O assédio na academia em Portugal ganhou contornos de notícia com o escândalo Boaventura Sousa Santos, fundador do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, depois de 13 mulheres terem revelado comportamentos impróprios numa carta aberta.
"Toda a gente sabe, mas ninguém fala nisso", diz Francisco Valente Gonçalves, psicólogo clínico e diretor da Rumo, plataforma fundada em 2017 para dar consultas de saúde mental online, e um dos parceiros do projeto Paola, que criou um Observatório de Whistleblowing na Academia.
Hoje sabe-se que um em cada cinco estudantes universitários já teve algum tipo de contacto com comportamentos antiéticos. Um estudo, liderado por Francisco Valente Lopes, publicado na Brazilian Journal of Forensic Sciences, Medical Law and Bioethics, revela que entre os problemas mais frequentes estão o abuso de poder, o assédio e a discriminação, num contexto que muitas vezes desencoraja a denúncia por medo de represálias.
O artigo mostra ainda que, apesar das exigências da Diretiva Europeia de Whistleblowing, que obriga organizações com mais de 50 pessoas a disponibilizar mecanismos seguros de denúncias, menos de metade das instituições académicas analisadas têm canais eficazes e acessíveis para reportar irregularidades.
O relatório avança que 85% dos denunciantes sofreram de ansiedade grave, depressão e outros problemas e, destes, 48% atingiram níveis clínicos.
A academia enfrenta inúmeros problemas antiéticos, incluindo fraude e corrupção. Os números apontam para a utilização indevida de 293 milhões de euros em bolsas de investigação concedidas pela União Europeia. Ainda assim, as hierarquias rígidas da academia desencorajam os colaboradores de reportar casos de má conduta.
Os receios não são infundados. Na Universidade Murdoch, na Austrália, os denunciantes enfrentaram retaliações depois de terem relatado práticas pouco éticas, o que os obrigou e ficar sob proteção externa. Em Espanha, os relatos de má conduta levaram a severas represálias, incluindo ameaças de morte. Em Portugal, a Faculdade de Direito recebeu 50 queixas de assédio no prazo de 15 dias após a implementação de canais de denúncia.
Os investigadores de pós-graduação são particularmente vulneráveis e um em cada dois estudantes de doutoramento está em sofrimento psicológico. Afinal, o que fazer?
"[A academia] é um espaço de inovação, mas é também um espaço onde existe, cada vez mais, uma opressão das pessoas que não têm poder"
Em Portugal, depois de publicada a carta que acusa Boaventura Sousa Santos, uma quantidade de pessoas veio dizer que a situação era conhecida. E antiga. Por que motivo ninguém falou antes?
Não vou falar em relação a esse caso, que conheço apenas pela comunicação social, mas uma das razões que contribui para isso é a estrutura da academia. Temos a academia como um sítio onde se aprende, ensina, onde se faz perguntas, responde-se a algumas delas. É o espaço da inovação. Mas é também um espaço onde existe, cada vez mais, uma opressão das pessoas que não têm poder.
Quando digo poder, falo do poder de tomada de decisão, poder de autonomia das suas funções. Neste caso, estamos até a falar mais de alunos e alunas. E uma coisa são alunos de licenciatura ou de mestrado, que, salvo algumas exceções (fora de Portugal é diferente), têm aulas e têm de ser avaliados pelo seu desempenho através de testes, trabalhos, uma coisa muito standardizada. Outra coisa são os alunos de doutoramento.
"Os alunos de doutoramento, na verdade, deviam ser considerados trabalhadores, porque estão a fazer investigação"
Qual é, exatamente, a diferença?
Os alunos de doutoramento, que para a família e para os amigos continuam a ser alunos, porque continuam a estudar, na verdade deviam ser considerados trabalhadores, porque estão a fazer investigação. Essa investigação vai, eventualmente, culminar num novo grau académico, que é o doutoramento, mas esses alunos são trabalhadores, têm um contrato de trabalho ou uma bolsa, caso em que, quase sempre, têm menos benefícios e menos proteção.
Portanto, há aqui uma série de coisas que, infelizmente, acontecem com alguns destes investigadores, estes trabalhadores que fazem investigação científica, e que, por vezes, veem a sua autonomia completamente limitada. Por supervisores, pelas instâncias da academia, porque a autoria principal do trabalho que está a ser feito não é do aluno ou do investigador, é do professor.
