A Autoridade Tributária (AT) está a enviar alertas a "figuras públicas identificadas através de pesquisas a sítios da internet com o objetivo de promover o cumprimento voluntário através da divulgação de informações sobre as respetivas obrigações fiscais".

Esta é uma das medidas adotadas pela AT para "apoiar" os "influenciadores digitais", de acordo com o gabinete do ministro de Estado e das Finanças, que respondeu assim às perguntas da Iniciativa Liberal a Joaquim Miranda Sarmento, a propósito das queixas que diversas associações de esports e agências de influencers têm apresentado sobre a forma como a Autoridade Tributária está a taxar os rendimentos dos criadores de conteúdos digitais.

Há criadores de conteúdos a receber mais de 10 mil euros por post em Portugal. Outros recebem doações em espécie. Muito ou pouco, fuga ao fisco ou dupla tributação, a crítica vai sobretudo para o modo discricionário como os rendimentos destes profissionais são tributados. A lei é dúbia e o tratamento é desigual, dizem, e está mais dependente de quem analisa as contas do que da lei.

Uma das dúvidas levantadas pela IL tem a ver com a tributação de doações. De acordo com o Código do Imposto do Selo é obrigatório declarar doações acima dos 500 euros, sobre as quais recai um imposto de 10%, ficando isentas de IRS e IVA. No entanto, há relatos de que a Autoridade Tributária está a incluir estes montantes no IRS (e IVA, subsequentemente). "Qual é, afinal, a interpretação correta da lei", quis saber a Iniciativa Liberal.

A resposta do governo chegou, mas é pouco esclarecedora. "No que diz respeito aos 'donativos' auferidos por streamers, youtubers e outros criadores de conteúdos digitais, o respetivo enquadramento depende de apreciação casuística, tendo em conta o contexto". Sendo assim, como se distingue aquilo que pode ser uma liberalidade? Para os fiscalistas contactados pelo SAPO24, a resposta está no facto de se tratar ou não de uma atividade continuada.

Para a Iniciativa Liberal seria mais claro fazer a distinção entre "pagamentos recorrentes ou aquisição de conteúdos digitais e donativos, de tal forma que quem produz conteúdos em direto não seja prejudicado e possa nesses momentos receber contribuições ad hoc, que não devem ser tratadas como rendimentos de trabalho".

"O problema é que a administração fiscal está bloqueada, o sistema é obsoleto e incapaz de se adaptar aos novos desafios", considera o ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais Carlos Lobo. Que entende que antes de ser persecutória, a administração devia entrar em contacto com as diversas associações e representantes do sector e procurar um entendimento para encontrar um modelo de tributação".

Se o método que a AT está a adotar para "apoiar o cumprimento voluntário dos influenciadores digitais - enviar "alertas" a "contribuintes com presença nas redes sociais" não é ilegal, ele é, no mínimo, pouco ortodoxo. "Em sua defesa, a Autoridade Tributária pode sempre dizer que não de trata de um procedimento administrativo, mas apenas de um aviso. No entanto, a medida é arbitrária", diz Carlos Lobo.

O gabinete de Joaquim Miranda Sarmento admite, na resposta à Iniciativa Liberal, que "estamos perante matéria que se reveste de elevada complexidade e que justifica e carece de coordenação entre as administrações fiscais, nomeadamente no seio da União Europeia e, desejavelmente, a nível global".

Profissão gamer não existe na lei

Para a IL, "a crescente importância das novas profissões digitais - gamers, streamers, criadores de conteúdos - torna essencial garantir uma legislação fiscal que acompanhe a evolução do sector". No entanto, "muitos destes profissionais têm dificuldade em interpretar e aplicar correctamente as regras fiscais, o que pode resultar em incumprimento involuntário", diz o deputado Bernardo Blanco ao SAPO24.

Uma das áreas cinzentas é a dos desportos digitais. Gonçalo Brandeiro é vice-presidente de uma associação de clubes de gaming, a Fepodele (e, declaração de interesses, membro da IL), e explica que "o problema começa logo por a profissão de gamer não existir", ainda que a indústria seja já a mais lucrativa do mundo na área do entretenimento: 24,5 mil milhões de euros na Europa, 170 mil milhões a nível mundial, em 2022.

