É uma da manhã e Conceição não quer deitar-se.
“Só vou para a cama à meia-noite”.
“Mas já é uma da manhã”, diz a assistente social da Misericórdia de Pedrógão Grande.
“Quero ir para a minha casa”.
“Mas está lá o lume”.
“Então vou dormir para o carro”.
Conceição Maria Raposo tem 81 anos e vive em Regadas, um pouco para oeste entre Derreada Cimeira e Derreada Fundeira, aldeias que a GNR começou a evacuar, por estarem cercadas pelo fogo. “Durmo no carro, já disse”.
Ambulâncias e carrinhas da polícia não param de chegar com idosos, famílias mais pobres e todos os que não puderam usar meios próprios. Conceição veio de carro com o filho, António Lopes Martins, que vive em Derreada Cimeira. “A polícia obrigou-me a vir”, diz ele. “Mas daqui a pouco já volto para casa. Tenho o carro, aqui é que não vou ficar”.
Nas instalações da Misericórdia há camas preparadas. Quando não forem suficientes, os desalojados irão para o salão paroquial.
“No carro não pode ficar, dona Conceição. Há muito fumo”.
“Fico no carro”.
O pai de Conceição era da Covilhã. Com o que lá aprendeu de tinturaria têxtil, veio trabalhar para uma fábrica de lanifícios daqui. E ficou, depois de ter conhecido e casado com a mãe de Conceição. Foi o início de uma lenta ascensão social da família. Conceição trabalhou, como atadeira, na mesma fábrica, situada no Souto Escuro, desde os 11 anos, durante 30. “Duas horas a pé, ao sol ou à chuva, todos os dias. Ganhava 5 escudos por dia”. Menos de um euro por mês. “Era o tempo da escravatura”, diz ela. Depois entrou para a fábrica Morgado, em Serzedas, agora destruída pelo fogo. Casou com um sapateiro, com quem viveu 59 anos e que morreu aos 83, há três meses.
O filho António trabalhou na Câmara Municipal e já está reformado, aos 59 anos, tal como a mulher, Irene Antunes Martins, 61 anos, após 16 de trabalho numa fábrica de pasta de papel à base de eucalipto. Foi para casa com uma pensão de invalidez quando uma máquina lhe amputou a mão.
“Vou já pegar no meu carro e regressar a casa”, diz António. Irene faz que sim com a cabeça. Mas continuam todos sentados no muro do pátio da Misericórdia.
“Vamos para o carro”, diz Conceição.
Foi um longo caminho, de gerações, até àquele carro, para que agora houvesse outro lugar para onde fugir. Uma mulher que tem uma casa e um filho com carro acha-se dona do seu destino.
Não param de chegar, os carros. “Falei com o Amadeu, de Regadas, diz que as nossas casas estão bem”, diz uma mulher, da janela de um deles.
“Olha, falam aí que o Z. tinha morrido”, diz outra. “O V. é que parece que está todo queimado”.
“Deus queira que não tenha morrido”.“Não morreu, mas está muito atrapalhado. Levaram-no para o hospital”.
Um Audi preto entra pelo pequeno portão, com uma mulher e uma criança. Sandra Martins, 32 anos, sobrinha de Conceição, vem furiosa com ela. “Já sei que andou a dizer que eu queria que você morresse”.
“Pois vieste embora e nem quiseste saber se eu estava lá sozinha”.
“Fui buscar a minha filha. Então não veio com o António?”
Uma mulher que tem estado calada diz: “A dona Olívia, que tem 70 e tal anos, essa é ficou lá sozinha. Estava em casa fechada, a dormir, ninguém a trouxe”.
“A filha devia ter ido buscá-la”, critica outra mulher. “Não devia ter lá ficado. Ainda a chamámos, mas não respondeu”.
Um homem: “Eu vim e nem me lembrei dela, confesso. Coitada da Dona Olívia”.
De uma ambulância, desce uma idosa, que caminha lentamente apoiada por dois homens.
