Tem 43 anos, é do Porto, advogado de empresas - "no setor privado", sublinha. Foi aluno de Paulo Rangel e de Azeredo Lopes, mas poucos serão os portugueses que o conhecem. O seu nome, no entanto, será cada vez mais falado e nas próximas eleições presidenciais, previstas para Janeiro próximo, figurará no boletim de voto: Tiago Mayan é candidato à Presidência da República e tem o apoio da Iniciativa Liberal.
O interesse pela política surgiu quando percebeu que podia fazer algo diferente, ser uma nova opção: "Atraiu-me porque percebi que ali havia esperança", disse ao SAPO24. Também ele era um liberal e não sabia, como anunciava a campanha da IL. Depois de agir a nível local, depois de eleger um deputado para a Assembleia da República, chegou a altura de dar um passo maior: agora, só falta reunir o número mínimo de 7500 assinaturas, o resto serão os eleitores a decidir.
No início de agosto, a sondagem da Católica para a RTP e jornal "Público" mostrava que a Iniciativa Liberal (e o Chega) veio para ficar. Num artigo de análise, com algumas extrapolações, a empresa de sondagens diz que a IL está a capitalizar votos no eleitorado tradicionalmente do PSD e CDS, mas também nos votos em branco e na abstenção.
Mayan não sabe bem a origem do seu apelido, apesar das pesquisas do pai, a não ser que é espanhol e que, em hebraico, quer dizer "nascente". Pode ser presságio. E sabe que quer viver num país mais livre e transparente, onde um presidente da República não aceita quieto as contínuas ingerências de um órgão de soberania, o governo, noutros órgãos ou entidades. "Há linhas vermelhas que não podem ser ultrapassadas" e que, na opinião do candidato, são agora atropeladas quase todos os dias.
Antes de mais, pergunto-lhe o motivo que o levou a apresentar-se como candidato à Presidência da República e, antes disso, entrar na política?
O envolvimento político directo e ativo foi no contexto do movimento Rui Moreira, que o levou à primeira eleição [Câmara Municipal do Porto], em 2013. Antes nunca tinha estado interessado na política, porque o cenário que via não era interessante.
o grande catalisador para a fundação da Iniciativa Liberal foram os incêndios de Pedrógão e a gestão que foi feita - ou que não foi feita - por todos os órgãos de soberania, nomeadamente por Marcelo Rebelo de Sousa
E agora é? O que mudou?
Começou a ser. Começou a ser, porque percebi, primeiro, que num movimento de base, a nível local, podiam ser feitas coisas diferentes - que fizemos e conseguimos ter sucesso no movimento Rui Moreira. Aliás, continuo envolvido, participei na segunda candidatura, em 2017. E aí comecei a perceber que havia espaço para pensar e sonhar que, se realmente não vemos opções nenhumas, o melhor é criá-las. Penso que o grande catalisador para a fundação da Iniciativa Liberal foram os incêndios de Pedrógão e a gestão que foi feita - ou que não foi feita - por todos os órgãos de soberania, nomeadamente por Marcelo Rebelo de Sousa. Esse foi o alarme que nos fez, ao grupo que fundou a Iniciativa Liberal, sentir a urgência de constituir um partido. Porque sem um partido não é possível ter uma ação política completa no país. Era um risco grande, mas se queríamos ter uma opção, tínhamos de a criar.
Foi no Porto que tudo começou, mas acabou por ser Lisboa a eleger um deputado.
O eleitorado da Iniciativa Liberal tem um perfil muito urbano e Lisboa tem a maior concentração urbana do país, por isso, é natural que isso se reflita nos resultados. Eu estava, em termos práticos, a dirigir a campanha no Porto, mas tinha mais tempo o Carlos [Guimarães Pinto] em Lisboa, por vicissitude de ser também o presidente do partido. E o presidente de um partido, infelizmente, tem de estar muito mais tempo em Lisboa do que em qualquer outro local do país, é uma realidade incontornável, para já. Não fazia sentido nenhum alguém que não tinha uma ligação directa ao círculo de Lisboa, só porque no momento era presidente do partido, ser o cabeça-de-lista. Aliás, tivemos a felicidade de encontrar um cabeça-de-lista excelente, e que é agora o presidente do partido. Mas os resultados também mostram que a IL tem um posicionamento e uma mensagem que encontra eco em todo o país.
