Surreal - Que causa ou denota estranheza, não pertencendo à esfera do real; absurdo, bizarro, estranho.
Eram quase 22h50 em Lisboa do dia 13 de abril de 2020, menos cinco horas em Washington D. C., nos Estados Unidos, quando Donald Trump entrou na sala de imprensa da Casa Branca para mais uma conferência de imprensa (têm sido quase diárias). À sua espera estavam 35 cadeiras vazias a separar os 14 jornalistas ali sentados (oito homens, seis mulheres), além dos fotojornalistas que circulavam.
O Presidente dos EUA chegou acompanhado pelo vice-presidente, Mike Pence, e por elementos do grupo de trabalho dedicado ao combate ao novo coronavírus, incluindo Anthony Fauci, imunologista consultor científico da Casa Branca e um dos nomes mais conhecidos do momento nos Estados Unidos, e Deborah Birx, médica coordenadora da equipa de resposta à pandemia no país.
A conferência de imprensa teve a duração de 2h23m - e é apontada por alguns como a mais longa na governação de Trump.
A sequência de intervenções foi, de forma muito sintética, qualquer coisa como isto:
- Trump introduziu a conferência de imprensa;
- Fauci pediu uns minutos para esclarecer brevemente uma polémica que se levantou no fim de semana e que o punha potencialmente em rota de colisão com o Presidente;
- Trump falou sobre as medidas tomadas pela Administração em janeiro e a seguir pediu que fosse projetado um vídeo (“Temos alguns clipes que vamos passar. Por favor, baixem as luzes. Acho que vão achar isto interessante”);
- O vídeo, com cerca de três minutos, mostra uma seleção de declarações feitas por políticos e jornalistas separadas por frases como “a imprensa minimizou o risco desde o início”, “enquanto o Presidente Trump agiu de forma decisiva” e “os governadores dos dois partidos reconhecem o apoio do Presidente”;
- Seguiram-se, durante 1h20m, as questões, com momentos de intervenção de Steve Mnuchin, secretário do Tesouro dos EUA, e do vice-presidente, Mike Pence;
- Foram feitas cerca de 70 perguntas ao Presidente (contadas a dedo, a partir da transcrição da sessão).
- As questões foram essencialmente focadas no vídeo apresentado no início, na relação de Trump com Fauci, nas ações da Administração durante o mês de fevereiro e no poder que o Presidente dos EUA tem sobre os estados, com Trump a dizer que a sua “autoridade é total” - este foi, de resto, o tópico que mais perguntas suscitou na sessão e que tem continuado a gerar debate;
- A dinâmica de perguntas e respostas teve momentos de tensão, perguntas sem resposta, comentários inesperados;
- Apenas no final, nos últimos 40 minutos, já sem Trump na sala, chegaram as intervenções sobre os números do dia, a curva de casos, a capacidade de testagem e os meios de proteção que estão a ser distribuídos.
Eram 1h12 da manhã em Lisboa (já de terça-feira) e 20h12 em Washington D. C. quando a conferência de imprensa acabou.
Fechou-se a porta daquela sala. Estava aberto o terreno para alimentar a espiral que ali se tinha iniciado. Durante todo o dia de terça-feira, jornalistas, comentadores, políticos, cidadãos multiplicaram, nas várias plataformas, as suas visões sobre as declarações do Presidente, o tom das comunicações, as dúvidas que ficaram por esclarecer, a falta de sentido democrático do Presidente para uns, a perseguição da comunicação social a Trump para outros.
Para melhor entendermos o que ali se passou, vamos retomar as perguntas feitas pelos jornalistas, bem como as respostas dadas por Donald Trump - e o respetivo contexto.
A dinâmica de perguntas e respostas das conferências de imprensa de Trump tem seguido alguns padrões. A desta segunda-feira não foi exceção. Vejamos alguns exemplos.
Há sempre assuntos que ficam sem resposta. Um deles, neste caso, foi as medidas tomadas fevereiro pela Administração Trump. Segundo a jornalista Paula Reid (da CBS), entre as medidas tomadas em janeiro e o anúncio da necessidade de distanciamento social em meados de março, há um período largo que precisa de ser explicado.
