A descida é da Avenida da Liberdade, mas quem por Lisboa anda parece que todas as ruas são de festa e para descer. Os cravos, os cartazes, as faixas e as músicas de Abril tomaram a cidade. Ainda no Marquês o SAPO24 cruzou-se com a Bastidores da Arte, uma associação cultural do Seixal, que tem o objetivo de promover teatro e música "sempre com os valores de Abril". Dizem que nos 50 anos falta fazer “tudo” pela cultura. “Ou nós lutamos pelas nossas mãos e com as nossas próprias ferramentas, ou se estamos à espera que nos apoiem ficamos sempre para trás. Mário Barradas diz que o Seixal, contudo, é um oásis nesta realidade. “Temos uma Câmara Municipal e Juntas de Freguesia que nos apoiam, dão subsídios, promovem a nossa atuação. Abrem-nos as portas. As coletividades funcionam mesmo como um coletivo.” “Como era antigamente”, conclui. “Fora do Seixal as coisas não funcionam assim.”
Mais à frente, uma faixa branca com "Não ao ódio" escrito em letras garrafais. André Costa Lobo conta como ficou preocupado com o resultado das últimas eleições e isso levou-o a agir. “Somos um grupo de cidadãos apartidário de várias zonas do país que se uniu para defender abril e os direitos humanos”, explica ao SAPO24.”Juntamo-nos muito preocupados com o crescimento da extrema direita que se inclui no discurso de ódio, a nível nacional e internacional”. Como primeira ação descem a liberdade com uma faixa para explicar que o ódio não é solução. De futuro esperam “continuar a ser bons cidadãos e a defender os valores de abril”.
Quem costuma descer a Avenida por esta altura sabe que há um concurso silencioso do melhor cartaz. As pessoas riem, apontam, comentam e pedem para tirar fotografias, normalmente é o sinal de que se está no grupo dos vencedores. Este ano não faltaram, uns mais criativos que outros, mas sempre com uma mensagem forte. A meio da Avenida Bruno Costa tem um dos cartazes mais fotografados na marcha do 25 de abril.
Diz que, desde as eleições, as noites têm sido mais mal dormidas, tem medo que os direitos adquiridos nos últimos anos voltem para trás. No 25 de abril quer que sejam lembrados e que se lute por eles. E que, entretanto, se vão comendo fascistas ao pequeno almoço.
Numa cadeira de rodas a observar atenta a marcha está Maria do Carmo, tem 78 anos, e no 25 de abril saiu para a rua. Foi no Largo do Carmo que celebrou a liberdade “onde estava o Salgueiro Maia”. Hoje, de parcas palavras, diz que o que viu aos 28 anos deixou-a com uma sensação de “deslumbramento”. Continua a vir para a rua porque “ainda cá estou” e porque se continua a “emocionar”.
Aos 14 anos, Salomé Sardinha sai à rua para “lutar contra o fascismo e o racismo”. Diz que desde as eleições tem mais medo, mas não notou diferença no comportamento das pessoas em relação a si, jovem negra que segura um cartaz onde se lê "O racismo ainda não acabou, mas raças nunca existiram". Mas para que isso não aconteça vem, com as amigas, para a rua lembrar os valores de Abril.
As alusões às mulheres, aos seus direitos e liberdades foram vários. Algumas piadas com o livro, Liberdade e Família, que há pouco tempo foi lançado envolto em polémica e que remete a mulher para um papel secundário na sociedade. Teresa desce a avenida com a filha enquanto se ouve o grito de ordem “O lugar da mulher é onde ela quiser”, repetido até que a voz doa. Teresa acompanha a frase porque “acha imprescindível neste momento gritar isso. Toda a gente devia acreditar e partilhar esta ideia, mas aparentemente não e portanto temos que reafirmar isso.” Diz que a preocupa muito o futuro da filha “tenho medo que o que conquistámos seja perdido como o direito ao aborto e a continuidade da luta pela igualdade.” O SAPO24 questiona o que ensina à filha, a resposta é rápida: “Que o lugar da mulher é onde a ela quiser”.
Com a liberdade e as conquistas de abril contrastam os cartões agora vazios, mas onde à noite dorme gente. E, a chegar aos Restauradores, o hino nacional ecoa e no meio dos cartazes criativos um chama mais à atenção. É sincero e o de uma senhora que vive na rua e que apenas pede: “ajudem-me a viver. Obrigada”. Se em abril Sérgio Godinho cantava "paz, pão, habitação, saúde educação", 50 anos depois todos ali parecem saber que "só há liberdade a sério quando houver a paz, o pão, habitação, saúde, educação".
Se Abril é feito de liberdade de escolha a descida da avenida da liberdade é exemplo disso. Há palavras de ordem, conquistas e exigências para todos os gostos. E se no início da Avenida se ouviam gritos contra o capitalismo. No fim, é na cadeia multinacional Starbucks que os marchantes aguardam numa longa fila.
Margarida e Diogo, estudantes de Belas Artes, desceram a Avenida com dois cravos gigantes de cartão feitos por eles. Quando o SAPO24 fala com Margarida emociona-se, diz que tem medo principalmente por ser mulher e da área de artes. Admite que as mulheres não são a minoria mais prejudicada, e que aquilo que sofrem não tem sido do último ano. No momento em que comenta o facto de o Chega ter abandonando a assembleia durante a AR tem que controlar as lágrimas. Diz que “é uma falta de respeito” e, por isso, este ano mais que nunca é importante descer a liberdade.
Já a subir para o Largo do Carmo é impossível não reparar em duas raparigas vestidas de cravo. E é também impossível não tentar perceber porque ali estão assim vestidas. "A revolução que me ensinaram", é a peça que Joana Cotrim e Rita Morais estreiam amanhã no AMAS, no Cacem. Nos 50 anos do 25 de abril estavam a caminho do largo do Carmo vestidas de cravo. Trazer a peça à rua não foi por acaso, é que o tema confunde-se com o espírito do dia. “No espetáculo aparecem duas revoluções; uma revolução bebé e uma de 50 anos a refletirem sobre o tempo que passou”. Ao SAPO24 dizem que nunca pensaram que tivessem tanto sucesso assim vestidas como tiveram, “fomos muito acarinhadas”. Contudo, Rita quer apelar a um lado mais triste daquele que é considerado um dos dias mais felizes. “O espetáculo chama-se A revolução que me ensinaram porque reflete numa história real da família da Joana que de alguma maneira de debruça em momentos menos bons do 25 de abril, porque a família teve que emigrar para o Brasil. E ali tentamos escrutinar um bocadinho todas as histórias que existem. E, por isso, foi muito bonito descermos a avenida porque no final estamos todos a celebrar.”
E se Abril trouxe a capacidade de todos se manifestarem e darem a sua opinião, neste dia isso é lembrado não pelas melhores razões. No Terreiro do Paço há uma contra manifestação que já tem a polícia preparada a atuar. Gritam “viva Salazar, morte ao 25 de abril”. Entre os reptos da luta ouvem-se ainda acusações a Mário Soares a quem chamam de “pedófilo”. Acusação que alargam a “todos os que nos governam” que dizem serem “homossexuais” e que a ILGA que segundo os próprios “é uma organização terrorista” que promove esses valores. Na Avenida as pessoas com quem o SAPO24 se cruza estão indiferentes aos manifestantes, hoje cantam mais alto, de futuro saírão à rua as vezes que forem precisas. Afinal as ruas são de todos.
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