É conhecido como o advogado dos oceanos. Um cognome que lhe assenta, ou não trabalhasse há mais de 30 anos na conservação do oceano. Participou em inúmeras reuniões internacionais relacionados com o mar e, em 2022, na qualidade de presidente executivo da Fundação Oceano Azul, esteve envolvido na organização da Conferência dos Oceanos, em Lisboa. Ainda assim, quando há pouco mais de um mês, foi assinado o Tratado sobre o Alto Mar, em Nova Iorque, Tiago Pitta e Cunha não esteve presente naquela que foi, provavelmente, a decisão mais importante da comunidade internacional no que respeita ao oceano no século XXI. A explicação é simples: não acreditou que fosse acontecer.
"Devo dizer, contra mim próprio que não acreditei que se realizasse", confessa em entrevista ao SAPO24. Isto apesar de, após a Conferência dos Oceanos, ter tido sinais de avanços num acordo que demorou quase 20 anos a acontecer. "Logo em agosto de 2022, várias pessoas que respeito muito e que estão intimamente ligadas a este processo negocial, disseram “vamos acabar na próxima sessão” e eu não acreditei nelas".
Não foi apenas uma espécie de superstição que não o deixou acreditar que o Tratado sobre o Alto Mar poderia ser assinado na ronda negocial marcada para Nova Iorque, no início de março. Foi sobretudo fadiga e um certo exaspero por ver o tempo a passar sem que decisões vitais para a conservação do oceano sejam tomadas. "Saí das Nações Unidas em 2002 e já se discutia a necessidade de um tratado como este para levar à conservação dos recursos biológicos do alto-mar", recorda. "Foi dos tratados que levou mais tempo a negociar nas Nações Unidas, levou mais tempo a negociar do que a Convenção do Direito do Mar, que foi de 1972 a 1982".
Agora que o acordo aconteceu, tem como objetivo colocar todos os esforços da Fundação Oceano Azul, nomeadamente no papel que hoje desempenha em vários foruns internacionais, para que seja o tratado mais rápido, nas Nações Unidas, a ser ratificado. "A Fundação Oceano Azul vai trabalhar dia e noite nesse sentido", garante.
Mas isso não pára o relógio e não diminui a preocupação com que olha para a agenda internacional e, em particular, para Portugal.
"Somos um país destituído de capital industrial, de capital comercial, de capital financeiro, mas somos um país ainda muito rico em capital natural, principalmente de origem marinha", afirma. Mas alguma coisa tem de mudar: "se continuarmos como estamos agora, vamos chegar a 2050, quando o capital natural for uma componente essencial da riqueza das nações, sem capital natural".
Porque é tão importante ter acontecido este tratado ao fim de mais de 15 anos de negociações?
Eu saí das Nações Unidas em 2002 e já se discutia a necessidade de um tratado como este para levar à conservação dos recursos biológicos do alto-mar. Na altura, a União Europeia estava completamente sozinha. Como costumo dizer, este tratado é a prova do algodão da vontade política internacional de procurar soluções para o problema dos oceanos.
E não são apenas os oceanos, é também a atmosfera. Os dois grandes fluidos que envolvem o planeta estão sob uma grande crise que, no caso dos oceanos, tem uma enorme diversidade de causas. E o que é certo é que se olharmos para as decisões tomadas pela comunidade internacional neste século, não chegamos a encontrar soluções para o problema dos oceanos. Os problemas dos oceanos continuam a agravar-se, porque ainda não conseguimos chegar ao estado da mitigação.
No clima não estamos a conseguir cumprir com o acordo de Paris, é certo, mas já estamos com mecanismos e instituições que nos levam a encarreirar nessa direção, pelo menos. Nos oceanos, isso não é verdade.
O que me desapontava mais era que este tratado continuava bloqueado ano após ano, sem conseguir fechar-se. Por isso é que é a prova do algodão: se nós não conseguimos, a comunidade internacional, estados-membro das Nações Unidas, aprovar um tratado como este que diz respeito ao alto-mar e que, praticamente, não tem nenhum impacto na economia de, praticamente, nenhum estado costeiro do planeta, então o que é que nós vamos conseguir fazer pelo mar?
Esse é o ponto em que ficamos intrigados. Se o alto-mar é um território que não pertence à zona exclusiva de nenhum país, o que é que impedia o entendimento?