Todos olham para ela. Não é a Dona Olívia. Vem de outra aldeia, onde parece que já não ficou ninguém. Faz-se um silêncio triste e breve de boas-vindas à mulher que avança com passinhos trémulos mas olhando em frente sem pestanejar. A última mulher de Derreada Fundeira.
"O lume fica vivo nas raízes das árvores, e nasce do chão dias depois, quando ninguém está à espera”
Em Derreada Cimeira também não há vivalma. À beira da estrada que desce para Regadas reacendeu-se o fogo no pinhal. Um incêndio ainda pequeno, mas teimoso. Quatro homens tentam apagá-lo. Um deles, de 60 anos, chapelinho azul e um olho inchado, é o proprietário do pinhal, Vitor Managil. Trouxe o pequeno tractor com uma mangueira que usa para sulfatar as árvores, encheu de água o depósito de 400 litros e avança para as chamas.
“Os bombeiros ainda não apareceram aqui”, queixa-se. “Pagamos impostos, mas quando precisamos de qualquer coisa, não temos direito a nada”. Um homem faz avançar o tractor, outro segura na mangueira, Vitor dispara a água sobre uma zona aparentemente já extinta. À volta os seus pés, o jacto vai acordando labaredas, ao levantar a cinza negra da caruma. É uma técnica de quem há muito se habituou a combater incêndios sozinho. Atacar o fogo mais vivo é uma batalha perdida. O melhor é deixar arder e apagá-lo quando está mais fraco.
"O lume fica vivo nas raízes das árvores, e nasce do chão dias depois, quando ninguém está à espera”, explica Vítor, incompreensivelmente tranquilo perante as labaredas que se avolumam a poucos metros, na pequena encosta. A mangueira não chega lá, portanto o melhor é deixar arder daquele lado. Enquanto for fogo rasteiro. Mas, aqui e ali, já trepa pelos pinheiros.
“Temos de optar”, diz Vítor. “Depois apanhamo-lo aqui”.
A água acaba e os homens vão reencher o depósito, a balde. “Hoje, já perdi 400 hectares de pinhal”, diz Victor. “Produzia resina. Não ia cortar os pinheiros, que levam uns 40 anos a crescer. Ficariam para os meus filhos”.
É 1h da tarde e Vítor está aqui desde madrugada. Só foi ao posto médico tratar o ferimento num olho. Colocaram um penso, que já caiu.
“Isto é uma vida de luta”. O terreno é acidentado, cheio de troncos e buracos. Ao puxar a mangueira, Vítor tropeça outra vez. Levanta-se e vai atacar as chamas que crepitam energicamente numa meia-lua de terreno de arbustos, fetos altos e pinheiros. “A gente domina-o”.
“Está a crescer de mais daquele lado”, grita um dos homens.
“A gente domina-o”.
“O fogo é como os lobos. É muito rápido a subir um monte, tem dificuldade em descer”.
Empurram o tractor por uma vala que divide a encosta e a propriedade de Vítor e outra, “de um tipo que vive em Lisboa, e que não trata do pinhal. O caminho está todo entupido, torna isto muito mais difícil”.
As chamas sobem e avançam rapidamente, na direcção do vento. O calor e o fumo negro tornam penosa a aproximação.
“Ali vai ser fodido de o apanhar”, grita Vítor, apontando para a área que já não é sua. Ainda que seja precisamente daquele lado que as labaredas se erguem, envolvendo as árvores, que cospem fogo na nossa direcção, num estardalhaço de estalos e estoiros, rufos e chiadeira de toros que parecem vivos.
“Além já está a pegar muito”, grita um. Corre e escorrega numa cova, tombando sobre caruma em brasa.
“Não se aleijem!”, grita Vítor. “Telefonem ao Zé para vir com a carrinha”. Os quatro homens estão extenuados e, agora sim, parecem desorientados. O flanco mais feroz do incêndio instalou-se na encosta que sobe até à estrada no terreno que não pertence a Vítor. Este quer concentrar os esforços no seu pinhal, mas as chamas não dão sinais de compreender o raciocínio.“O fogo é como os lobos”, diria em Bairradas um homem que foi guarda-rios e vigilante da Natureza. “É muito rápido a subir um monte, tem dificuldade em descer”.