Jornalista: O que fez a sua Administração durante o mês de fevereiro? [o tempo de resposta da Casa Branca à pandemia tem sido um tema-chave e controverso nos Estados Unidos]
Trump: Muito.
Jornalista: O quê?
Trump: Muito. E vamos dar-vos uma lista com o que fizemos. Na verdade, parte estava ali no vídeo, Fizemos muito.
Jornalista: Não estava no vídeo. O vídeo tem um hiato.
Trump: Repare, repare… Vocês sabem que são falsos [fake]. Vocês sabem disso. Toda a vossa cadeia de televisão, a maneira como fazem a cobertura, é falsa.
Jornalista: Então, dê-nos a lista do que fizeram em fevereiro.
Trump: Eu podia ter mantido o país aberto. Podia ter feito o que alguns países estão a fazer. E eles estão a ser muito atingidos. (…) Nós fizemos isto bem. Nós realmente fizemos isto bem. O problema é a imprensa que não faz a cobertura como deve ser. Vamos, mais uma pergunta.
(a interação completa acontece a partir daqui)
O tema só voltou a ser mencionado já no final da conferência de imprensa, numa pergunta dirigida a Anthony Fauci, num tom marcadamente diferente, quer por parte do jornalista quer por parte do responsável (ainda vamos voltar a este ponto).
Trump publicou no dia seguinte um tweet na sua conta oficial com a cronologia dos acontecimentos em fevereiro.
Há também os assuntos que crescem em escala. Desta vez, foi o tema do poder do Presidente dos EUA sobre as decisões tomadas ao nível dos estados.
A pergunta surgiu ao minuto 38: “Há um debate sobre a autoridade que o Presidente tem para ordenar a reabertura do país. Que autoridade tem?”.
“Tenho a autoridade final”, afirmou Trump sem hesitar. “Mas já voltamos a isso daqui a nada. Vamos só acabar este assunto”.
O tema foi retomado cerca de vinte minutos depois por um outro jornalista: “Em relação a alguns dos seus tweets de hoje [dia 13], a minha pergunta é: que cláusula da Constituição dá ao Presidente o poder para abrir ou fechar as economias dos estados?”. “Numerosas cláusulas. Se quiser, fazemos-lhe um resumo jurídico sobre isso”, respondeu o Presidente, que manteve a posição ao longo de toda a conferência.
Estas foram outras formulações de Trump para a mesma ideia: “Vou colocar a questão de forma muito simples: o Presidente dos EUA tem a autoridade para fazer o que o Presidente tem a autoridade para fazer, e é muito poderosa”; “O Presidente dos EUA é quem decide”; “Quando uma pessoa é Presidente dos EUA, a autoridade é total, e é assim que tem de ser”.
Este haveria de se tornar um dos temas mais comentados na imprensa norte-americana no dia seguinte. Também no dia seguinte, Trump acabou por aligeirar o discurso (já lá vamos).
Há ainda as respostas que não correspondem às perguntas e as reações que não se conta ver num chefe de Estado. A título de exemplo:
- Trump: “Depois [do vídeo] iremos responder a algumas questões. E eu farei algumas perguntas, porque vocês são culpados… Mas esqueçam”.
- Jornalista: “Porque é que tweetou uma publicação que dizia 'Despeçam o Fauci'”?; Trump: “Eu retweetei a partir de alguém. Não sei. Dizia 'despeçam'. Não interessa”.
- Jornalista: “Hoje [dia 13] o presidente francês, Emmanuel Macron, disse que vai manter França fechada até meados de maio. Isto significa que os EUA vão manter a interdição dos voos de…”; Trump: “Não, França foi atingida com muita força. E, de novo, ele tem de fazer o que tem de fazer. Ele é meu amigo”.
- Jornalista: “Quais são as consequências, senhor Presidente, pela desinformação [de que a China é acusada]?”; Trump: “Não te diria. Serias provavelmente a última pessoa na Terra a quem eu diria”.