Quando disse que nenhum estado costeiro se prejudica com o Tratado do Alto-mar, tenho de referir que, apesar de tudo, a criação de ferramentas de gestão de base territorial, que é algo que está previsto no tratado, incluindo obviamente áreas marinhas protegidas, pode levar a que os grandes países da pesca industrial, que pescam no alto-mar possam ver a liberdade de pesca das suas frotas limitada. Mas estamos a falar de cinco ou seis países, porque, no fundo, o alto mar é praticamente inexplorado. O alto-mar é cruzado pelos transportes marítimos e é pescado por meia dúzia de nações. Algumas delas são muito importantes, como a China, por exemplo, e criaram algumas dificuldades.
Um dos grandes problemas geopolíticos do mundo em que vivemos é a tensão entre o Norte Global e o Sul Global. Porque uma boa parte deste tratado é sobre a distribuição dos benefícios que a diversidade biológica do alto-mar deve trazer às nações e à Humanidade no seu todo, e não apenas a quem tem a tecnologia, os meios navais e o poder económico para os explorar.
Isso foi um dos pontos abordados na conferência que decorreu, em simultâneo, no Panamá, quando o tratado estava na reta final para ser assinado. Apesar de serem favoráveis ao tratado, alguns países disseram que tinham receio que os excluísse, ou pudesse vir a excluir no futuro, do acesso aos benefícios.
Isso é dos grandes pontos de muitas coligações de Estados em vias de desenvolvimento, que vão desde os Estados menos desenvolvidos aos Estados-ilhas, aos Estados costeiros de África. Da mesma maneira que a questão das compensações financeiras já está completamente a dominar a implementação do Acordo de Paris, como vimos na COP27, em Sharm El Sheikh, no ano passado, a tendência é de isto se alargar a todos os xadrezes multilaterais.
Cabe também aos países do norte industrializado compreender isso e, aqui entre nós, “to put the money where the mouth is”. Ou seja, se o Norte quiser ter áreas marinhas protegidas no alto mar também tem de assegurar que irá contribuir para o mecanismo financeiro que o Tratado prevê e irá abster-se de fazer grande operações de recolha de recursos biológicos no alto mar que não sejam em respeito pelo tratado e em partilha com os outros estados através do mecanismo da câmara de compensação [The Clearing House Mechanism]. Se quer explorar tem de pagar uma parte para ser usada em capacitação para outros estados, tem de partilhar as amostras.
Agora que foi negociado vai ter de ser o Tratado mais rápido, nas Nações Unidas, a ser ratificado
Quais as expectativas mais imediatas que tem em relação ao Tratado sobre o Alto Mar?
A minha preocupação imediata é a ratificação deste tratado. Foi dos tratados que levou mais tempo a negociar nas Nações Unidas, levou mais tempo a negociar do que a Convenção do Direito do Mar, que foi de 1972 a 1982 e teve outros problemas. Agora que foi negociado vai ter de ser o Tratado mais rápido, nas Nações Unidas, a ser ratificado. A Fundação Oceano Azul vai trabalhar dia e noite nesse sentido.
O que é que a Fundação vai fazer em relação a isso?
Temos todo um trabalho que tem vindo a crescer na área da Agenda Internacional do Oceano. Trabalhamos muito proximamente com a ONU, com vários secretariados das Nações Unidas, como trabalhamos com a Comissão Europeia, com organizações como a Conferência-Quadro para o Combate às Alterações Climáticas. Através dessas organizações inter-governamentais, vamos procurar que haja resposta, mas também o vamos fazer bilateralmente, porque trabalhamos com vários governos.
No que diz respeito à componente da ratificação, o processo vai ter de ir a cada parlamento, seguir o caminho normal.
Sim e nós vamos seguir esse processo. Temos vindo, aliás, a trabalhar com vários governos e mais concretamente com o governo francês de uma forma bastante próxima, uma vez que França e a Costa Rica vão organizar a próxima conferência dos oceanos das Nações Unidas e onde a Fundação Oceano Azul vai estar, em 2025.
Uma das coisas que estamos a pedir - e que achamos que a França pode vir a fazer - é procurar mobilizar 60 estados-membro das Nações Unidas, o número necessário para a adoção deste Tratado, para que sejam a vanguarda da ratificação do tratado.
E poder anunciar nessa altura que há uma maioria para a ratificação?
Eu sou muito mais ambicioso: não apenas anunciar isso, mas organizar a primeira conferência das partes, a primeira COP durante a Conferência de 2025. Isso é que seria absolutamente brilhante!
A Convenção do Direito do Mar é a “Constituição do Mar”
Mas a Convenção do Direito do Mar demorou 10 anos, e foi pioneira neste tipo de acordos…
E foram muito mais partes. Eu acho que a Convenção do Direito do Mar é a convenção mais sofisticada, é a “Constituição do Mar”.