A margem de cá, quase dominada, reacende-se com o sopro ardente do pinhal alheio e inimigo. “Não tenham pressa de ir para o outro lado”, grita Vítor para os seus homens. A mancha branca da carrinha com mais um depósito de água vislumbra-se finalmente na estrada, mas não consegue acesso.
“Que é que aquele cabrão anda ali a fazer com a carrinha, caralho?” Vítor desespera e cai mais uma vez antes de finalmente, quando a água começa a jorrar em duas frentes, o incêndio se submeter. Agora é só sufocar, uma a uma, as raízes incandescentes. Grande parte do pinhal já ardeu, mas a Derreada Cimeira está a salvo, por enquanto.
“Há 40 anos, quando havia um fogo, todos se uniam. Agora, esperam pelos bombeiros”
“Temos de converter os nossos inimigos em amigos”, diz o padre José Rosa Gomes no púlpito da Igreja de Figueiró dos Vinhos. Explica o versículo, que acabou de ler, em que Cristo aconselha a dar a outra face a quem nos agride. “Não devemos ser vingativos, não pagar o mal com o mal”, acrescentou o sacerdote, após ter parado para tossir, numa igreja cheia de fumo.
José Rosa Gomes tem andado pelas aldeias, a recolher informação, ouvir e ajudar. “Durante toda a noite, as pessoas circulavam nos carros, de um lado para o outro, a vigiar o fogo e as suas casas. Cada um só pensava na sua propriedade”, disse-me ele. Por toda a região, isso acontecia. Na própria IC8, com fogo intenso de ambos os lados da via, formavam-se filas de carros nas duas direcções. Como se aqueles pequenos santuários de estofos de napa e ar condicionado fossem garantia mágica de protecção e domínio sobre a realidade.
O padre apercebeu-se de uma dimensão específica da catástrofe e de algumas das suas causas mais subtis. “Falta hoje um espírito de ajuda mútua. Em Bairradas vi um barraco a arder e a forma como as pessoas, à excepção do dono, ficaram a observar, sem ajudarem”. Perdeu-se o sentido comunitário. As próprias comunidades dissolveram-se.
“Muitas casas são de emigrantes, e estão vazias. Têm a erva seca, os proprietários não arranjam os quintais”. Perderam-se os valores de coesão, que faziam funcional as sociedades. E isso torna as pessoas vulneráveis.
“Há 40 anos, quando havia um fogo, todos se uniam. Agora, esperam pelos bombeiros”. Mas estes nunca chegaram à maior parte dos lugares. Concentraram-se nas grandes frentes de fogo, não tinham meios nem tempo para defenderem casa a casa.
"Mas o fogo é como a guerra, não se vence só com a aviação. A certa altura, é preciso mandar as forças para o terreno, olhar o inimigo nos olhos”
As forças dos bombeiros foram enviadas para os campos de batalha dos pinhais e eucaliptais, bombardearam o inimigo por terra e ar. Nas suas casas as pessoas ficaram sozinhas e indefesas. O inimigo era o mesmo, mas, ali, desproporcional e impune. Ainda por cima, no auge da catástrofe, as autoridades cortaram o abastecimento de água às habitações. As pessoas gastariam demasiada, o que poderia prejudicar as operações dos bombeiros, foi a explicação. Na verdade, ficaram entregues ao seu destino. Em muitos casos, à morte.
Perdidas algures na mudança entre uma sociedade rural e tradicional e outra moderna e urbana, sem água nas suas casas a arder, fechadas nos seus carros, a fugirem para lado nenhum.
“Nem um bombeiro aqui veio”, disse o antigo guarda-rios de Bairradas. “Eu e as minhas filhas combatemos as chamas durante toda a noite, sem água, que foi cortada. E ainda estamos cá, para contar. Eles lançaram água com os meios aéreos, o que teve bons resultados, durante algum tempo. Mas o fogo é como a guerra, não se vence só com a aviação. A certa altura, é preciso mandar as forças para o terreno, olhar o inimigo nos olhos”.