Por isso é que vemos professores publicarem num ano 50 artigos. E é aí que nos perguntamos: mas como é que isto é possível? Cinquenta artigos enquanto primeiro autor. Só quem está fora do meio, fora do contexto académico, é que não consegue perceber a irrazoabilidade disto.
Mas há outras coisas, como ter uma bolsa de doutoramento e essa bolsa não poder ser utilizada para ir a uma conferência, onde o aluno/investigador poderia fazer networking e aumentar as suas perspetivas de trabalho no futuro, comparar materiais para a sua investigação.
Muitas vezes, quem vai ter o usufruto desse valor, desse financiamento, é o supervisor. Que, basicamente, sobe na carreira porque conseguiu trazer para a universidade determinado valor, ou utiliza esse financiamento para fazer coisas que são do seu trabalho, o que lhe vai dar maior reputação, abrir portas em termos hierárquicos ou para outras perspetivas. Isto para não falar em casos que, do ponto de vista social, são muito complicados.
"Num grupo de dez doutorandos, os europeus são sempre convidados para fazer apresentações, os asiáticos são sempre empurrados para fazer trabalho de sapa e os africanos são convidados para aparecer nas fotografias"
Como por exemplo?
Os casos de discriminação. Por exemplo, temos um grupo de investigação com dez doutorandos, em que dois são sul-americanos, um é asiático, três são africanos e os outros são europeus. Os europeus são sempre convidados para fazer apresentações, os asiáticos são sempre convidados/empurrados para fazer trabalho de sapa e os africanos ficam a um canto e são convidados para aparecer nas fotografias, quase como tokens.
Por isso foram estabelecidas quotas, de género e não só, para tantas atividades. Concorda?
Uma parte de mim demorou muito a conseguir perceber o valor das quotas - por exemplo, as quotas de género em empresas ou na função pública. Isto, porque venho de um lugar que é ser homem, caucasiano, de classe média e hetero, ou seja, preencho todas as boxes daquilo que é definido como lugar de privilégio, com os meus enviesamentos cognitivos à mistura.
Agora consigo perceber a importância das quotas. Todos temos crenças, algumas erradas, na minha opinião, e se servem para colocar aquela pessoa a fazer só aquele trabalho, isso é um problema gravíssimo.
É muito estranho quando temos um cenário como o que descrevi, em que determinada característica, física ou social, determina as condições ou possibilidades de uma pessoa. Ainda por cima se, depois, essa pessoa muda de uma instituição para outra e, de repente, ganha o prémio de melhor investigadora da Europa, por exemplo. Ou essa pessoa mudou muito, o que também é possível, ou andou sempre numa sombra, ofuscada pelo supervisor.
Um supervisor tem de ter competências de gestão, porque mais do que fazer investigação, ele tem de gerir equipas. E uma coisa é um asiático fazer estatística porque é mesmo bom naquilo e gosta e quer, outra coisa é um asiático ser obrigado a fazer estatística porque eu tenho crenças erradas. O professor tem de saber dizer "se calhar, não estás bem aqui, temos de arranjar outro sítio para ti". E isso, às vezes, é difícil, mesmo quando há boa vontade entre as partes.
"É muito estranho quando temos um cenário em que determinada característica, física ou social, determina as condições ou possibilidades de uma pessoa"
Vamos regressar ao ponto de partida. Falou em assédio, abuso de poder, discriminação. Quando e como tomou consciência desta realidade?
Fiz o doutoramento em Inglaterra, com uma bolsa da Marie Curie, que, diria, se não é a melhor, é das melhores bolsas do mundo para fazer doutoramento: paga um ordenado, paga tudo o que são impostos e tem um budget [orçamento] de investigação exorbitante, mesmo muito, muito elevado.
Além de mim, faziam parte deste grupo de investigação mais nove pessoas. Homens, mulheres, várias nacionalidades, diversas áreas de especialidade, psicologia, matemática, física, genética, etc. No mundo académico anglo-saxónico, nomeadamente em Inglaterra, as coisas estão muito bem divididas e a trajetória está muito bem definida: começa com uma ideia, a ideia cresce, a ideia tem de ser publicável, a ideia é publicada, a ideia é apresentada. Há um número de passos, que toda a gente conhece, e não dá para fugir muito daquilo.