Se pensar nas tensões em todas as agendas que existem para o mar, consegue ler o tratado com olhos completamente diferentes. Há uma coisa que para mim é completamente sintomática: no preâmbulo deste tratado, quando se fala nas causas que levam à degradação do oceano, não se fala nas pescas, não estão lá. Porque seguramente, as nações pesqueiras conseguiram evitar que as pescas possam ser apontadas como uma das causas dos problemas dos oceanos.
Já falámos outras vezes sobre isto e sei que tem uma opinião firme sobre a pesca: não se consegue resolver este problema sem integrar a fileira pesqueira. É impossível para países que dependem economicamente da pesca, terem de um dia para o outro, a sua realidade alterada – essa alteração tem de ser feita com eles e não contra eles.
Sim, claro. Até porque as Nações Unidas não iam aprovar. Em sede das Nações Unidas não se consegue trabalhar contra uma fação.
E uma fação que ainda é extensa. Temos um conjunto de países, uns porque têm mais poder e outros porque ficariam no limiar ainda mais vincado de pobreza.
Mas não relativamente ao alto mar. Dos países em vias de desenvolvimento, nenhum deles tem frotas pesqueiras em alto mar. São países industriais de pesca, digamos assim.
Portugal não tem nada a perder com um tratado como este e tem tudo a ganhar com um tratado como este
Para um país costeiro como Portugal, o que é que muda com um tratado como este?
Inspira-nos! Não nos vai mudar, mas vai-nos inspirar. Portugal não tem nada a perder com um tratado como este e tem tudo a ganhar com um tratado como este.
Desde logo porque Portugal não tem sido um país muito bem sucedido nos últimos 20 anos, num capítulo fundamental da agenda ambiental que é a conservação da natureza. Até fizemos progressos, nos últimos 40 anos, nas questões de água potável – distribuição, acesso, saneamento básico. Temos feito também progressos nas questões de desenvolvimento de uma estratégia de ação climática para o país. Mas a conservação da natureza continua no fim da linha e por isso vemos uma série de Parques Naturais, seja em terra ou seja no mar, que estão ao abandono – porque não têm planos de gestão atualizados, não têm monitorização, não temos “boots on the ground”, não temos capacidade. Não há recursos por parte dos organismos da administração central do Estado para fazer o enforcement das regras nesses parque. E no mar tem sido ainda mais assim – Portugal tem cerca de 71 áreas marinhas protegidas, algumas muito pequeninas, mas não sei se se contam pelos dedos de uma mão as que têm planos de gestão verdadeiramente rigorosos e implementáveis.
Agora que a comunidade internacional, com o concurso de países que gostam de ser líderes da Agenda Internacional do Oceano, como Portugal, vai poder criar áreas marinhas protegidas no alto mar, isso vai obrigar-nos a ter de meter uma mudança abaixo e começar a trabalhar na conservação da natureza marinha com outra vontade e outra capacidade.
Como vê essa mudança no contexto de um país que nestes anos todos não se tornou um país mais marítimo. Temos imensa costa, temos uma história ligada ao mar, mas não somos um país ligado ao mar. É uma ideia que criámos e em que gostamos de pensar, mas não estamos no mar como estão os holandeses ou noruegueses.
Não, é um mito. Costumo dizer que estamos ligados ao mar pela barriga porque somos, de facto, um dos maiores consumidores de pescado do mundo, portanto através do peixe estamos ligados ao mar.
Mas isto que está a falar é outra coisa, é uma ligação com o mar diferente.
O que estou a falar é outra coisa. A criação de áreas protegidas marinhas no alto mar vai tornar essas áreas protegidas marinhas mais visíveis, mais valiosas, mais valorizadas e isso, se calhar, vai acelerar o processo de um país que assumiu uma obrigação internacional de chegar a 2030 com 30% do seu mar em área marinha protegida e que está muito longe de chegar a esses valores.
Isso implica uma capacidade política de fazer as coisas acontecerem e em tudo, não é só no mar, depende também da pressão de quem vota. Se nós, como sociedade não temos essa urgência, o que é preciso fazer para chegar lá?