O antigo guarda-rios, de 81 anos, vive numa casa isolada, rodeada de cinzas fumegantes. “Na hora da aflição não apareceu ninguém”, conta ele, cheio de raiva. “Depois veio a GNR, querendo obrigar-nos ir com eles. Não fui. Fiquei porque as casas ardem quando as pessoas não as defendem. Disseram que, a partir daí, se me acontecesse alguma coisa, a responsabilidade era minha”.
“Eu estive na guerra colonial, mas não vi lá nada que se parecesse com isto”
Na estrada nacional 236-1, a placa que indica o desvio para Pobrais está negra e ilegível, e é assim que, em nome do rigor, deveria ser mantida. A aldeia foi engolida por um vulcão, viajou ao centro ígneo da terra, atravessou mil anos de trevas em 15 minutos.
As ruas permanecem cobertas de destroços e fuligem negra, várias casas ficaram destruídas, plantas carbonizadas. Das carcaças de veículos saem “riachos” de metal que correram líquidos como mercúrio, uma roseira mantém as folhas e os botões, rosas negras dos abismos.
Isilda e Idalino estão no mesmo sítio, desde que tudo começou. Ficaram em casa durante o inferno de sábado à noite, e ainda não saíram daqui.
“Eu estive na guerra colonial, mas não vi lá nada que se parecesse com isto”, diz Idalino Rosa Santos, 71 anos. “Parecia o fim do mundo”, diz a mulher, Isilda da Piedade Dias, 65 anos. É o resumo que conseguem fazer.
“O céu metia medo”, continua Isilda. “De repente, ficou de noite. Ouviu-se um barulho horrível, era um tornado. Pensámos que seria da trovoada”. Viam o fogo ao longe, desde o princípio da tarde. Viram-no aproximar-se, e tiveram medo, mas não podiam imaginar o que aconteceria. “Foi de repente. O lume andava naqueles montes, e nuns segundos estava aqui, vinha sobre nós”. Isilda estremece, as mãos no ar, como se aquilo ainda estivesse a acontecer. “Era um furacão de chamas, uma chuva de fogo. Caíam pedaços a arder. O lume estava aqui e ao mesmo tempo vinha daquele lado. Estava à toda a volta.
E uma força, e um calor…”.
Os dois em casa, sozinhos, agarraram na mangueira e iam apagando os fogachos que nasciam de todo o canto, à porta e dentro de casa, um a um, num estranho ritual de pânico e precisão. Isilda chorava, agarrada ao marido. “Que Deus Nosso Senhor me acuda”.
“A minha senhora dizia: ‘Vamos fugir!’ E eu respondia: ‘Mas fugir para onde?” Por uma frecha da porta, Idalino lançava água sobre um palheiro e um barracão que tem em frente da casa, cheio de lenha. Em simultâneo, iam ambos apagando os archotes que atravessavam as telhas da garagem e caíam sobre o carro. Tanto ali como em casa, para onde há uma passagem interna, a estrutura é de cimento, depois da obra de recuperação total que mandaram fazer da antiga habitação da família de Idalina, que nasceu aqui.
“Custou 120 mil euros, mas valeu a pena”. Talvez lhes tenha salvado a vida, não só porque aguentou o ataque do incêndio, mas também porque os manteve ali, a defenderem a sua propriedade.
Pela janela, Isilda e Idalino viam os vizinhos arrancarem nos seus carros. Desesperados, ao sentirem que a aldeia seria pulverizada, partiam em direcção à estrada nacional 236-1.
Isilda e Idalino estiveram quase a fazer o mesmo, mas aguentaram. “Vamos fugir para onde Isilda?” Defenderam a casa e o carro até à última gota de água. Até que ela foi cortada. Então, fecharam tudo e esperaram. Isilda pensou: “Pronto, o fim da nossa vida chegou hoje”.
