O Metro de São Paulo transporta diariamente quase cinco milhões de pessoas no ir e vir de casa para o trabalho. Quem passar por uma de suas estações, a de Itaquera, pode vir a ser um dos consumidores atendidos na loja McDonald’s do centro comercial ao pé dessa estação, que consomem 69 mil Big Macs diariamente - o que ajudará a mantê-la entre as mais movimentadas do mundo, mano a mano com Pequim, Moscovo e Paris.
É uma cidade de grandes números. Alguns assustadores: enquanto em Nova Iorque existem sete ratos por habitante e em Londres “apenas” três, em São Paulo calcula-se que cada morador tenha uma quota generosa de 15 roedores. Quem vive nela ignora isso. É atraído pela sua grandeza, riqueza e, paradoxalmente, por uma vida confortável entre seus 12,5 milhões de habitantes - dois milhões a mais que Portugal.
Ter uma rotina repetitiva e, às vezes extenuante, é ter para onde ir e, mais importante, para onde voltar. Quem não tem isso, aos poucos distancia-se de valores sociais que passam a representar cada vez menos na sua própria existência, e o risco de sucumbir aumenta. Como olhar para os grandes números que norteiam São Paulo e ignorar o sofrimento de seres humanos que compõem a sua rica diversidade cultural? Durante anos foi assim, todos a fechar o vidro dos carros para evitar o contacto, uns poucos a oferecer alguns trocos como uma solução paliativa - para a sua própria consciência - e seguir em frente com a impressão de que essas pessoas se safariam daquela vida ou desapareceriam, como aconteceu no espelho retrovisor. Entretanto, no semáforo seguinte estarão ali novamente. Todos iguais, com a mesma expressão de sofrimento.
O poema “No meio do Caminho”, de Carlos Drummond de Andrade, começa com uma frase que explica o que motivou a sociedade a sair da zona de conforto: “No meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho...”. Foi preciso que o consumo de crack, que está espalhado pela cidade, mas com uma zona de comércio (chamada “fluxo”) instalada na região central, passasse a dominar uma rua inteira e tomasse dimensões assustadoras com intervenções policiais, para que a sociedade voltasse o seu olhar para a vulnerabilidade daqueles que vivem nas ruas. Segundo a Secretaria de Segurança Pública, com actividade criminosa intensa, o “fluxo” movimenta algo em torno de 50 milhões de euros por ano - o crack é um drama específico da cidade, cujas políticas adoptadas vamos abordar noutra oportunidade. Alvos fáceis para os traficantes, os sem-abrigo, cujas vidas já estão sem um norte, quando entram para o mundo do crack enterram de vez o que ainda restava-lhes de dignidade humana.
A classe média passou a comentar nas redes sociais sobre os sem-abrigo, mas deu ao tema o mesmo peso que dá aos buracos por onde passam seus carros importados e ao trânsito caótico. A ideia por trás dos desabafos é sempre a de que o poder público deve resolver aquilo que incomoda a todos, especialmente o que está a incomodar-me hoje. O autarca de São Paulo, que assumiu no início de 2017, anunciou em janeiro o programa Trabalho Novo, com o qual aposta na meta de empregar 20 mil sem-abrigo até 31 de dezembro deste ano. Uma das condições para fazer parte do projecto é comprometer-se a deixar as ruas em até 90 dias. A promessa é ambiciosa e pouco provável que seja cumprida nesse curto espaço de tempo, mas parece que é um dos caminhos para a solução de um drama que parece sem fim. É o que mostram alguns líderes empresariais envolvidos no projecto.
Um deles é Marcelo Nóbrega, director da área de recursos humanos da empresa Arcos Dourados, administradora da rede McDonald’s no Brasil. Ele tomou conhecimento do projeto através do presidente da Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH), responsável por encontrar empresas que aceitariam fazer parte do “Trabalho Novo”. Aceitou de início, quando estava ainda incipiente e não havia como medir resultados. “Entrei por ter notado que este é um caminho de transformação social que não se esgota nele mesmo. Aquelas pessoas resgatadas das ruas geram um círculo de energia ao seu redor que poucas vezes se consegue alcançar. É uma energia renovadora na qual acredito". A sua gestão já trabalhava com esse modelo de inserção antes deste projecto. “Nós disponibilizamos vagas aos Centros de Apoio ao Trabalhador (CAT) - órgãos vinculados a Prefeitura [autarquia] que disponibilizam vagas de emprego -, e temos muitos profissionais que entraram por esse sistema. Uma vez contratados, nós os treinamos e acompanhamos o desenvolvimento de cada um. Há muita contratação com o perfil de primeiro emprego, o que é diferente no caso do “Trabalho Novo”, onde tratamos com pessoas com mais experiência de vida. Um dos contratados desse projecto é electricista e tem 38 anos mas, como seus colegas, teve de se iniciar na área de manutenção e limpeza, isso vale para todos. Evidente que seus conhecimentos e eventual formação técnica irão ajudá-lo a migrar para a sua área no momento adequado".