Nas últimas eleições presidenciais, em 2016, apresentaram-se dez candidatos. Marcelo venceu com pouco mais de 2,4 milhões de votos, 52%, mas mais de metade dos eleitores não votou.
Como diz, muito pouca gente foi votar naquelas eleições, e com um aparente leque de escolhas vastíssimo. Mas não era um leque de escolhas vastíssimo, na verdade eram opções que eram repetições delas mesmas. Penso que nestas eleições as pessoas vão ter uma grande oportunidade de ter realmente opções muito distintas, mais do que na altura.
Acredita, por isso, que a participação será maior nestas eleições?
Diria que sim, à partida, não fosse um fator: o contexto da pandemia. Isto assusta as pessoas. Ainda está muito pouco claro, por exemplo, como vão decorrer as eleições nos Açores [Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores], há muita incerteza. Não sei que efeito terá o contexto da pandemia.
E não deveria haver já, também neste caso, um plano de contingência?
Sim, é evidente. Está a apontar, e eu concordo, a questão do voto online ou alguma solução de voto remoto, que já devia ter sido pensada há muito e que, neste contexto, se torna ainda mais urgente.
o que move Marcelo Rebelo de Sousa é um interesse pessoal claro de ser reeleito e de ser reeleito com muitos votos. O sonho é ser o mais votado de sempre
Isso ou um período mais longo ou... A questão é: sabe-se como vai ser, alguém apresentou propostas ou soluções?
Não. Não, porque também há aqui um problema, sendo jurista sei que ele existe: na Constituição está previsto que a eleição para as presidenciais tem de ser presencial. Está lá escrita esta palavra. Mas, atenção, a palavra pode ser interpretada de diferentes formas; o presencial pode ser de forma remota. A verdade é que ninguém pensou nisso. A Constituição é usada, mas de forma conveniente. Marcelo Rebelo de Sousa pouco tem usado os vetos constitucionais e, não quero estar a errar, mas os vetos constitucionais usados foram, basicamente, de serviço ao governo, que é o que Marcelo tem feito, fretes ao governo.
Porquê?
Manifestamente, o que move Marcelo Rebelo de Sousa é um interesse pessoal claro de ser reeleito e de ser reeleito com muitos votos. O sonho é ser o mais votado de sempre. Este é um interesse pessoal que, penso, Marcelo esconde mal. A estratégia para atingir isso durante estes anos tem sido a de ser submisso ao governo para poder garantir que não há por aí atrito ou obstáculos ao seu objetivo de reeleição. Dito isto, agora, de repente, notando que já tem essa garantia - que já lhe foi dada, Costa já lhe pagou o favor na Autoeuropa, está assumido e vai cumprir com certeza - Marcelo acordou e atirou dois vetos de rajada, um relativamente à questão do aumento de assinaturas para petições para a Assembleia da República e outro relativamente aos debates quinzenais no contexto da presidência europeia portuguesa. O ministro Pedro Nuno Santos, depois, terá de resolver o seu problema interno, mas o PS que manda no PS já decidiu quem é o seu candidato.
Qual o problema de Pedro Nuno Santos?
O ministro Pedro Nuno já disse que não votaria, mas acabará alinhado. Para já, o que vi foi um diretor de campanha de Marcelo anunciar a candidatura em plena Autoeuropa. Seja como for, Marcelo quis dar dar um sinal, porque, como disse, não quer ser só reeleito, quer ser o mais votado. E deu um sinalzinho de que, afinal, "eu presido", "não sou só um seguidista do governo", "estou a fazer coisas que um presidente devia fazer". Não o critico por estes dois vetos, critico por só o ter feito agora e por a sua motivação de fundo ser um objetivo pessoal concreto.
Sobre os poderes presidenciais: muitos defendem que o presidente tem pouco poderes. Concorda?
O regime português é semi-presidencialista. Se os poderes são poucos ou muitos, penso que é irrelevante, nesse aspecto há que ser pragmático e reconhecer: são os poderes estão na Constituição. Que são os que são, não adianta pensar que vão ser outros nem propalar que vou querer e vou fazer coisas diferentes, porque isso implica uma revisão constitucional.
Há muitos que a defendem. É o seu caso?