Mas tal como veio, o furacão incandescente afastou-se. “Tudo aquilo não durou mais de 15 minutos”, diz Idalino. “Passou rápido, passou pelo ar”, explica, levantando a mão sobre a cabeça. “Depois só tínhamos de ir apagando as faúlhas que caíam”.
Todos os vizinhos que fugiram de carro morreram. Dez pessoas, entre as pouco mais de 20 que habitavam a aldeia. A julgar pelas posições em que os veículos foram encontrados no dia seguinte, terão sido apanhados por línguas de fogo mal entraram na Nacional 236-1. A espessa nuvem negra deve tê-los cegado, os carros despistaram-se e chocaram uns contra os outros, cingidos em chamas. Juntaram-se-lhes os que vinham da Praia das Rocas, em Castanheira de Pera. Cerca de 40 pessoas morreram ali.
Os vizinhos que sobreviveram vêm agora à porta de Isilda e Idalino. É a primeira vez que se encontram, trocam notícias.
“Olha, o filho do Costa ainda não apareceu”. “Parece que em Figueiró não morreu ninguém”.
“Na aldeia lá de cima morreu uma cachopita com 3 anitos.”
“Uma mulher foi para o hospital, morreu depois”.
“O meu cunhado está muito gordo, não conseguia sair do carro. Nós ajudámos”. “Que bom”.
“Estive lá, na estrada. Consegui livrar um carro, eu sozinho”, diz o sobrinho de Idalino, que também se chama Idalino, tem 50 anos e é camionista. “Nunca tinha visto ninguém queimado. Parecem uns bonecos de brincar. Todos encolhidos, parecem uns bonequitos. Vi um…” Não termina a frase, começa a soluçar. Mas o gesto que faz com a mão parece uma carícia. Um sortilégio capaz de transformar aqueles corpos encolhidos nos únicos seres vivos do horizonte de gelo.
“Garantimos: raios não houve. Isso é história dos políticos. Àquela hora estava um céu completamente limpo, e nós comíamos uma sardinhada ali no largo”
Ao contrário do que parece nas imagens da televisão, o que reina em toda a área da catástrofe é o silêncio. Percorrer as estradas entre Pedrógão, Figueiró e Castanheira é mergulhar em quilómetros de silêncio sepulcral. A cinza assume tonalidades azuladas de neve suja, e os esqueletos das árvores fazem lembrar grades ferrugentas dissimuladas na noite.
Uma prisão a perder de vista. Espirais de fumo erguem-se do chão, não dos troncos ainda incandescentes, dos cabos eléctricos estripados ou dos sinais de trânsito e reflectores derretidos, mas de buracos, fossas estioladas, a definhar em vácuo e enxofre.
As extensões ardidas não foram arrasadas. As árvores permanecem nos seus lugares, por vezes só parcialmente consumidas, tal a velocidade do fogo. A pressa displicente da hiena saciada.
Há casos em que os eucaliptos queimados ficaram todos vergados para o mesmo lado, quase deitados, passados a ferro. E em certas zonas o verde pode até ter resistido nas copas dos pinheiros e eucaliptos. Mas as bases e raízes, essas foram roídas com afinco e obstinação. Mordidas a toda a volta, até ficarem expostas, como bolbos de carne sangrenta, gengivas podres num esgar obsceno.
Só o vento, um vento espesso e negro de fornalha, rompe a quietude. E as frases. As perguntas dos vizinhos, as notícias das aldeias, memórias de assombro e desassossego, como os cumprimentos dos nómadas quando se cruzam no deserto.
“Ouvi dizer que também morreu o Z. D.”.
“Pois foi. E o T.”.
“Aquele bombeiro da minha terra também morreu. Esse até se lhe derreteu a máscara na cara”.
E as queixas, as recriminações.
“A protecção civil é uma farsa”, ouve-se num café de estrada. “Não se percebe onde estão os 1500 bombeiros. Nunca onde são necessários.” “Eu andei com o meu carro para cima e para baixo, mas alguns ficaram quietos, com o fogo ali ao lado. Bem vi que não fizeram nada. Estamos a brincar ou quê?”
