Diário de um pai em casa. Dia 41
Querido Diário, volto a abordar-te com deferência, talvez em busca de um conforto que o mundo lá fora não me está a dar. Em ti, reconheço, encontro um ninho de confidências e uma caixa de ressonâncias de sonhos que tardam em concretizar-se.
Por exemplo, desde ontem, há um que permanece na minha mente. Bem, não é bem desde ontem. Tem sido recorrente, mas recuando umas largas horas foi esse preciso sonho que tive. Um sonho que atravessou a noite enquanto estava deitado no sofá com o foco da luz da televisão nos olhos, na cama, às escuras e, inclusive, está a decorrer, acordado, nos instantes em que escrevo estas linhas.
Estou a dar um mergulho no mar. Com a cabeça enfiada na água salgada. A remar, contra as ondas, com a prancha de surf colada no corpo. Ou a fazer as populares “carreirinhas”. Mais um mergulho. E outro. Uma onda, mais outra e ainda outra. Água salgada em todos os poros do meu corpo. Tenho os ouvidos cheios de água e sal nas pestanas. E sinto-me a pessoa mais feliz do mundo. Devolveram-me a praia.
Claro que estou com os pés bem assentes na terra. E o único contacto que tenho com a maré é através do Beacham que transmite, através das câmaras em diversas praias de Portugal, o estado do mar. Hoje estavam umas boas ondas.
Desculpa a minha portugalidade. Mas nestes longos dias em que o ar se tornou um bem escasso mais valioso que o abundante petróleo e em que, para mim, o toque na água salgada vale um milhão de dólares mais que a commodities de cor preta, eu quero mesmo é ter a oportunidade de mergulhar ali para os lados da Caparica. O mais rápido possível. Já não aguento.
Se há algo que sinto falta mesmo, é exatamente isso. Do mar. Se estivéssemos a chegar ao Fim da História ou à extinção do mundo tal como o conhecemos, se tivéssemos que ficar para sempre fechados em casa, concedido o último desejo, esse configuraria a figura de uma onda salgada na cara. Morreria feliz.
Sou um ser virado para a água. Poderia ser, admito, para a serra ou do campo. Mas não sou. Sou feito de água. Necessito dessa injeção. Desculpem-me as outras geografias.
Desde pequeno que fui atirado para o mar da Ericeira. Que frequento o Guincho, Carcavelos e Caparica. O ano inteiro, atente-se e não em exclusivo quando o sol fica quente.
Os meus quatro filhos acompanham-me, à vez, e, de vez em quando, durante a estação outono-inverno. No verão, nas férias, tal como uma qualquer família portuguesa que se preze, rumo ao litoral. Rumo a sul, à praia do Barril, Tavira, onde também eu, desde uma infância distante, me delicio com a mistura da água com a magnífica bola de Berlim, durante uns bons 10 dias a que se segue uma curta estadia em Sagres.
O governo português já fez saber que terá, este ano, um plano de contingência para as idas às praias. Aguardo com natural ansiedade as possibilidades que possam sair dos gabinetes do executivo e das entidades envolvidas, Marinha, Instituto Socorros a Náufragos e DGS. Medições de distâncias, restrições ou proibições, idas à vez. Venha de lá esse Manual.
Da minha parte, tu sabes Querido Diário, prescindo da areia. Basta-me um corredor, uma passadeira até à água, para que possa, acompanhado da minha prancha, fazer-me às ondas. Na companhia dos filhos que quiserem acompanhar-me.
Na véspera do Dia da Liberdade, não conheço gesto mais democrático que este. Entrar mar dentro, sem pedir licença ou pagar imposto. Só para poder mergulhar. E regressar.
Estou preparado para entrar às 0h01 de dia 3 de maio, se se concretizar o fim do Estado de Emergência. Ao som da música que entendam anunciar para sair à rua. De no caso, ir à praia.
Tem a palavra o senhor primeiro-ministro e quem o aconselha.
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