Penso que a Constituição merece revisão em muitos aspetos, mas não necessariamente no que respeita aos poderes presidenciais, esse seria um aspeto menor. A Constituição dá poderes formais, como o de veto, um poder com relativo impacto e relevância, até pelo sinal político que dá. Além disso o presidente tem, naturalmente, a chamada bomba atómica, que tem sido muito pouco usada. Sampaio foi o último presidente a ativar a bomba atómica, mas num contexto que me pareceu absurdo. Dito isso, é verdade que as crises governamentais têm sido tipicamente criadas pelos governos e pelo Parlamento, se houver uma crise governamental num futuro próximo, está nas mãos do primeiro-ministro. Ele já tem demonstrado taticismo eleitoralista, portanto, não estou a imaginar que haja.
um presidente da República tem de garantir o regular funcionamento das instituições e isso significa que não pode aceitar que haja contínuas ingerências de um órgão de soberania noutros órgãos ou entidades
Olhando em retrospetiva para o mandato presidencial, em algum momento devia ter sido usada a "bomba atómica"?
Num contexto em que se mantêm as condições de governabilidade e de funcionamento da Assembleia da República, não vejo razão para isso. Mas um presidente da República tem de garantir o regular funcionamento das instituições e isso significa que não pode aceitar que haja contínuas ingerências de um órgão de soberania noutros órgãos ou entidades. Há linhas vermelhas que não podem ser ultrapassadas.
Houve momentos que a posição do presidente da República em relação ao governo devia ter sido mais dura? Quais?
Marcelo foi submisso ao governo de Costa, por isso há muitos exemplos. Houve momentos em que o presidente da República simplesmente não atuou e devia ter atuado, como no caso de Tancos, e momentos em que apareceu mas não foi consequente, caso dos incêndios de Pedrógão, ou momentos em que devia ter tido uma palavra mais dura, como no caso da nomeação de Centeno para governador do Banco de Portugal. Tipicamente, Marcelo serviu como veículo de transmissão das narrativas do governo e como desculpabilizador dos seus falhanços.
Tipicamente, Marcelo serviu como veículo de transmissão das narrativas do governo e como desculpabilizador dos seus falhanços
Em Portugal, tipicamente, quando há um governo de esquerda há um presente de direita e quando há um governo de direita o presidente é de esquerda. O presidente deve ser um contrapoder ou isso acaba por dar mau resultado?
Marcelo, objetivamente, tem sido o presidente do PS. Se o PS é um partido de direita... Percebo que ele seja assim descrito - e é tipicamente como o português comum concebe os partidos no espectro político português. Mas é um eixo que, em muito aspetos, falha no que são as reais questões. Por exemplo: estatismo versus liberalismo. Vai encontrar estadistas à esquerda e à direita, nomeadamente nos extremos. Conservadorismo: o PCP é um dos partidos mais conservadores do espectro político português, com posições relativas à homosexualidade, por exemplo, que podem deixar os cabelos em pé a muita gente.
Como acontece com alguma direita.
Exatamente. Como vê, esse espectro esquerda-direita não funciona aí. Mas não há nenhum outro partido liberal em Portugal, não existe. Há liberais que, não havendo a Iniciativa Liberal, foram encontrando os seus caminhos em outros partidos, tipicamente associados a partidos da direita, dentro do espectro existente, que era muito limitado. Era no PSD ou no CDS que se encontravam os liberais em Portugal. Mas, como estavam em partidos do sistema, pouco podiam fazer. Aliás, tipicamente, o liberal era sempre o lado perdedor, as políticas e ideias liberais raramente tiveram hipótese de singrar nesses partidos: o lado mais estatizante, mais conservador, mais aparelhístico vencia sempre.
Tornar-se um "partido do sistema" não é uma inevitabilidade do crescimento?
Não tem de ser uma inevitabilidade, se a IL se mantiver fiel ao seu código genético. A IL é na sua origem um movimento de cidadãos anónimos, sem grande envolvimento político prévio, não é uma criação à volta de uma figura mediática. Na sua conceção e estrutura adoptou formas livres e decididas nas bases para se organizar, tem regras claras de limites de mandatos. A IL é efetivamente, e assim se manterá, um partido de ideias. Para ser um partido do sistema não basta aparecer no boletim de voto, tem de ter homens do sistema, tem de ter aparelhos, percursos e carreiras políticas envolvidas nas juventudes... Se olhar em volta já vê partidos novos e relativamente pequenos com todas as estruturas e tiques desses partidos grandes.