Não temos essa cultura. Da mesma maneira que os governos, nos últimos 20 anos, não tiveram agendas suficientemente fortes na área da conservação da natureza, também nós, na sociedade civil, não temos uma grande preocupação com estes problemas. Com quaisquer problemas de origem ambiental – não me esqueço da fraquíssima reação que a sociedade portuguesa teve àqueles últimos grandes acidentes de poluição no rio Tejo. Há dois ou três anos em Idanha-a-Velha. Foi uma coisa extraordinária, entre a atrocidade das imagens e a impassividade da sociedade civil, nas cidades – isso mostrou bem que temos o que merecemos, o país que merecemos e o ambiente que merecemos.
E no mar ainda é mais assim. As pessoas dizem “longe da vista, longe do coração” e apesar de gostarmos muito de comer o peixe, não temos nenhuma ligação emocional muito forte ao mar. A não ser através da literatura, talvez nas ilhas e zonas mais costeiras, mas mesmo assim não é a mesma ligação de comunidades como a bretã, por exemplo, muito ligada ao mar atlântico francês, ou na Holanda, ou nos países nórdicos. Eles vivem de uma forma completamente diferente a sua ligação ao mar.
A mais inovadora ameaça que pode vir a acontecer é a mineração submarina que é regulada pela Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos
Voltando ao Tratado. A forma como se estava a olhar para a pesquisa no alto mar e se têm feito algumas coisas em regime “faroeste”, aproveitando o território de ninguém, vai poder continuar a ser assim ou terá de ser de outra forma?
Um dos princípios do tratado é o do Património Comum da Humanidade. Já não ouvia nada com esta expressão há décadas– caiu completamente em desuso. Até recuperar esse princípio, em conjunto com o princípio da precaução, quanto a mim, dá uma garantia de que o multilateralismo internacional, vai tornar mais difícil todos esses excessos industriais.
Curiosamente, a mais inovadora ameaça que pode vir a acontecer em nada depende do Tratado sobre o Alto Mar, porque é a mineração dos fundos marinhos que é regulada pela Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos. Essa sim, é a minha grande preocupação, uma das grandes preocupações da Fundação Oceano Azul.
O que pode acontecer?
A Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos foi concebida para que os Estados/governos do planeta, costeiros ou não costeiros, pudessem explorar os minerais dos fundos marinhos, porque, nos anos 70, estava muito na moda pensar-se que os nódulos polimetálicos, que tinham sido descobertos com a nova tecnologia subaquática da altura, iriam ser muito importantes porque eram ricos em muitas ligas metálicas. E, como tal, iriam ser muito importantes para as grandes economias industriais. Como estávamos num processo de industrialização acelerada, a convenção das Nações Unidas viu nos famigerados nódulos polimetálicos, no seu tratamento e na sua governação, uma parte tão importante que levou a que se criasse toda uma parte da convenção das Nações Unidas para a consagração da Autoridade dos Fundos Marinhos que é uma Organização das Nações. São áreas fora da jurisdição dos estados nacionais. Um Estado costeiro como Portugal pode decidir se quer fazer exploração mineira na sua área marítima, se quer conceder a exploração a uma empresa privada, tem esse poder de decisão, mas nos fundos marinhos abaixo do alto mar, zona que é denominada de "Área", tem de ser a Autoridade dos Fundos Marinhos a decidir.
O que aconteceu foi que até hoje, de facto, e continua a ser assim, não existiu nenhuma pressão de mercado, uma pressão económica para explorar esses minerais, nem existiu até agora a tecnologia que permitisse extrair esses minerais e muito menos existe um conhecimento científico do fundo do mar e da coluna de água para compreender os impactos ambientais da exploração destes minerais. Portanto, por estas três razões tal nunca aconteceu.
O que está a acontecer agora é que há a possibilidade de um pequeno Estado-ilha, Nauru, conseguir uma concessão na área, no mar internacional, nos fundos marinhos internacionais, para inaugurar a era da exploração mineira em alto mar e quanto a isso este Tratado sobre o Alto Mar nada regula.
Ou seja, este tratado visa suprir uma lacuna na Convenção do Direito do Mar que não é sobre os recursos minerais, é sobre os recursos biológicos, na altura ninguém se preocupou com os recursos biológicos. Mas na altura também não havia ainda, minimamente, a perceção de que as pescas eram um problema, o peixe era de quem o apanhasse e haveria peixe para todos e para sempre. Por outro lado, nem sequer havia a consciência da importância dos recursos genéticos biológicos, porque a biotecnologia não era uma realidade, ainda.
Continuamos a ter uma consciência muito diferente da propriedade da terra e da propriedade do mar.
Sim, é uma coisa que é péssima. Continuamos a olhar para a natureza como se fosse um res nullius (a coisa de ninguém), como os romanos. Res, que quer dizer coisa e nullius, de ninguém, é de quem a apanhar; é o faroeste que estava a referir.
