascidos em Portugal.
Vestem a camisola das Quinas se cumprirem as regras de elegibilidade do ICC - International Cricket Council-: “Residentes durante três anos, ou seja, 36 meses e não podem sair do país mais do que 60 dias nos três anos antes do primeiro jogo”, explicou.
Vira a agulha para a Liga nacional. Se num momento inicial “quatro a cinco equipas” compunham uma Liga, “em setembro de 2020, na abertura da pandemia, tivemos um torneio transmitido pelo European Cricket Network, empresa que organiza torneios de clubes e seleções e transmite jogos através do YouTube. E, a partir dali, houve um boom gigante aqui em Portugal”, reconheceu.
“Hoje, temos 20 e tal equipas a jogar no campeonato, temos uma 1.ª e 2.ª divisão. A 1.ª é dividida entre zona de Lisboa e zona norte, Porto e Coimbra”, esclareceu. Os jogadores, a maior parte deles, “são estrangeiros”, confirmou.
Paulo Buccimazza trabalha na Federação, “no desenvolvimento dos jogadores” e no European Cricket Network. E vai às escolas. “Para começar a desenvolver raízes e ser sustentável temos que ter formação e começar com os miúdos”, anotou.
Existem duas seleções, uma em desenvolvimento, a outra, principal. A subida no ranking faz parte as ambições da seleção principal. Portugal é 42.º no ICC . “Este ano, temos um plano para estar no top 36”, revelou.
Há mais ambições na gaveta federativa. “Queremos tentar lançar a seleção sub-19 e, a partir de abril, a seleção feminina”, antecipa Paulo Buccimazza.
Jogadores, não faltam. “Faltam campos, treinadores ...”, atirou. Há campos em “Santarém, Coimbra e Porto e, neste momento, sei que estão a tentar fazer um em Lisboa. Já conseguiram arranjar um local de treino para os lados de Alverca”, adiantou.
Outros dos problemas detetados é a falta de profissionalismo que acaba por ditar a fuga de talentos. “Qualquer jogador mais forte acaba por sair e temos alguns jogadores começaram cá jogar e agora estão no estrangeiro”, disse, despedindo-se.
Comentários