Pode dar exemplos?
Todos os que chegaram ao Parlamento que não a Iniciativa Liberal.
O PS é o grande partido do sistema, estamos a assistir a uma mexicanização do país: há um grande partido que vai fazendo as suas manobras taticistas, arranja apoio ali e apoio acolá
Alguns partidos chegaram à Assembleia da República e ao Parlamento Europeu, mas acabaram do lado de fora. Aconteceu agora com o Livre e com o PAN, mas já houve outras situações no passado. Como olha para esta realidade?
O sistema eleitoral em Portugal é claramente um problema. Os mandatos de deputados, Assembleia da República e Parlamento Europeu, são concebidos como mandatos individuais, de exercício livre. Não critico essa visão, acho que é positiva. O problema está em como lá se chega, e temos um sistema eleitoral que, no fundo, não permite aos cidadãos escolherem deputados.
E é também o que permite manter este domínio, o oligopólio dos grandes partidos. Efetivamente, o sistema eleitoral para as legislativas, porque é disso que estamos a falar, é algo que mantém e perpetua o oligopólio dos partidos do sistema. E sempre à volta do grande centrão, que, na verdade, de há uns tempos para cá acaba por ser o PS. O PS é o grande partido do sistema, estamos a assistir a uma mexicanização do país: há um grande partido que vai fazendo as suas manobras taticistas, arranja apoio ali e apoio acolá.
António Costa é uma espécie de Speedy González?
Não, Costa não precisa de correr muito, porque vão ter com ele, sempre. Ele sabe que não precisa de correr muito. Até o presidente vai ter com ele e se propõe ajudá-lo, faz de ministro da Propaganda, faz tudo.
Como se propõe exercer o mandato de presidente não caindo no extremo oposto, que é o de fazer oposição a tudo o que o governo propõe?
Desde logo, a questão das narrativas é importante. Se me for dada essa oportunidade pelos portugueses, como presidente terei isso bem claro: ao governo cabe governar, à Assembleia da República compete legislar e escrutinar o governo, ao presidente da República compete garantir que todos estão a fazer o seu trabalho sem interferências. A questão é que este governo faz muito mais do que isso, atualmente: intervém na capacidade de escrutínio da Assembleia da República, intervém directamente nas entidades de supervisão e de regulação, que têm de ser independentes, tem cada vez mais a mão em franjas importantes da economia - o governo tenta controlar os media. Há capacidade de ação do presidente nestas matérias.
Em tudo isto Marcelo Rebelo de Sousa teve um papel. Qual?
Marcelo está no bolso de Costa e, como eu disse, contribuiu durante o seu mandato para as narrativas e desculpabilização do governo, pelo que, evidentemente, foi um fator essencial para esse resultado. E Costa já lhe pagou esse favor, como também afirmei no início. Voltemos ao caso Tancos: Marcelo é comandante supremo das Forças Armadas, mas desaparece completamente, é incompreensível. Marcelo, o grande apurador, quer sempre apurar tudo, as grandes responsabilidades, diz que lê todos os relatórios, mas o efeito prático disso é nulo. Há ali o aspeto criminal da coisa, mas existe uma hierarquia militar e uma responsabilização que tem de ser feita nesse contexto. Aí ele não apareceu. O governo não lhe pediria contas, porque tem já esse acordo tácito de que uma mão lava a outra. O Parlamento também é um dos grandes problemas - e esse é um dos eixos da minha candidatura - não há separação e equilíbrio de poderes. Tem de haver um governo que governe, claramente, mas um Parlamento que escrutine, entidades reguladoras e de supervisão que regulem e que supervisionem, tem de haver uma justiça que interprete e aplique a lei atempadamente, sem discriminar, sem se esquecer. No caso de Pedrógão, o presidente foi logo muito afoito a comparecer e aparecer, e não critico a atitude, é presidente da República e sentiu a necessidade de estar ali, até para dar visibilidade ao problema. Mas o que se viu foi Marcelo muito afoito a andar por ali a abraçar pessoas, a abraçar um homem, que tinha acabado de ver a sua casa destruída pelo fogo, dentro da sua carrinha. Só que foi-se embora e o que ficou são fotos de telemóvel e terra queimada. Aquele homem morreu sem ter a sua vida resolvida. Marcelo devia ser um presidente da República, mas não é.