A Universidade de Leicester deve ter à volta de cinco mil doutorandos, talvez mais. Não sei ao certo, mas é mesmo muita gente. Vou olhando à minha volta e começo a ouvir algumas histórias: o supervisor xis não deixa a aluna ípsilon ir a uma conferência...
Faço um parêntesis para estabelecer um ponto de comparação: uma coisa é uma bolsa da FCT [Fundação para a Ciência e a Tecnologia], que tem um ordenado de 1.100€ ou 1.200€ e um orçamento para investigação muito pequeno, em que é preciso ser muito estratégico para escolher as conferências a que se vai. Outra coisa é uma bolsa Marie Curie, como esta, em que a única decisão que é preciso tomar, se não há outra conferência a acontecer na mesma data, é quando vou e em que hotel vou ficar.
Para ser muito pragmático, é isto que acontece, porque, felizmente, é uma bolsa patrocinada pela Comissão Europeia, que acredita que os doutorandos têm de estar focados na investigação, não têm de estar preocupados com mais nada, nomeadamente a gestão financeira do dia a dia da investigação. Temos o nosso trabalho, os nossos projetos, queremos ir a uma conferência nos Estados Unidos, por exemplo, e isso não é um tema, vamos.
Por que motivo é que essa aluna não podia ir à conferência?
Como estava a contar, enquanto combinávamos quem ia, quando ia, uma aluna diz: "Eu não posso ir, a minha supervisora não deixa". Mas não deixa porquê? E começamos a aperceber-nos que, fora do nosso grupo de investigação, há outros casos com a mesma supervisora ou com pessoas do mesmo departamento. Espera lá, o departamento é muito bem visto na universidade, supostamente gera muita receita, porque é que isto é um problema?
E este é um ponto importante: as universidades, do ponto de vista social, não são vistas como empresas, da mesma maneira que os alunos não são vistos como clientes. Mas deviam. E cada vez mais, porque as universidades são organizações que têm de gerar receita, ou têm que gerar KPI [Key Performance Indicators, Indicadores-Chave de Desempenho], caso contrário são mal vistas, ficam sem alunos e fecham.
"O aluno de doutoramento não manda no seu orçamento de forma autónoma, tem de pedir o ámen ao supervisor, que decide"
Ou seja, começa a perceber que existe ali um padrão, no tal departamento?
Começamos a perceber que há ali um tema, um problema. Esse foi apenas o primeiro momento em que me deparei com um comportamento antiético, mas nem sequer foi dos casos mais bárbaros de discriminação ou assédio que ouvi alguém relatar.
No caso concreto, tratava-se de mau uso dos recursos ou, se quisermos, de manipulação de recurso financeiro que não é seu, porque o budget não é do supervisor, é do aluno. Mas há aqui aquilo que eu dizia no início, que é a autonomia de funções, o aluno de doutoramento não manda no seu orçamento de forma autónoma, tem de pedir o ámen ao supervisor, que decide.
Mas convém que o supervisor justifique a sua decisão.
Claro, quando diz não, o supervisor tem que justificar. Mas no caso específico desta colega não havia motivo, nem noutros casos que fomos observando. Começo a aperceber-me disto e, talvez porque venho da Psicologia, tenho, eventualmente, uma lente diferente para este tipo de situações.
Como qualquer aluno de doutoramento, começo a aumentar a minha rede de contactos, colegas daquela e de outras universidades. E começo a perceber que há outros casos, desde criar ou manipular dados para investigação - por exemplo, uma investigação tem 200 participantes, mas são precisos mais 100, inventa-se e é publicável -, a pessoas convidadas para escrever numa revista muito reputada sem que o artigo passe pela revisão dos pares, passando por uma pessoa de determinada etnia não ser convidada para estar com o reitor ou por um aluno - neste caso, infelizmente, mais alunas - ir ao gabinete do professor e ele propor continuar a discutir o assunto num jantar, com um copo de vinho.
"Mais de 80% das pessoas que passam por uma situação destas - abuso de poder, manipulação, serem obrigados a fazer coisas que não gostam, discriminação, assédio -, desistem do doutoramento"
Nunca lhe aconteceu nada do género?
Felizmente, sempre tive uma supervisora incrível, das pessoas mais brilhantes que já conheci, e que sabia jogar as regras do jogo muito bem. Por isso, quando ouvia estes casos, achava que era tudo louco, que alguns supervisores não batiam bem. Como assim, perguntar a uma aluna se não quer acabar de discutir o tema num jantar, com um copo de vinho à frente?! Isto é passar completamente os limites, não faz sentido.