O que acontece é que nós herdamos culturalmente, digamos assim, os quadros mentais do Império Romano, mesmo no Direito – o direito português é completamente o direito romano, adaptado. E não é só o direito português, é também o chamado direito civil europeu. Como tal, a natureza continua a não ter sequer uma distinção. Por exemplo, no Código Civil português não existe uma definição para natureza, é uma coisa como um copo ou um sapato – artigo 202 do Código Civil.
Não temos essa cultura de respeito e de admiração pela natureza que leve a valorá-la juridicamente, também.
E o mar ainda mais, porque está mais longe.
E o mar ainda mais. Está mais longe, é domínio público marítimo, nem sequer é suscetível de apropriação privada, como a terra, não é propriedade privada, tudo isto tem uma repercussão muito maior no mar.
Este Tratado, de alguma maneira, pode impedir que num futuro, longínquo ou não, se possa reverter a ideia de que não se compra o mar?
Li um artigo do Guardian que diz exatamente isso. Uma das coisas é que é fundamental que o tratado não venha a ser, perversamente, a abertura da porta para a concessão privada de zonas do alto mar, ou para a exploração privada.
Hoje em dia só se diz “Oceano” porque só há um oceano, é a filosofia – mares há muitos, Oceano só há um.
Mas acha que isso é possível?
Já vi muita coisa e acho exatamente o contrário: que a grande preocupação de muitas nações é a conservação do oceano. Uma coisa que é curiosa: o objeto do tratado diz exatamente que o Tratado serve para conservar os recursos biológicos do alto mar e para o seu uso sustentável. Mas a hierarquia, a ordem das duas prioridades mantem a conservação à frente do sustentável e, portanto, estou confiante que o Tratado vai ser um contributo muito importante para que o sistema multilateral internacional desperte para a necessidade de tomar decisões que têm vindo a ser proteladas, diria há 40 anos.
Comecei a trabalhar por causa da Convenção do Direito do Mar nos anos 90 e, nessa altura, compreendi que havia uma enorme fadiga da comunidade internacional, do sistema das Nações Unidas com os temas do mar, por causa da dificuldade que a Convenção do Direito do Mar teve. Porque curiosamente, não sei se sabe,apesar de a Convenção ter sido adotada, teve de ser finalizada contra a posição dos EUA e de outros países que eram altamente críticos da Autoridade Internacional para os Fundos Marinhos.
Por causa disso foram necessários mais uns 10 ou 12 anos de negociações para se chegar a um acordo, só em relação a essa parte, e só aconteceu nos anos 90. Desde os anos 50 que se queria chegar a um acordo sobre a governação do oceano.
Houve uma fadiga tão grande que durante décadas nada se decidiu sobre os oceanos. Antes deste Tratado, a única decisão com algum significado sobre os oceanos foi o SCG 14 – Objetivo Desenvolvimento Sustentável 14, que prevê que os oceanos sejam um dos grandes objetivos de desenvolvimento sustentável, pelas Nações Unidas. E mesmo esse foi o último a ser acordado, havia uma enorme dúvida, até as Organizações de Conservação da Natureza tinham dúvidas se deveria haver ou não um objetivo só para os oceanos.
Hoje em dia só se diz “Oceano” porque só há um oceano, é a filosofia – mares há muitos, Oceano só há um.
Há mais uma coisa que gostava que ficasse dita: o mundo mergulhou num impasse geopolítico ainda maior com a guerra na Ucrânia. E o curioso é olhar para o último ano, desde a guerra na Ucrânia e ver que as duas grandes vitórias, do multilateralismo internacional têm a ver com o Oceano: a aprovação, pela Assembleia Geral do Ambiente da ONU, do MEA - Multilateral Environmental Agreement, em Nairobi, para se negociar um tratado para os plásticos - foi importantíssimo e conseguiu-se 2 meses depois da guerra começar -; e agora o Tratado sobre o Alto Mar .
Portanto, digo assim, folgo que o mar esteja ligado a duas grandes conquistas do multilateralismo numa altura em que os progressos nesse mundo são muito reduzidos.
Desde a guerra na Ucrânia e ver que as duas grandes vitórias, do multilateralismo internacional têm a ver com o Oceano
Esteve nesta conferência em que se assinou o tratado?
Não, não estava nesta. Devo dizer, contra mim próprio que não acreditei que se realizasse
Está a ficar supersticioso, como naqueles jogos de futebol… Como é o ambiente habitual numa conferência destas que demora tanto tempo a chegar ao seu objetivo?