Marcelo tenta ser o que sempre que quis ser: o centro das atenções, das admirações e dos "afetos". É como uma estatueta posta sobre um napperon na mesa no meio da sala, e tão útil quanto ela
O que é, então, Marcelo?
Marcelo tenta ser o que sempre que quis ser: o centro das atenções, das admirações e dos "afetos". É como uma estatueta posta sobre um napperon na mesa no meio da sala, e tão útil quanto ela. O que Marcelo não é, é alguém que efetivamente cumpre a função presidencial; essa é uma missão de espírito de serviço, de independência e de coragem, e tudo isso faltou a Marcelo. As palavras de Marcelo já estão gastas, são sempre as mesmas. É um mantra. E o que se tem visto, com o conluio e com apoio do presidente da República, é uma total governamentalização de todos estes aspetos, quer de controlo dos órgãos de soberania, do limitar a capacidade de escrutínio da Assembleia da República - o fim dos debates quinzenais, algo negociado pelo PS e pelo PSb [Tiago Mayan refere-se assim ao PSD], é um caso patente disso. Outros exemplos disso se vêem nas comissões e em tudo o mais, a forma como os relatórios mais inconvenientes são limpos das suas inconveniências e, falando das entidades reguladoras e fiscalizadoras, o Banco de Portugal é o caso mais flagrante.
Um parêntesis para saber a sua opinião, porque é advogado, sobre a contratação de grandes escritórios de advogados pelo governo e instituições estatais, quando existem nos ministérios e nessas instituições gabinetes de juristas?
O Estado tem um exército de juristas. Em termos genéricos, parece estranho, de facto. Mas não é apenas nos serviços de advocacia, é em todo um conjunto de serviços. Mas sim, esse é um exemplo, e parece surpreendente porque é que há a necessidade de recorrer a serviços externos quando o Estado tem um exército de juristas ao seu dispor. Falando de casos em concreto, isso pode, por algum motivo de especial complexidade, justificar-se e até ser mais eficiente e adequado. Mas há aqui um problema: se calhar, então, devia-se ir buscar essa ajuda em formatos mais transparentes, porque, tipicamente, isto são ajustes directos. Mas, lá está, o código dos contratos públicos permite ultrapassar essas limitações monetárias por via dos argumentos subjetivos e discricionários da especial complexidade.
Por falar em exceções, a pandemia, agora, serve para tudo?
A pandemia serve para tudo e mais alguma coisa. E já estamos a ver sinais muito alarmantes. Não sei se já chegaram os 500 ventiladores contratados em março, eis um exemplo.
E onde estão, em tudo isto, os órgãos de fiscalização?
O problema é transversal: as pessoas que são indicadas para todos estes órgãos são tendencialmente quem o governo quer, mesmo que seja o presidente a nomear, é quem o governo quer. E o governo escolhe gente que lhe parece que vai ser mais simpática. Além desse fator, e não querendo dizer com isto que as pessoas estão a violar princípios de independência e imparcialidade, podem estar afetados na sua idoneidade.
Centeno, se é realmente independente, e acredito que seja, vai ter de, em inúmeras ocasiões, declarar-se incompetente e declarar conflito de interesses em muitas decisões
Voltamos ao Banco de Portugal?
Centeno, se é realmente independente, e acredito que seja, vai ter de, em inúmeras ocasiões, declarar-se incompetente e declarar conflito de interesses em muitas decisões que teria de tomar como governador do Banco de Portugal. O problema da idoneidade não é dos valores morais da pessoa, é se, em termos objetivos, ela vai estar capacitada para exercer a sua atividade sem grandes constrangimentos. Portanto, das duas uma: um ministro das Finanças que entra direto para governador do Banco de Portugal vai ter de enfrentar uma de duas más escolhas: ou toma as decisões e vai estar permanentemente confrontado com conflitos de interesses, ou declara conflito de interesses e não toma decisões e, por isso, está coarctado na sua acção. Ele e, por arrasto, a instituição que lidera. Esse é o grande problema deste tipo de nomeações e das portas giratórias, e que foi levantado, nomeadamente, pela Iniciativa Liberal. Estamos com um sistema bancário de pantanas, é preciso um governador Banco de Portugal totalmente capacitado para agir. Mas não o vamos ter, porque está a decidir sobre uma matéria que ele próprio decidiu há uns meses ou porque está a decidir sobre assuntos que o seu secretário de Estado, uma pessoa com quem trabalhou diretamente, agora decide. É, de facto, incomportável e incompreensível que esta seja a estratégia e opção para o governador do Banco de Portugal ou de qualquer outro organismo e titular de órgãos de regulação e de fiscalização.