Comecei a perceber que este era um tema, não era só da Universidade de Leicester, não era só de alguns casos que ouvia em Portugal, era global ou, pelo menos, europeu. Isto porque os bolseiros Marie Curie pertencem a uma associação, e todos os anos há uma conferência (vai ser agora em março, onde irei falar sobre saúde mental de académicos, se tudo correr bem).
Que impacto têm estes comportamentos antiéticos na vida dos investigadores?
Estes abusos vão ter um impacto muito grande na saúde mental de alguém que passe por esta experiência. Diria que mais de 80% das pessoas que passam por uma situação destas - abuso de poder, manipulação, serem obrigados a fazer coisas que não gostam, discriminação, assédio - desistem do doutoramento. Isto tem um impacto gigante na vida das pessoas. Basicamente, a carreira daquelas pessoas acaba naquele momento.
Continuar a engolir sapos também pode levar estes alunos a um estado de ansiedade, de exaustão, que acaba por resultar num burnout [esgotamento]. A pessoa termina o doutoramento e nunca mais quer ouvir falar em academia na vida.
Mas isto também tem um impacto em si, em mim, na sociedade em geral, porque muitos destes doutoramentos são bolsas pagas pelos impostos. No fundo, estamos a pagar a alguém para investigar um tema que, acreditamos, pode vir a mudar alguma coisa no mundo numa determinada área. Mas depois, perdoe-me a expressão, tem um Zé qualquer a estragar a vida daquela pessoa e, consequentemente, a estragar a nossa vida.
Na altura, já vínhamos a falar sobre bem-estar e saúde mental de académicos, doutorados ou doutorandos e staff, professores que dão aulas em qualquer nível, porque isto afecta tanto juniores como seniores, não há distinção.
No entanto, existe um código de ética, um código de conduta, ou não? E há uma diretiva europeia sobre canais de denúncia. Não se aplica às universidades?
A Diretiva Europeia de Whistleblowing, ou seja, de reporte de comportamentos antiéticos, foi publicada, mas as universidades fizeram um pouco ouvidos moucos, "isto não é connosco". Até que o legislador se chegou à frente e disse: malta, isto também é convosco, vocês são uma entidade com mais de 50 colaboradores, portanto, têm de aplicar a diretiva.
Algumas universidades começaram a ter canais de denúncia, mas, mais uma vez, se os bolseiros não tiverem um contrato de trabalho, não são considerados colaboradores. Então, como vão reportar comportamentos antiéticos? Normalmente, existem três vias principais: email, carta ou provedor do aluno. Nenhuma destas opções permite que exista uma comunicação estável ou permite que a comunicação possa ser anónima. E isto é um problema.
Então, pensou-se: temos de criar alguma coisa que seja um farol para que estas instituições académicas possam perceber como é que devem responder a este tipo de temas. E criámos o projeto Paola, que faz o levantamento e, no final, transforma-se num observatório de comportamentos antiéticos no contexto académico.
Não é um canal de reporte ou de denúncia, não temos jurisdição para isso e não haveria recursos para algo do género a nível europeu, pelo menos por enquanto - eventualmente um dia. Mas é um observatório, recolhemos informação das pessoas em contexto académico sobre observação ou experiência de comportamentos antiéticos e recolhemos informação sobre instituições académicas que têm ou não um bom sistema de reporte de irregularidades.
O projeto é financiado pela Agência Nacional Erasmus+, foi aprovado para começar em setembro de 2023. Houve alguns uns atrasos burocráticos - sempre a papelada -, começámos oficialmente em janeiro de 2024 e o projeto termina em março de 2025.
Já publicaram algum relatório, há conclusões?
Sim, publicámos um artigo científico sobre comportamentos antiéticos na academia e os dados do projeto estão numa base de ciência aberta, a Open Source. O projeto Paola é um consórcio de seis parceiros, cada um responsável por uma parte do trabalho.
No final deste mês vamos fechar um inquérito, mas a primeira revisão da recolha de dados já foi feita. Os resultados não são muito diferentes do paper publicado, que indica que uma em cada cinco pessoas já experienciou algum tipo de comportamento antiético na vida académica. Isto significa que eu, por exemplo, numa turma com 50 alunos, tenho dez que já experienciaram algum comportamento antiético.