Outra funcionária que a empresa contratou pelo projecto contou-nos um pouco da sua história. Há três anos, Ivanice Sousa, então com 33 anos, viu-se viúva, mãe de seis filhos, desempregada e sem perspetivas. Numa iniciativa arriscada e com poucas chances de dar certo, pegou nos filhos e saiu da cidade onde vivia para tentar a sorte em São Paulo. “Coloquei uma mochila de roupas nas minhas costas e em cada um dos meus filhos e seguimos para São Paulo sem ter onde ficar.” Ivanice passou a morar em ocupações de Sem Tecto e em abrigos da autarquia. “Ia mudando à procura de algum lugar melhor. Nessa busca perdi um filho de 15 anos para as drogas". O adolescente fazia uso de lança-perfume e teve uma parada cardiorrespiratória. “Trabalhei a fazer limpeza em residências familiares mas também andei na rua a vender gomas e chocolates". Para o director de RH, cuja gestão é reconhecida e premiada, Ivanice é um case de sucesso.
“Ela e a filha mais velha trabalham na mesma loja - que se localiza próxima do abrigo da prefeitura onde vivem. Como Ivanice tem filhos pequenos em idade escolar, o horário dela foi planeado para que saia da loja e possa ir buscar os filhos a meio da tarde. Garantindo que estejam sob os cuidados da mãe quando não estão na escola” refere Nóbrega.
Muito perto daquela loja recordista de vendas de BigMac e também num centro comercial ao pé de uma estação do Metro, há um outro caso bem sucedido. O seu nome é Wagner Leite, tem 38 anos, e saiu de Niterói, no Rio de Janeiro, para reconstruir a vida em São Paulo e distanciar-se de companhias que o mantinham perto das drogas. “Tive uma vida de muito conforto. Vivia com minha família num bom apartamento em Niterói. Minha mãe morreu, meu pai e eu nos desentendemos e eu perdi o chão. Não demorou muito e quem morreu foi meu pai”. Já sem chão, Wagner perderia o tecto para as drogas. Sem o apartamento foi morar na oficina deixada pelo pai, até sentir que não era mais seguro, “tinha péssimas companhias pois usava drogas, e usei de tudo”. O preço que Wagner paga por esse histórico são pulmões frágeis e défice de atenção. “Todos na minha loja sabem da minha história. Faço questão de contar. Tenho um amigo que entrou por minha indicação no projeto e está em uma loja a reconstruir a sua vida como eu”. O amigo é o electricista citado neste artigo pelo diretor de RH da Arcos Dourados. Wagner, assim que recebeu o primeiro salário, saiu do abrigo da autarquia e arrendou um quarto de hotel. “Eu tenho o apoio de muita gente do bem ao meu redor. A gerente da minha loja é um anjo, mas os colegas também são. Sabendo minha história, não foi preciso somar dois mais dois para saber que eu não tinha onde, nem o que jantar. Passaram a trazer marmita para que eu me alimentasse a noite “em casa”. Um dia alguém perguntou: mas você tem onde aquecer a comida? Respondi que não, mas que estava tudo bem. No dia seguinte ganhei uma bolsa térmica. São anjos ou não são?”.
Para Marcelo Nóbrega é exactamente esse o propósito de transformação que mais o interessa. Embora a sua empresa já contratasse pessoas em condições de risco há algum tempo, “este projecto oferece uma mais valia nas relações humanas” explica. A pessoa que é tirada das ruas pelo emprego, nos oferece a oportunidade de ajudá-la no resgate da sua dignidade e autoestima, mas se torna agente de transformação daqueles que estão ao seu redor. Daí a importância de saberem a verdadeira origem da pessoa, o que há por trás daquela farda”. Para o executivo, o sentido final do projecto é muito maior do que solucionar um problema da cidade: “está mais do que na hora de despertarmos a generosidade nas pessoas para com os outros. Mas de maneira genuína, sem procurar ganhos pessoais. Quando resgatamos essas pessoas, fazemos-lhes um bem enorme, mas elas fazem um bem maior ainda para todos nós, que precisamos dessa onda generosa espalhada pelo mundo. Precisamos que essa energia trinque o verniz da desconfiança e abra a oportunidade para que o bem comum seja mais importante do que o individual. Cabe a cada um de nós um esforço pessoal para que o caminho do amor ao próximo se transforme numa larga avenida de generosidade”, defende.
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