O PS é o atual dono do sistema. Isso permite-lhe ser o principal decisor e influenciador de aspetos essenciais da vida de muitos portugueses
Apesar de todas as crises de que falou e doutras, incêndios de Pedrógão e posteriores, caso Tancos, greves, o PS ganhou as eleições. Como explica isso?
O PS é o atual dono do sistema. Isso permite-lhe ser o principal decisor e influenciador de aspetos essenciais da vida de muitos portugueses. Esse fator, aliado ao amansamento dos outros partidos do sistema e à consequente sensação de falta de alternativas, poderá explicar isso. A IL é já alternativa a isto, mas com menos de três anos de existência, há ainda um processo em curso para se estabelecer com mais força.
Há pouco falava nos eixos da sua candidatura. Quais são?
É o cidadão que é soberano, não são os órgãos de soberania. Quem manda não é o presidente, não é o Parlamento, não é nenhuma destas entidades. E isto tem efeito práticos: um presidente não pode compactuar com uma visão de um país, dois sistemas, com uma visão de que há regras para os cidadãos comuns e exceções para os titulares dos órgãos de soberania e para as suas clientelas. Pensemos nas festas que pode e não pode haver, por exemplo.
se estão a ser cumpridas regras ditadas pelas autoridades competentes, não me parece mal que haja uma festa. Mas então, todos os cidadãos têm direito à sua reunião com a DGS para estabelecer os termos das suas festas
Está a falar na festa do Avante.
Sim. Por mim, se estão a ser cumpridas regras ditadas pelas autoridades competentes, não me parece mal que haja uma festa. Mas então, todos os cidadãos têm direito à sua reunião com a DGS para estabelecer os termos das suas festas ou das suas atividades culturais ou das suas atividades sociais. Mas a verdade é que não têm direito a essa reunião com a DGS. Mas há vários outros exemplos práticos: um Estado que obriga um reformado a limpar a pequena leira com silvas e que o persegue e o multa se ele não limpar, tem ao lado um pinhal abandonado que não é limpo. Ou um Estado que não paga a tempo aos seus fornecedores, é o mesmo Estado que multa esse fornecedor por se ter atrasado um dia na entrega da declaração de IVA ou de IRC. Um presidente liberal não vai permitir que isto aconteça, da mesma maneira que terá como visão o tal equilíbrio e separação de poderes, garantir que cada macaco está no seu galho: o governo tem de governar, mas tem de governar, não tem de andar a meter a mão e a pata na Assembleia da República, no Banco de Portugal, nas autoridades de regulação e no Banco de Fomento. Vamos ver o vai fazer, como vai ser gerido e quem será nomeado, porque o Banco de Fomento vai ter um papel essencial na canalização do maná vindo da Europa. A formalização de três entidades significa, na prática, que se vão manter na mesma três estruturas. E pronto, nomeiam um conselho de administração que dê para preencher os lugares para todos.
Como é que um presidente da República pode evitar isso tudo?
O presidente da República tem, em alguns desses órgãos e até na Procuradoria-Geral da República, poder de nomeação. Noutros não tem, mas tem, pelo menos, o poder da palavra, que pode ser determinante. Aliás, sobre o poder da palavra, o governo e António Costa reconhecem muito esse poder da palavra, porque constantemente pedem ao presidente que execute a sua narrativa. Marcelo é o núncio das narrativas do governo PS. Foi-o no caso do milagre português e em muitas outras narrativas, como nos incêndios... Portanto, o governo e António Costa reconhecem o poder da palavra do presidente. E usam-na a sua favor. O presente da República tem sido um instrumento. A palavra é também um traço de personalidade do presidente e, nesse aspeto, não é uma crítica direta que lhe possa fazer. O presidente da República tem talvez o seu maior percurso profissional como comentador, também já está mais velho e os velhos hábitos são difíceis de quebrar.