"Há muito esta coisa de o professor estar uns patamares acima do aluno e muitos académicos perpetuam o estilo. Quando isso não devia acontecer, até porque se um está de um lado da sala e o outro do outro lado, já se sabe porque é".
Existe uma explicação para as vítimas ou os observadores não apresentarem queixa?
Há, eventualmente, razões diferentes. O tema de não interferir ou de não verbalizar que algo de errado está a acontecer é muito estudado, por exemplo, no bullying. No contexto académico, e talvez no contexto corporativo também, sobretudo em países pequenos como Portugal, em que toda a gente se conhece, há o receio de ferir susceptibilidades e o medo de sofrer represálias, de ser penalizado.
Depois, está tudo muito politizado. Isto é, se eu trabalho na universidade xis e o professor Boaventura Sousa Santos trabalha na universidade ípsilon mas, de repente, estamos os dois a candidatar-nos a um projecto de meio milhão de euros, é normal que se eu o denunciar e hierarquicamente ele tiver autonomia, influência, o passo seguinte seja eu saltar fora da candidatura.
Também pode acontecer que se crie uma incompatibilidade tal com alguém que tem influência sobre o meu trabalho que eu tenha medo de dizer alguma coisa. E, se disser, corro o risco de ser acusado de estar a denegrir o bom nome e a imagem daquela pessoa, além de criar um problema para o meu trabalho.
No caso de Boaventura Sousa Santos, lembro-me de ler alguns comentários infelizes - como disse antes, as pessoas têm o direito de ter os seus enviesamentos cognitivos, mas também têm o dever de se responsabilizar por analisar esses enviesamentos. No caso, alguém dizia que as acusações vinham sempre de alunas brasileiras. Porquê? Se calhar, porque há homens que perpetuam estes comportamentos há uma série de anos. Mas imaginemos até que era tudo sem maldade, sem intenção. Então, se é repetido, talvez fosse tempo de pensar, de alguém dizer, "se calhar este comportamento não é fixe", não pode continuar a acontecer. Não foi assim.
Trabalhei mais de três anos numa multinacional estilo americano, uma consultora. E numa empresa assim estes casos resolvem-se rapidamente. Quando há situações destas, os recursos humanos são ativados, falam com o chefe da equipa, o partner é chamado a dar a sua opinião e, no momento seguinte, se houver evidência de que aquilo aconteceu, está a ser redigido um acordo para sair. E pode ser a pessoa que traz mais dinheiro para a empresa, mas o dano reputacional é maior do que o financeiro.
Mas, como disse, as universidades não são tratadas como empresas. Em Portugal é difícil responsabilizar alguém?
Na academia, já sentia isso quando dei aulas em Inglaterra ou na experiência que tive no Brasil ou agora, em Portugal, é muito difícil um aluno confrontar o professor. Eu estou sempre a dizer aos meus alunos: confrontem. Se acharem que eu não estou correto, digam-me. Mas há muito esta coisa de o professor estar uns patamares acima do aluno e muitos académicos perpetuam o estilo. Quando isso não devia acontecer, até porque se um está de um lado da sala e o outro do outro lado, já se sabe porque é.
Mas a questão da responsabilização é importante. Acontece que, muitas vezes, quem toma alguma decisão não é a instituição em causa, é uma entidade externa, um tribunal. A forma como as coisas são feitas, não é quase sempre a forma correta. As instituições são obrigadas a ter canais de comunicação de denúncia e deviam, antes de mais, resolver as coisas por si.
E há prazos legais, imagino. Estas coisas têm um tempo útil...
Quando esse canal é utilizado, há um prazo de sete dias para reconhecer que a denúncia foi feita, ou seja, alguém tem de confirmar que a denúncia foi feita. Depois há um prazo de 90 dias para dar uma resposta - que pode ser que o caso foi arquivado, que está em investigação, que vai ser reportado publicamente ou a nível interno.
Se, passados estes 90 dias, a pessoa que reportou a denúncia não tiver uma resposta, então pode ir às autoridades. Se as autoridades não lhe derem uma resposta ou não derem seguimento à denúncia, então a pessoa pode recorrer aos meios de comunicação social. Já aconteceu em Espanha, nos Países Baixos ou nos Estados Unidos.