São as mais difíceis, mesmo. Uma conferência das Nações Unidas é diferente, é uma conferência que visa estimular a discussão, como aquela que houve em Portugal. A conferência das Nações Unidas de Lisboa foi extraordinária, porque correspondeu ao record mundial de participação da sociedade civil numa conferência sobre o oceano.
Multiplicámos muitas vezes o que foi a participação da sociedade civil numa conferência das Nações Unidas desde 2017 em Nova Iorque, quer em número de ONGs, quer em número de fundações, quer em número de empresas, de associações cívicas e de cidadãos. Isso é muito importante, mas não têm a mesma intenção, não têm o nível de negociação, não estamos a legislar.
Reuniões como esta do Tratado sobre o Alto Mar, normalmente são mais fechadas, mais concentradas nos técnicos que estão a fazer a legislação e que vêm exclusivamente dos Estados-membro das Nações Unidas. Têm muitas sessões e negociações que dificilmente são abertas à sociedade civil. A sociedade civil acompanha, mas uma sociedade civil mais especializada. Aliás, a High Seas Alliance (HSA) foi criada apenas para estimular este tratado e fez um trabalho absolutamente extraordinário.
Se me perguntar como é uma reunião destas, dir-lhe-ia que, em última análise, sei que houve uma maratona de negociações de 38 horas seguidas, portanto as pessoas deviam estar muito, muito exaustas. Muitos foram vencidos pelo cansaço e digo-lhe mais: conheço muitos países, que são grandes potências, que não admitem aprovar tratados que não estejam traduzidos para a sua língua oficial, pois desta vez o documento oficial foi o documento de negociação, que está só em inglês. Isto foi muito significativo, houve uma grande pressão.
Consegue encontrar uma relação causa/efeito no facto deste tratado ter acontecido menos de um ano depois da conferência de Lisboa?
Sim, acho que sim. Há dois portugueses ligados a isto, que acompanharam toda a maratona, e que acho que devem ser nomeados: o Miguel de Serpa Soares, o under-secretary general for legal affairs e ele foi uma pessoa chave. A criação de tratados internacionais recai sobre o escritório de Legal Affairs, os Assuntos Jurídicos, de que ele é o subsecretário geral. A outra pessoa é o diplomata Sérgio Carvalho da missão de Portugal nas Nações Unidas, que é o responsável pelas questões dos oceanos e que tem vindo a negociar, desde há anos, em nome de Portugal, este tratado. Sei que esteve também no epicentro do acordo.
Várias pessoas que respeito muito e que estavam intimamente ligadas a este processo negocial disseram “vamos acabar da próxima vez” e eu não acreditei nelas
Estavam também cá quando foi a conferência?
Estavam cá quando foi a conferência e o que aconteceu foi que se aproveitou para criar pressão sobre este processo. A conferência foi em junho e logo em agosto, para manter essa pressão, houve uma sessão negocial que acabou por não fechar mas que fez imensos progressos. Logo em agosto, várias pessoas que respeito muito e que estavam intimamente ligadas a este processo negocial, disseram “vamos acabar da próxima vez. Na próxima sessão vamos acabar” e eu não acreditei nelas.
O Pacto Ecológico Europeu, o chamado Green Deal, para mim, é o novo Tratado de Maastricht
O que muda para a Fundação no trabalho que estão a fazer?
Vai mudar a nossa ambição. Temos uma ambição cada vez maior, porque cada vez é mais necessário aumentar a nossa ação sobre o oceano. Para mim, a União Europeia foi redefinida pelo Pacto Ecológico Europeu que foi aprovado em 2020, no meio da pandemia, e as pessoas não se aperceberam. O Pacto Ecológico Europeu, o chamado Green Deal, para mim, é o novo Tratado de Maastricht porque cria a obrigatoriedade de seguirmos na direção da transição para uma economia verde e põe todos os recursos da União, quer organizativos, quer humanos, quer financeiros ao serviço dessa causa. O Pacto Ecológico é o nosso documento de implementação do Acordo de Paris. Só temos um plano, a Humanidade só tem um plano e esse plano chama-se Paris, mas não está a ser cumprido.
Mas o Pacto Ecológico quase não toca no mar, porque os decisores europeus não estão ainda “nem aí”, continuam a achar que o mar é um rodapé, como tem sido um rodapé nas cimeiras da biodiversidade, nas cimeiras do clima. É isso que tem de mudar, é isso que verdadeiramente tem de mudar e que não tenho a certeza que Lisboa tenha mudado.