Duas exceções ao padrão
Às vezes, as informações que merecem mais atenção estão nas nuances, e virar as perguntas ao contrário permite-nos encontrar algumas pistas. Com inspiração numa abordagem que convida a que não simplifiquemos demasiado o discurso, ficam duas perguntas que procuram adensar a narrativa: uma em busca dos elementos de empatia, a outra atrás das motivações.
1. O que poderia ter gerado mais empatia, de parte a parte, na comunicação entre jornalistas e o executivo da Casa Branca na conferência de imprensa?
Empatia não implica deixar de confrontar, mas abre espaço a uma interação mais construtiva e de escuta mútua. Na conferência de imprensa, houve um momento em que este tipo de comunicação se evidenciou: quase no final, um jornalista dirigiu-se a Anthony Fauci e a resposta deste até risos incluiu (a partir daqui). “Quais acha que foram os erros cometidos no início do processo para que um futuro Presidente possa aprender, com o benefício da retrospetiva?”, a pergunta chegou num tom calmo. Fauci também calmamente respondeu: “Não quero usar a palavra ‘erros’, porque quando estamos no meio da fog of war [confusão num momento crítico], temos de tomar decisões. (…) E eu não quero que nada seja tirado do contexto porque já tive uma destas estes últimos dias (ri-se) e não quero meter-me nisso outra vez”.
2. Porque é que este tempo de lavagem da imagem era importante para o Trump?
Depois de o Presidente divulgar o vídeo inicial, um dos jornalistas perguntou: “Porque é que sente necessidade de fazer isto?”. Trump respondeu: “Porque estamos a ser vítimas de notícias falsas e eu gostava de as corrigir”. Trump referia-se, em particular, a um longo trabalho do The New York Times, com análise de documentos internos à Administração, publicado este fim de semana, em que o Presidente é acusado de ter demorado demasiado a responder à pandemia.
Que ecos ficaram depois?
Um dos sinais de que a conferência de imprensa de segunda-feira mexeu com o país é a multiplicação de títulos no dia seguinte sobre o assunto.
Estes são alguns exemplos retirados de agências noticiosas, de meios de comunicação que Trump usa como referência e de outros que o Presidente norte-americano habitualmente critica.
Associated Press (agência norte-americana): “Trump reclama autoridade 'total', sobre os governadores, para reabrir a economia”.
Fox News (EUA): “Trump lembra ações imediatas contra o coronavírus em conferência de imprensa controversa, e Fauci lamenta ‘má escolha de palavras’”
New York Post (EUA): “Presidente Trump diz que é ele quem tem autoridade para reabrir a economia, não são os governadores”
Washignton Times (EUA): “Trump destrói imprensa com vídeo sobre o coronavírus num estilo de campanha”
The New York Times (EUA): “Trump transforma conferência de imprensa diária sobre o coronavírus numa defesa do seu historial”
NBC News (EUA): “Trump diz que lhe cabe a decisão de quando 'reabrir' o país. Está enganado.”
The Guardian (Reino Unido): “Ferido pelo escrutínio da imprensa, Trump transformou uma conferência de imprensa numa birra presidencial”
BBC (Reino Unido): “Coronavírus: Trump disputa autoridade com governadores”
Que filme é este?
Além da presença na imprensa, o assunto teve também desenvolvimentos nas redes sociais. No Twitter, uma das formas de comunicação de eleição para Trump, o Presidente dos EUA fez algumas publicações que mostraram a sua insatisfação.
Ainda na segunda-feira à noite, Trump publicou vídeos da Fox News a criticarem a cobertura da conferência de imprensa por outros canais — e aqui, por exemplo, um comentador faz piadas com as manchetes da CNN.
A dado momento, já a meio do dia de terça-feira, chegou mais um tweet de Trump. Dizia: “Digam aos governadores democratas que "Mutiny On The Bounty” [Revolta na Bounty] foi um dos meus filmes favoritos de todos os tempos. Um bom motim antiquado de vez em quando é algo emocionante e revigorante de se assistir, especialmente quando aqueles que fazem o motim precisam tanto do capitão. Muito fácil!”.