Mas os países anglo-saxónicos são onde há maior responsabilização. Eles não são muito simpáticos quando, no início de uma conferência, dizem: "Não estamos à espera de nenhuma emergência, se houver um alarme, é mesmo uma emergência e a saída é por ali". Não o fazem para ter graça, é mesmo para não serem acusados de não terem dito onde era a saída da emergência. É muito interessante ver esta atitude.
Parece-me que o que aconteceu em Portugal, neste caso em concreto e noutros semelhantes, foi que as pessoas tentaram falar com alguém, não conseguiram e então foram para as redes sociais ou para a comunicação social. A questão, aqui, é que os denunciantes podem estar a criar um problema grave para si próprios, se não seguiram o 'protocolo'. E podem estar a incorrer no crime de difamação. Ora, isto faz com que as pessoas se retraiam ainda mais.
"Estamos agora a preparar uma nova candidatura para fazer a extensão do projeto, desta vez dois anos, até 2027"
O projeto Paola, em termos de financiamento, termina já em março. O que acontecerá depois disso?
Estamos agora a preparar uma nova candidatura para fazer a extensão do projeto, desta vez dois anos, até 2027. E estamos também a trabalhar numa estratégia de sustentabilidade do projeto, que passa por, por exemplo, capitalizar a formação para instituições académicas.
Temos uma série de especialistas nestas áreas e podemos ir às universidades explicar como podem implementar e promover processos e procedimentos nesta matéria. Ao mesmo tempo, o observatório vai ser mantido pelos parceiros do projeto de forma autónoma. A ideia - esperemos que não seja daqui a muitos anos - é manter o observatório a funcionar até já não fazer sentido, até todas as organizações, ou a maioria das organizações, fazerem isto bem feito, implementarem boas práticas.
Mas posso dizer que há duas coisas que vamos fazer nos próximos anos - não digo para sempre, mas nos próximos anos. A primeira é um relatório anual, ou seja, replicar o estudo que fizemos para saber o ponto da situação dos comportamentos antiéticos no contexto académico, a segunda é implementar processos e procedimentos nesta área. E isto será sempre gratuito.
Boas práticas significa exatamente o quê?
Boas práticas significa que tenho a capacidade de providenciar à minha comunidade académica, alunos e staff, a possibilidade de suportar comportamentos antiéticos observados ou experienciados durante a jornada académica.
Estamos a falar de qualquer tipo de comportamento antiético, fraude, abuso de poder, discriminação, assédio, corrupção. Que também existe muito no meio académico aquela coisa de uma equipa de investigação ter duas bolsas de doutoramento, eu ter um aluno a sair de mestrado e meter a cunha. Para uma bolsa que é pública. Portanto, é preciso providenciar a possibilidade de reportar estes comportamentos antiéticos de uma forma confortável.
O que quer dizer "de uma forma confortável"?
Quer dizer que as pessoas que estão a reportar esses comportamentos antiéticos possam escolher se querem estar anónimas ou não. Porque não só a diretiva europeia menciona isso do ponto de vista legal, como os estudos que existem demonstram que é importante assegurar essa confidencialidade.
Quando faço uma denúncia, sei que vai parar a uma equipa, se possível a uma entidade externa, que ninguém vai pegar naquilo e enviar para quem não deve ter acesso àquela informação.
Outro ponto importante é a formação. A comunidade académica deve saber o que é isto de reportar comportamentos antiéticos e deve saber o que é um comportamento antiético - como se tipifica manipulação, assédio, abuso de poder, corrupção, discriminação. Isto, muitas vezes, é um problema. Contei que um professor perguntou a uma aluna se podiam discutir o assunto durante um jantar, à frente de um copo de vinho. Isto é muito diferente de um professor dizer a um aluno, "podemos falar sobre isto na cantina, hoje ainda não consegui almoçar, importa-se?" ou de coisas como alunos que querem reclamar dos serviços académicos, de uma unidade orgânica, de um exame mal avaliado. Isso é outra coisa.
Por outro lado, publicitar o que está a acontecer na comunidade deve partir da instituição académica, coisa que apenas uma percentagem muito mínima faz. É ela que deve dizer: em 2024, tivemos 20 reportes de comportamentos antiéticos, dos quais dez estavam fora de âmbito, eram reclamações ou pedidos de informação, seis eram referentes a abusos de poder, dois eram casos de corrupção, um de assédio e um de discriminação. Sem revelar nomes, claro, mas com tipologias, processos de investigação e conclusões. Do ponto de vista da saúde mental isto também é importante, este sentimento de closure [encerramento].