“Os fogos não acabam, porque os interesses são demasiado poderosos. A indústria da celulose, o negócio dos helicópteros e aviões…” “Ai meu rico Salazar”.
A atmosfera é de guerra, o inimigo poderoso e multifacetado: os bombeiros, a polícia, o governo, a comunicação social, os interesses, a corrupção, os ricos, os pobres, o fogo.
No café de Escalos do Meio, o clima é ainda mais cáustico. “A Protecção Civil é só cagança. Como tem medo de perder o tacho, o chefe só chamou os meios aéreos demasiado tarde”.Joaquim Nogueira, de 74 anos, é dos seis convivas, o mais corrosivo. “Não tenho medo de nada, estive em Angola, bebi lá umas Cucas boas, comi umas mulatas boas…”
São todos filhos da terra, nada lhes escapa. Se, por exemplo, tivesse havido uma “trovoada seca” às duas da tarde, teriam dado por isso. Mas não houve, garante Luis Bento, 70 anos. Joaquim e os outros confirmam. “A tese das autoridades foi totalmente inventada”.
É verdade que o incêndio começou aqui, em Escalos do Meio, por volta das 14.30, como reza a teoria oficial. Mais precisamente num pequeno vale ao lado de uma ponte de madeira sobre um riacho, a pouco mais de um quilómetro daqui. Mas não foi provocado por um raio. “Garantimos: raios não houve. Isso é história dos políticos. Àquela hora estava um céu completamente limpo, e nós comíamos uma sardinhada ali no largo”.
Qual a origem do fogo, não sabem. Mas dizem que passou para os lados do ribeiro um carro branco com dois indivíduos desconhecidos e “mal encarados”. De resto, até agora, nenhum polícia, investigador, político ou sequer um jornalista aqui veio falar com eles. Os bombeiros, é claro, também não.
Descendo a estreita rua que vai dar à ponte de madeira, dá-se com o mítico local do raio seco porque está lá um carro da GNR.
“Não podem passar, têm de ir embora agora, desculpem”, diz o agente, embaraçado. “Esperamos a Polícia Judiciária, mandaram-me ficar aqui e não deixar ninguém aproximar-se”, diz o polícia. “Mais tarde poderão vir…” Fica calado por uns momentos e depois declara, ninguém sabe porquê: “O importante foi a atitude da selecção nacional. Um minuto de silêncio no jogo…”
Eles estão mais fracos e o fogo mais forte
Deixamo-lo, mas regressaremos à noite. Então sim, todo o aparato estará montado. Vários carros, dezenas de polícias, espalhados pelo local, numa azáfama aparentemente importante e secreta, como se isolassem o ponto de aterragem de um OVNI. Um furgão do Corpo de Intervenção estará a bloquear a estrada. O agente de guarda parecerá surpreendido e aterrorizado por nos ver chegar. Dará ordem para nos afastarmos imediatamente, não responderá a perguntas.
Que estariam ali a fazer? Que provas recolheram no local? De onde, por iniciativa de quem e por que razão surgiu a teoria da trovoada seca? Que nova tese estariam agora a construir? São estas as perguntas sem resposta.
É visível uma espécie de círculo de fogo ao lado da ponte sobre o riacho. Foi aqui que tudo começou. Se há um mistério em toda esta história, é aqui que reside a explicação. Se nascer uma lenda, será também aqui.
Às oito horas da noite, a Praia das Rocas está fechada e vazia. Foi daquele relvado que rodeia as palmeiras de cimento, do lago onde atracam três veleiros velhos, que dezenas de pessoas saíram para a morte. Fizeram-se à estrada nacional 236-1 porque viram o fogo nos montes em frente. Tal como agora, em que uma grossa coluna de fumo nasce de um monte a sudeste. Parece um ciclo que se reinicia. Um ciclo da natureza.