Dizia-se que Cavaco era o presidente dos consensos, como depois se disse que Marcelo Rebelo de Sousa era o presidente dos afetos. Que caraterística deve ter o próximo presidente?
Acima de tudo precisávamos de um presidente independente. Independente de todas as teias de interesse, independente do governo. Um presidente que garanta o tal equilíbrio de poderes, como está escrito na Constituição. E o que essas palavras querem dizer, é garantir que um órgão de soberania, que é tipicamente o governo, não está a meter a mão onde não deve.
Queria insistir nos principais eixos da sua candidatura, na sua visão para Portugal. Mencione três problemas que afectam o país?
Complexidade e carga fiscal, morosidade na justiça e centralismo.
Como seria possível resolver cada um deles, começando pela parte fiscal?
Resolver-se-ia por via de uma profunda reforma de todo o conjunto de impostos e taxas, eliminando alguns e simplificando outros. E baixando as taxas percentuais. Seria essencial, também, assegurar uma estabilidade fiscal, para fomentar o investimento. Tudo isto na linha das propostas já apresentadas pela IL.
Justiça.
Há um claro desinvestimento na área da Justiça, mas além disso há uma péssima alocação de recursos. As soluções passariam por haver uma racionalização desses recursos e o investimento-chave no que pudesse trazer mais eficiência (como as plataformas informáticas), fomentar o uso dos meios alternativos de resolução de litígios, fazer algumas reformas cirúrgicas na legislação processual para assegurar mais celeridade aos processos.
A concentração excessiva de poderes num pequeno grupo de pessoas no Terreiro do Paço é um dos grandes problemas do país, já que é potenciador de muitos mais problemas, como a grande corrupção, a ineficiência, a incapacidade de resposta ou o despesismo
Centralismo.
A concentração excessiva de poderes num pequeno grupo de pessoas no Terreiro do Paço é um dos grandes problemas do país, já que é potenciador de muitos mais problemas, como a grande corrupção, a ineficiência, a incapacidade de resposta ou o despesismo. A discussão sobre descentralização em Portugal tem de ser focada no assunto que nunca foi abordado pelos partidos do sistema: definir quais são os poderes do Estado central (e respectivos recursos) dos quais o Estado central vai ter de abdicar. Definindo-se isso, poderemos começar a resolver o problema.
Além dos já mencionados, quais são para si os grandes desafios que Portugal enfrenta, sobretudo a partir e 2021?
O maior desafio é um desafio de paradigma: vamos querer ser um país que confia mais nos cidadãos, nas empresas e nas instituições, deixando-os atuar e fazer as suas escolhas livremente, ou vamos continuar a achar que os nossos problemas se resolvem com os desafios, propostas e visões escritos num plano a dez anos, definido e controlado centralmente pelo Estado?
Uma críticas feita à IL é que são liberais até as coisa darem para o torto, como acontece agora com a pandemia, altura em que pedem a intervenção do Estado. É contraditório?
Em primeiro ligar, ser liberal não é ser anarca nem é ser libertário. O liberal reconhece sempre o papel do Estado, e até um papel forte do Estado em aspetos concretos de funções de soberania, que não deve caber a mais ninguém a não ser ao Estado exercer. E há também funções de regulação importantes e que cabe ao Estado, entendido em sentido amplo, desenvolver. Mas a verdade é que a pandemia também demonstrou que as visões liberais teriam muito sentido. Na questão da saúde, o que vemos é que no Serviço Nacional de Saúde foi tudo preparado para responder ao Covid-19, e tem vindo a responder, mas tudo o resto - consultas, cirurgias, tratamentos - foi adiado e cancelado. Existe um SNS no papel, existe o acesso universal aos cuidados de saúde, mas não existe na prática, não tem existido nestes últimos meses para a maioria dos cidadãos. E, se calhar, uma visão liberal de acesso universal aos cuidados de saúde teria dado muito melhor resposta neste contexto. E só por motivos ideológicos é que isto não é feito, e isso mata pessoas todos os dias. Não se fazer essa opção, de envolver os privados, usar os privados e criar um sistema que possa incluir os privados para prestar cuidados de saúde à população, é um erro.