"Sinto que as pessoas, mesmo extremadas, quando as apertamos do ponto de vista terapêutico, quando pomos o dedo na ferida, ficam muito desorganizadas, meio perdidas até do ponto de vista existencial"
É psicólogo clínico, com uma especialização em Psicocriminologia. Quando soube que era esse o caminho?
Uma das coisas que sempre gostei de fazer foi olhar para as pessoas, observar as pessoas, os comportamentos. Aquela brincadeira de estar num restaurante a ver como é que a pessoa da mesa da frente pega nos talheres, como fala com a pessoa que está ao seu lado, como se dirige ao empregado. Ou porque é que numa mesa as pessoas falam de uma forma tão afável e na outra não falam, o que estará a acontecer entre aquele casal?
Depois, comecei a perceber que havia uma área que estudava o comportamento humano, que era a Psicologia. E a primeira vez que tenho uma aula de Psicologia, ainda no 12.º ano - não sabia ainda se iria tentar outra área da saúde, como a Medicina, ou algo relacionado com investigação científica -, percebo que é mesmo aquilo, aquela era a minha caixa.
A Psicocriminologia vem da vontade de saber mais sobre o comportamento humano em momentos limite. Gosto de acreditar que há aqui um ângulo sobre o comportamento humano que é mais puro, mais real, quando estamos numa condição limite. Por exemplo, se eu estiver muito irritado, posso dizer coisas de que me arrependo. Mas disse, e aquilo veio de algum lado. De onde, porquê, o que está por trás? Da mesma forma, se desato a chorar e começo a pensar em 'n' conteúdos, aquilo vem de algum sítio. Quis saber um bocadinho mais sobre isto.
Além disso, nesse percurso académico interessou-me a forma como as pessoas tentam manipular a informação. A minha tese é sobre isso, sobre como as pessoas tentam manipular a informação, simular ou dissimular o seu comportamento. Sempre gostei dessa ideia de perceber que nem sempre o que parece é.
Hoje em dia as pessoas estão muito extremadas e isso deixa-me curioso. Acredito que é para dizerem que pertencem a determinado grupo, mas, mais do que isso, para dizerem a que grupos não pertencem. Por exemplo, falar bem de Bolsonaro para dizer que não concordam com Lula ou vice-versa. Há aqui um comportamento quase de oposição, não porque a pessoa queira pertencer ali, mas porque não quer pertencer acolá. Faz-me lembrar o poema de José Régio, "Não sei para onde vou, Sei que não vou por aí" [Cântico Negro].
Porque sinto que as pessoas, mesmo extremadas, quando as apertamos do ponto de vista terapêutico, quando pomos o dedo na ferida, ficam muito desorganizadas, meio perdidas até do ponto de vista existencial. "Então, porque é que digo o que digo? Porque é que faço o que faço?" Mas, por enquanto, tenho apenas crenças, pistas para investigação, que depois poderão trazer respostas.
"Esta coisa de normalizar que a academia é um sítio violento tem de acabar"
É mais difícil fazer investigação em Portugal do que noutros países? Porquê?
Bom, acho que em qualquer área, não só na minha, o que separa Portugal de outros países é o investimento. Nós, infelizmente, continuamos a ter pouca capacidade de investir em equipas que façam investigação a sério. Estou a falar de investigação de ponta, coisas que fazem sentido, saúde mental, inteligência artificial, engenharia, as áreas várias da Medicina, até mesmo a sociologia, por causa deste extremismo.
Para terminar, e voltando aos comportamentos antiéticos na academia, há mimetização de comportamentos, ou seja, a vítima pode tornar-se abusador?
Sim, infelizmente sim. Este supervisor ou supervisora cortou-me as pernas, fez-me passar as passas do Algarve, ou o doutoramento foi das coisas mais difíceis que fiz na vida, portanto, agora os meus alunos vão ter de passar pelo mesmo.
Lembro-me de alguém que contou que o seu orientador disse que um doutoramento sem pelo menos uma depressão não é um doutoramento. Esta coisa de normalizar que a academia, chegados a determinado nível, é um sítio violento, tem de acabar. Senão deixamos de ter pessoas a pensar - e agora, com ferramentas como a inteligência artificial, vai ser muito fácil.
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