Trata-se de um incêndio reactivado. Onde será? Após várias consultas, não restam dúvidas: naquela direcção fica Regadas e Derreada Cimeira. Será de novo o pinhal de Vitor Managil? Percorrida uma estrada fumegante e perigosa, repleta de pedaços de árvores e cabos caídos no asfalto, lá estão eles: Vítor e os seus homens, com o tractor e mangueira. Tudo igual, oito horas depois. Apenas um incêndio muito mais intenso e um pouco mais a norte, embora ainda no pinhal de Vítor, que tem o rosto vermelho e enfarruscado. Está exausto.
“Já enchemos o depósito de água pelos menos 30 vezes”, diz um dos homens. Não param, mas a luta é agora muito desigual. Eles estão mais fracos e o fogo mais forte. Tão forte, que se tornou visível de muito longe, para muita gente, incluindo um carro dos bombeiros de Pedrógão que passava na estrada.
Vítor e os seus homens gritam, esbracejam, e os bombeiros decidem ajudar. É a bombeira Alberta Nunes, de 47 anos, que desce ao pinhal, de botas e capacete, com passo firme, apesar das duas noites sem dormir. Vítor corre a segurar-lhe na mangueira, mas escorrega e cai. Levanta-se e cai de novo. Não se aguenta em pé, deixa-se ficar estendido sobre uma pedra, braços para cima, morto de cansaço, mas triunfante.
Alberta aponta o jacto primeiro para as copas dos pinheiros. Em poucos minutos tem tudo apagado. “Despacha-te, há outro incêndio lá em baixo”, grita-lhe um colega. Partem, e pouco depois já as chamas despontam outra vez do chão. As raízes, as malditas raízes.
Vítor e os companheiros ficam sentados. “Não vale a pena fazer nada. Depois ele acende outra vez. Estamos cansados. Deixemo-lo cansar a ele. Mais tarde apanhamo-lo”.
"Reze por nós. O mundo está tão mal. Parece que o inimigo está a ficar mais forte”.
O padre José Rosa Gomes faz a sua ronda pelas aldeias. Parece o Indiana Jones, com o seu “panamá” branco, os óculos de sol e os binóculos ao pescoço. Mete-se no seu Toyota Yaris azul, telemóvel pré-histórico no bolso, e lá vai ele para Arega, Maçãs de Dona Maria, Bairradas, Cabêças. Chega, estaciona junto à igreja e começa a fazer perguntas. “A Aguda, está a salvo? Onde é que está mais bravo aqui?”
“Ficou tudo queimado. Se não tivessem cortado a água, tínhamos apagado isto”.
“Você ao menos conseguiu salvar a sua casa?”
“Mal e porcamente”.
Rosa Gomes nasceu em Ferreira do Zêzere, foi missionário em África, é pároco de Figueiró dos Vinhos há sete anos. “Isto já era muito pobre”, diz-me ele. “Agora as pessoas ficaram sem nada. Muitas delas, o único rendimento que tinham eram os eucaliptos. Em dez anos ficam prontos para os cortes. Porque a agricultura não dá nada”.
O padre assesta os binóculos e perscruta os montes, verificando se há fumo nas suas aldeias isoladas. Por vezes sente-se o único elo de um mundo em desagregação, a que o incêndio tivesse apenas desferido o golpe de misericórdia.
De certa forma, a catástrofe atormentava a região há muitos anos, sob a forma latente, como o fogo nas raízes dos pinheiros. Por isso é mais fácil e indolor considerá-la um fenómeno natural.
Como se a erosão tivesse finalmente abafado as ruínas de uma civilização. A tragédia é menor quando já quase não havia vida.
“Aqui estávamos sossegados e o fogo irrompeu do nada, no meio da aldeia”, diz uma mulher em Cabêças. “Senhor padre, obrigado pela visita. Reze por nós. O mundo está tão mal. Parece que o inimigo está a ficar mais forte”.
O padre ri, já a dirigir-se para o Yaris, a sua silhueta de barba, óculos de sol e chapéu branco recortada contra o horizonte negro. “É verdade, o mundo está estranho. Parece o inferno”.
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