Estivemos à altura do que nos foi pedido para a Conferência dos Oceanos – organizámos 51 eventos, muitos deles a nível de chefes de Estado e de governo, numa semana. Foi verdadeiramente ciclópico. Criámos o Rise Up for the Ocean, uma coligação que neste momento tem quase 600 organizações, porque nos foi pedido que a nossa principal responsabilidade fosse mobilizar a sociedade civil.
Mas o que queremos agora é o seguinte: esta mobilização da sociedade civil vem da Conferência das Nações Unidas de 2017. Foi nesta conferência que se lançou este repto “Vamos todos salvar os oceanos em conjunto. A sociedade civil tem de salvar os oceanos, vamos todos assumir compromissos”. E toda a gente assumiu compromissos, tanto que há milhares de compromissos registados, nas Nações Unidas. Em Portugal, hoje em dia há mais de 200 movimentos de cidadãos ligados à defesa e conservação dos oceanos – isso é extraordinário.
Mas, na minha opinião, isto também significa que os Estados-membros das Nações Unidas podem dizer às suas sociedades civis “assumam vocês a responsabilidade, fiquem vocês com a fatura” – e o que eles (os Estados) fizeram foi muito pouco ou quase nada. E é isto que para mim, muda neste momento. Se a UNOC (United Nations Ocean Conference) de Lisboa foi sobre a sociedade civil, nós, a Fundação Oceano Azul, gostávamos verdadeiramente que a UNOC de Nice, daqui a dois anos, venha a ser a call to action dos Estados-membros e não a call to action da Rise Up e dos movimentos da sociedade civil.
E como se faz essa travessia?
A Fundação tem de conseguir consciencializar esses governos a assumir as suas responsabilidades e também, começar a trabalhar com outros governos, numa lógica de bola de neve ou de cascata, para levar a que haja um número bastante amplo de Estados-membros das Nações Unidas, a querem tomar as decisões que não foram tomadas até agora. Estamos a falar na área da poluição, nas pescas e subsídios à pesca, na construção das áreas marinhas protegidas até 2030, na criação de zonas de mar territorial à pesca artesanal, para proteger mais os pequenos pescadores, as comunidades costeiras e nas comunidades indígenas, em continuar ou mesmo a alargar a moratória de mineração nas áreas submarinas.
Tudo isto são temas que gostávamos de ver acontecer em 2025. Se acontecer, então temos um roadmap para ser implementado até 2030. Com isto o que estamos a conseguir é gerar ação oceânica, para não haver só ação climática e então reduzir o fosso que existe, hoje em dia, na Europa e no mundo, entre ação oceânica e ação climática. Esta é a ambição da Fundação Oceano Azul para os próximos dois anos.
Nessa dinâmica que é o resto do mundo versus a União Europeia, também a dinâmica norte-sul, não acha que é pouco provável que a Europa esteja em condições de ser esse tal agente de mudança?
A União Europeia sozinha não poderá ser o agente de mudança mas também não é o resto do mundo contra a UE, há muitas matizes, há uma geometria variável muito grande. Mas é verdade que existe essa tensão norte-sul.
A natureza está exausta, o planeta está exaurido – nós comemos o planeta.
Mas é justa, na sua opinião?
Até certo ponto acho que é justo. Se eu fosse um país do sul-global, exigiria mais do norte, principalmente em termos de conforto e contrapartidas financeiras. É verdade que o norte beneficiou. Mas vamos ter de compreender que acabou, ao contrário do que algumas potências em vias de desenvolvimento entendem, a natureza está exausta, o planeta está exaurido – nós comemos o planeta.
Estamos a chegar à conclusão, com os desastres ambientais que estamos a gerar, como a extinção de espécies e a crise climática e a própria crise dos oceanos, que enough is enough. Já não há mais. Isto vai-nos obrigar a arrepiar caminho, espero que nos vá obrigar a descarbonizar e por isso acho que este século vai ser realmente o século da descarbonização, se prevalecer-mos porque se não o for, nós não iremos cá estar no século XXIII, seguramente.
A natureza está a tornar-se tão escassa, tão exígua que, pela própria teoria da procura e da oferta da nossa economia ortodoxa, vai-se tornar um valor. Ou seja, este capital natural vai gerar uma economia natural a qual, por sua vez, vai ser um valor que leve a que a sua conservação seja um investimento e isso vai alterar profundamente as regras do jogo. Vai alterar o paradigma de tal maneira que muitos Estados em vias de desenvolvimento e que são ricos em natureza, poderão, se calhar, vir a ter um papel diferente no futuro, e dar às suas novas gerações, perspetivas mais positivas.