Mas que filme é este? Embora nos comentários à publicação vários utilizadores remetessem para a história do filme, ali o que estava em causa era, claro, muito mais do que uma referência cinematográfica. No limite, importa não esquecer, trata-se de um país que contabiliza, à data, mais de 30 mil mortos e de 650 mil infetados confirmados, enquanto combate, sem fim à vista ainda, a pandemia da Covid-19.
Ao longo do dia de terça-feira viríamos a perceber que também este tweet iria provocar ondas de choque. Poucas horas depois, aí estavam elas a chegar à conferência de imprensa do governador do estado de Nova Iorque, Andrew Cuomo — outra figura que se tem destacado nos EUA e ganhado projeção durante esta crise.
“O Presidente não vai ter uma guerra comigo. Eu não vou entrar nisso”, disse o governador democrata. “Este não é tempo para política, e não é tempo para guerras. Estendo a minha mão em total parceria e cooperação com o Presidente. Se ele quer uma guerra, não é de mim que a vai ter. Ponto.”
A afirmação chegou depois de uma manhã em que o governador tinha usado frases algo provocatórias em resposta à declaração de autoridade absoluta que Trump tinha feito na véspera. Andrew Cuomo, que lidera um dos estados mais afetados pela pandemia, não tardou a responder: “Não temos um rei. Temos um Presidente. (…) Fugimos de ter um rei e George Washington era Presidente, não era o rei Washington. Logo, o Presidente [Donald Trump] não tem autoridade total [para decidir a reabertura do país à economia, no meio da pandemia da Covid-19].”
Mas, mais tarde, na conferência de imprensa, mudou de tom. Recorreu a uma memória da sua infância para explicar porque o fizera.
“Saint Gerard Majella, Queens, Nova Iorque. Escola católica. Blazer vermelho, calças cinzentas, camisa branca, pequeno clipe na gravata (…). Ali estava um poster, que vinha de um poema de Sandburg, acho. 'Imagina que eles começavam uma guerra e que ninguém aparecia'. Eu olhei para o poster e não percebi. 'Imagina que eles começavam uma guerra e que ninguém aparecia'… Então, um padre chegou-se ao pé de mim e perguntou: 'O que se passa, Andrew?'. Eu respondi: 'Não percebo. Imagina que eles começavam uma guerra e que ninguém aparecia…'. Ele disse: 'Sabes, às vezes, é preciso mais força para evitar uma guerra do que para entrar nela'”.
O governador do estado de Nova Iorque terminou a sua conferência de imprensa reforçando que quer “trabalhar com o Presidente”, mas que não lhe vai dar espaço para uma “guerra”. “A menos que ele sugira que façamos algo que seja imprudente e que ponha em perigo a saúde ou o bem-estar da população do Estado. Aí, eu não teria escolha. Mas, fora isso, estendo a minha mão e vamos fazer isto juntos”.
Ao final do dia de terça-feira, 14 de abril, foi a vez de Donald Trump na conferência de imprensa diária (em que viria a anunciar a suspensão do financiamento dos EUA à Organização Mundial de Saúde): “Eu não vou pôr pressão sobre nenhum governador para abrir [a economia do estado]. Não vou dizer ao governador Cuomo ‘Tens de abrir dentro de sete dias’. Quero que ele faça ao seu ritmo, faça a coisa certa, e depois abra Nova Iorque. (…) Vamos trabalhar com os governadores. Os governadores vão fazer um ótimo trabalho. E se não fizerem, vamos cair em cima deles em força. Não teremos outra escolha. Muito obrigado a todos”.
Já esta quinta-feira, 16 de abril, em nova conferência de imprensa - anunciada no Twitter por Trump como “Major News Conference” [Importante Conferência de Imprensa] - o Presidente norte-americano apresentou um plano para reabrir a economia do país em três etapas. A comunicação foi feita num dia em que os Estados Unidos registaram mais de quatro mil mortes.
Numa alteração do tom do discurso usado na segunda-feira, Trump garantiu que os governadores, e não a Casa Branca, serão responsáveis por tomar a decisão.
A questão está longe de estar fechada. E todos os dias, em particular enquanto se mantiver a incógnita sobre quando haverá condições para reabrir a economia em cada um dos estados do país, novos desenvolvimentos se podem esperar neste enredo da vida real.
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