Quais devem ser as prioridades de Portugal em matéria de relações internacional, qual a estratégia em termos de diplomacia externa?
O que acredito desde logo é que não podemos ser hipócritas, essa é uma linha de acção, e isso significa que não podemos num dia criticar derivas autoritárias, como no caso da Hungria e do senhor Viktor Orbán, e, quando chega a altura de tentar arranjar aliados para o maná da União Europeia esquecer isso tudo. Ainda sobe as verbas comunitárias, o que se ouve falar da boca dos ministros, da boca do primeiro-ministro e da boca do presidente da República é que "temos de ver como vamos gastar" esse dinheiro, "temos de gastar bem". Gastar, esta é a única palavra que se ouve. Porque é que não se fala em devolver? Em arranjar mecanismos que permitam que parte desse dinheiro, uma parte importante, seja devolvida aos cidadãos - sob a forma de desagravamento fiscal, de facilitar as pessoas restabelecerem a sua vida abrindo atividade, de descomplicar teias burocráticas para fazer alguma coisa em Portugal, de garantir que um recém licenciado não é obrigado a fazer a sua carreira lá fora?
Marcelo afirmou, quando se candidatou, que queria "descrispar" o país. Numa palavra, o que quer para os portugueses?
Quero libertar os portugueses.
Um presidente da República é um homem só?
Um presidente da República deve buscar todos os contributos para o seu processo de decisão, mas no momento em que esta tem de ser tomada, deve estar sozinho, ou seja, deve estar livre de sombras, teias, arames, espadas e paredes que possam mover ou influir na sua decisão. Sozinho, mas não só.
Quem foi a primeira pessoa a quem contou que iria ser candidato à Presidência da República?
Aos meus pais.
Todos os meus amigos acham que eu sou o mais "presidenciável" entre eles
Como reagiu a sua família e amigos chegados ao anúncio, o que lhe disseram?
Ficaram surpreendidos, mas positivamente. Todos os meus amigos acham que eu sou o mais "presidenciável" entre eles.
Se fossemos apostar, quem seria o vencedor das próximas eleições presidenciais?
Isso não lhe sei dizer. O que vai acontecer de novo nestas eleições, algo que não havia antes e que, para já, também não está refletido em sondagem nenhuma, é a existência de um candidato liberal à Presidência da República. Sou assumidamente liberal. Além disso, também sou alguém totalmente descomprometido, de fora do sistema. Aliás, dos que se anunciam ou dos protocandidatos ou possíveis candidatos sou o único de fora do sistema. Isso também é diferenciador, porque permite uma acção de independência e de coragem de acção. Os portugueses nunca antes tiveram a oportunidade de ter uma alternativa liberal como candidato à Presidência da República. Eu, e a Iniciativa Liberal também percebe isso, pensamos que há aqui um grande espaço político, não só de liberais, mas também de pessoas que não se autoqualificam como liberais, mas que não são de um espaço socialista e não se revêm neste presidente nem em populismos de qualquer espécie e espectro. Esse espaço político estava órfão, precisava de uma alternativa.
Em que partido ou em quem votava antes da Iniciativa Liberal?
Votava onde via que podia haver esperança de um caminho liberal.
Alguma vez votou PS?
Não, nunca votei PS... [revê mentalmente os votos] Estou a pensar... Não, nada, nada. Estava a percorrer mentalmente todos os atos eleitorais, e fui a todos. Por acaso, acho que falhei um, um referendo, por não estar em Portugal. Mas não, nunca, nunca votei PS.
Votou Marcelo?
Na altura não tinha nenhum candidato liberal e, como lhe disse, sempre tomei opções.
Arrependeu-se?
Marcelo, claramente, não cumpriu o seu mandato enquanto presidente da República. O eu estar aqui a apresentar a minha candidatura é uma demonstração disso mesmo. Mas há cinco anos não havia uma opção liberal.
Marcelo disse desde sempre que anunciaria se voltaria ou não a candidatar-se até setembro. Teria algum motivo para não se recandidatar?
As falhas na resposta aos incêndios, mesmo depois da tragédia em Pedrógão. Foi ele próprio que o afirmou. Mesmo sem contar com isso, quem abdicou de exercer o seu mandato deveria abdicar de se recandidatar.
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