Não temos uma agenda forte para a conservação da natureza, quer em termos de sociedade civil quer em termos de governos, mas também temos os incentivos todos errados
Onde fica Portugal nesse contexto?
Estamos a meio caminho. Somos um país destituído de capital industrial, de capital comercial, de capital financeiro, mas somos um país ainda muito rico em capital natural, principalmente em capital natural de origem marinha. Portanto interessa a Portugal que haja uma convergência de esforços para que o capital natural seja, ele próprio, monetizável, segurável, e se torne cada vez mais parte da riqueza da nação. O que me preocupa é que nós, que fomos um país rico nesse capital natural até aos anos 80 do século passado, não temos feito outra coisa que não delapidar esse capital desde essa altura.
E por duas razões: uma é exclusiva da nossa responsabilidade, o nosso desenvolvimento económico tem sido feito sem maturidade e sem preservar o capital natural do país. A começar, por exemplo, na ocupação de zonas absolutamente vitais para o desenvolvimento do capital natural, como a orla costeira algarvia, com todo desordenamento. Há pouco tempo li numa reportagem que mais de 11.000 camas que estavam “embargadas” há 20 anos parece que agora poderão avançar. Ou seja, vamos destruir o resto do capital natural que irá tornar o Algarve uma região menos visitável daqui a 15 ou 20 anos. Vamos tornar-nos num dormitório de cimento e que, seguramente vai ter zero sucesso no futuro, porque cada vez mais os próprios turistas procuram o capital natural e querem visitar sítios onde haja floresta e pássaros nas árvores, mar limpo e peixes no mar.
Não temos uma agenda forte para a conservação da natureza, quer em termos de sociedade civil quer em termos de governos, mas também temos os incentivos todos errados – os IMIs, os IMTs levam os presidentes de muitos municípios a continuarem a construir como se não houvesse amanhã e isso é gravíssimo, profundamente errado e profundamente injusto para as próximas gerações. Estamos s criar um país que não tem futuro.
A outra responsabilidade são as alterações climáticas. Se olharmos para o aquecimento global, vemos que começa em força nos anos 80. E o que aconteceu no nosso país foi que tivemos os incêndios que destruíram a maior parte do nosso capital natural verde, em Portugal, e com isso delapidámos a biodiversidade, os grandes bioreservatórios do país, como a serra de Monchique que era a grande barreira contra a desertificação do sul do país, o que alterou os próprios padrões das chuvas.
Com tudo isto continuamos a cavar o buraco em que nos estamos a meter.
A Gulbenkian, no século XX, teve um papel muito importante no acesso à cultura. A Fundação Oceano Azul está numa espécie de momento Gulbenkian no que respeita ao ambiente?
Fico lisonjeado por comparar a Fundação Oceano Azul, que é uma startup, com a Gulbenkian que tem uma marca muito forte no país. Mas acho que chumbava na prova de modéstia se dissesse que sim, nós somos a Gulbenkian do século XXI. Pode fazer essa pergunta a muitas pessoas, menos a nós. Nem podemos ter essa ambição. Na verdade, acho lamentável um país que tinha a Gulbenkian como uma espécie de Ministério da Cultura informal. Isso diz tudo sobre o país e eu gostava que o meu país fosse outro. Gostaria que, de uma vez por todas, o nosso país fosse um país multipolar, que houvesse muitas elites a trabalhar em muitas áreas. Adorava era que conseguíssemos ter mais Fundações pelo país a ligar à conservação da natureza e a tentar preservar o capital natural. É trágico se chegarmos a 2050 sem capital natural. Se continuarmos como estamos agora, escute as minhas palavras, vamos chegar a 2050, quando o capital natural for uma componente essencial da riqueza das nações, sem capital natural.
E como é que coloca as pessoas que votam a fazer essa pressão?
A Fundação tem investido imenso na coordenação de movimentos de cidadãos. Temos um programa que se chama Save the Future, não pode ser mais apropriado, e que é dedicado aos movimentos de cidadãos em Portugal, tem a Academia Nacional da Limpeza Costeira, o Oceano Limpo.
A Fundação tem de criar outras capacitações na sociedade portuguesa para que haja muito mais consciência dos decisores políticos, económicos e dos cidadãos para que depois tomem as decisões por eles próprios e não porque existe uma Fundação, como existia uma Gulbenkian no século XX.
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