Sem CAE (classificação de atividade económica), estes profissionais inserem-se naquilo que são "outros prestadores de serviços". Gonçalo Brandeiro critica a ausência de legislação e diz que "a profissão é em tudo semelhante à de um atleta, exceto no que toca à parte física, embora também seja de desgaste rápido (16 aos 26 anos)". Classificar as duas atividades da mesma forma poderia ser a solução, acredita.

Sobre esta matéria, Carlos Lobo deixa clara a sua posição "contra a utilização das CAE para fins tributários, quando foram criadas para fins estatísticos - até se perceber que serviam para cobrar mais impostos". 

Portugal não é o único país sem legislação em matéria de tributação de gamers e na Europa França faz parte das exceções. Sem lei, "perde o Estado em impostos e perdemos nós em benefícios". Mas mesmo no gaming o espectro é vasto: gamers, influenciadores gamers e até apostadores, um mercado em crescimento, mas vedado em Portugal. "Como não há legislação, os apostadores vão todos para mercados ilegais", admite o vice-presidente da Fepodele. "Ficam todos a perder".

João Jerónimo, sócio-gerente da Universemblematik, dona da EGN Esports e gestora de carreira de criadores de conteúdos, confirma que a declaração de rendimentos de cada um depende da interpretação feita por cada contabilista. E lembra que a maior parte dos atletas trabalha com recibos verdes, ou seja, são prestadores de serviços.

Aqui, o imbróglio estende-se à Segurança Social, que assume a relação laboral como contrato de trabalho normal e não como contrato de agenciamento, pelo que vai buscar à empresa 10% do que é faturado pelo criador de conteúdos.

Como "o agenciado está em regime de exclusividade com a agência, logo mais de 80% da sua faturação é com a agência. Isto dificulta as margens serem maiores para o agenciado de pequena dimensão, uma vez que a empresa perde dinheiro se comissão for mais pequena, já que no ano seguinte a Segurança Social vai buscar os 10%. Por isso é mais vantajoso trabalhar com criadores que já tenham empresa (o que só acontece quando têm maior dimensão)", explica João Jerónimo.

Governo disponível para "simplificar obrigações declarativas"

A boa notícia é que o governo diz que "está sempre disponível para simplificar as obrigações declarativas de forma a reduzir os custos de cumprimento, sem prejudicar a obtenção da informação necessária para assegurar a liquidação e o pagamento dos impostos devidos e, bem assim, a fiscalização e o combate à evasão fiscal".

A má notícia é que nada disto está contemplado no pacote das 30 medidas para a simplificação fiscal que o Conselho de Ministros aprovou esta quinta-feira e que o governo pretende pôr em prática nos próximos dois anos, com o objetivo de reduzir custos de contexto e aproximar cidadão e administração fiscal.

Em causa estão muitas novas profissões do digital além dos gamers, como influencers, streamers ou os criadores de conteúdos em geral. Para a CEO da Notable, consultora de comunicação, agenciamento e gestão publicitária, "todas as medidas que contribuam para uma maior transparência são benéficas para todas as partes, o que credibiliza a área", diz Inês Mendes da Silva, CEO da empresa.

"No final de contas", afirma, "é um trabalho profissional, remunerado e que deve obedecer a regras. Desde o primeiro momento em que criámos a Notable temos trabalhado muito, internamente, para garantir transparência e clarificação financeira - sejam influenciadores, atores ou apresentadores. E estamos inteiramente disponíveis para refletir e pensar sobre estas e outras medidas para o sector da comunicação, que está a sofrer alterações profundas".

A IL promete não largar o tema e Bernardo Blanco garante que voltará a interpelar o governo sobre esta matéria. Para já, fica o desafio dos liberais para o executivo instruir a AT a elaborar guias de apoio fiscal que esclareçam a tributação de rendimentos provenientes de novas profissões digitais.