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Lições de A Escola da Vida
Este livro retrata a trajetória de uma viagem – do esgotamento e colapso à convalescença e recuperação. Tem como intenção servir como guia prático, mas também como fonte de consolo e amizade nos momentos mais solitários e angustiantes das nossas vidas.
É um livro sobre o nosso adoecimento, sobre perdermos o rumo e a esperança, convencidos de que desiludimos toda a gente. Fala‑nos também de redenção: sobre recuperar o fio à meada, redescobrir o significado e encontrar o caminho de regresso ao que nos liga à vida, ao calor e à alegria.
É um livro que se debruça sobre a simpatia, a firmeza e o caminho para construir uma existência em que voltamos, apesar de tudo, a ter a certeza de que queremos estar aqui.
Este é, sobretudo, um livro sobre resistência. Defende que não podemos permitir que o medo, a autoaversão e a tristeza prevaleçam e que, se conseguirmos pensar sobre as coisas com a generosidade e criatividade suficientes, saberemos sempre encontrar razões para viver.
É fácil perdermos demasiado tempo a questionar a utilidade dos livros e das ideias. A maior ambição e inspiração desta obra é dar a força e a clareza necessárias para ultrapassar os piores momentos.
É possível que, durante muito tempo, consigamos aguentar bastante bem. Vamos trabalhar todas as manhãs, contamos aos amigos uma versão simpática das nossas vidas, sorrimos ao jantar. Não estamos totalmente equilibrados, mas também não temos uma boa maneira de aferir das dificuldades que as outras pessoas enfrentam, nem o que podemos esperar em termos de satisfação e paz de espírito. Provavelmente, convencemo‑nos a não sermos complacentes e redobramos os esforços para atingir metas que nos façam sentir válidos. Provavelmente, somos peritos mundiais em não sentirmos pena de nós mesmos.
Podem passar‑se décadas. Não é invulgar que as condições mentais mais graves permaneçam por diagnosticar durante muitos anos. Podemos simplesmente não reparar que, sob a superfície, somos ansiosos crónicos, que transbordamos de autoaversão e de um desespero e raiva esmagadores. Também isso acaba por parecer‑nos normal.
Até que um dia, por fim, surge algo que desencadeia um esgotamento nervoso. Pode ser uma crise no trabalho, uma contrariedade nos nossos planos de carreira ou um erro que fizemos numa tarefa. Pode ser um desgosto amoroso, alguém que nos abandona ou a perceção de que somos profundamente infelizes com o parceiro que imagináramos ser eterno. Em vez disso, sentimo‑nos estranhamente cansados e tristes, ao ponto de já não conseguirmos encarar nada, nem mesmo uma refeição em família ou uma conversa com um amigo. Ou então somos atingidos por uma ansiedade incontrolável em relação aos desafios do dia a dia, como falar com colegas ou ir a uma loja. Somos dominados por uma sensação de desespero e de catástrofe iminente. Choramos de forma descontrolada.
Estamos com uma crise mental.
Isto é o que se pode seguir...
I Esgotamento
Com sorte, conseguimos hastear a bandeira branca assim que nos parece insustentável aguentar a situação mais tempo. Não há nada de vergonhoso ou raro na nossa condição; ficámos doentes, como tantos antes de nós. Não precisamos de revestir a nossa doença com um sentimento de vergonha. É o que acontece quando se é um ser humano frágil, a enfrentar condições de existência dolorosas, preocupantes e sempre incertas. A recuperação pode começar no momento em que admitimos que já não fazemos ideia de como aguentar.
As origens da crise remontam, quase de certeza, a um passado distante. É possível que algumas coisas já não estivessem bem há muito tempo, talvez desde sempre. Poderá dar‑se o caso de ter havido desajustes graves na infância, coisas que nos disseram e fizeram que nunca deviam ter acontecido, ou pequenos momentos de reconforto e cuidado que falharam escandalosamente. Para além disto tudo, a vida adulta pode ter sido alicerçada sobre problemas com os quais não estávamos bem preparados para lidar. Tudo isso foi exercendo pressão sobre os nossos pontos mais frágeis.
A doença tenta chamar a atenção para os nossos problemas, mas só consegue fazê‑lo de forma desarticulada, libertando sintomas vagos e grosseiros. Sabe sinalizar que estamos preocupados e tristes, mas não consegue dizer‑nos a causa ou o motivo. Esse será o trabalho de uma análise paciente, ao longo de meses e anos, provavelmente acompanhado por especialistas. A doença contém a cura, mas tem de ser assumida e interpretada. Há algo do passado que clama por ser identificado e que não nos vai deixar em paz até lhe prestarmos a devida atenção.
Em alguns momentos, pode parecer uma sentença de morte, mas sob o manto dessa crise, está a ser‑nos dada a oportunidade para recomeçarmos as nossas vidas, num trajeto mais generoso, amável e realístico. Há uma sabedoria em estar doente – e em arriscarmos finalmente escutar o que a dor nos está a tentar dizer.
A doença mental é um milagre de que não nos apercebemos até ao momento em que nos foge das mãos – e nesse momento perguntamo‑nos como é que até aí conseguíamos fazer algo de tão belo e complexo como manter os nossos pensamentos sadios e equilibrados.
Uma mente saudável está permanentemente a levar a cabo, de forma subconsciente, um conjunto de manobras quase milagrosas que alicerçam a nossa lucidez e propósito. Para compreendermos tudo o que a saúde mental implica – e, portanto, o que carateriza o seu oposto – precisamos de nos deter um momento para pensar no que se deve estar a passar nas dobras de uma mente plenamente funcional:
Antes de mais, uma mente saudável é uma mente editável, um órgão capaz de peneirar, de entre os milhares de pensamentos desgarrados, angustiantes, desconcertantes ou aterradores, aquelas ideias e sensações específicas sobre as quais precisamos de nos deter, de maneira a conseguirmos orientar a nossa vida de forma eficaz.
Em parte, isso significa afastar pensamentos críticos e punitivos que nos querem convencer do quanto somos desgraçados e desprezíveis – mesmo quando a censura já deixou há muito de servir qualquer propósito. Quando estamos a meio de uma entrevista para um novo emprego ou a sair com alguém num encontro, uma mente saudável não nos obriga a ouvir as vozes interiores que insistem que não somos merecedores. Permitem que falemos connosco como faríamos com um amigo.
Ao mesmo tempo, uma mente saudável resiste à imensidão de comparações injustas. Não está constantemente a permitir que as realizações e conquistas dos outros nos façam descarrilar e nos reduzam a um estado de incapacidade amargurada. Não nos tortura por estarmos continuamente a comparar a nossa condição com a de pessoas que, na realidade, tiveram educações e trajetórias de vida muito diferentes. Uma mente em bom funcionamento reconhece a futilidade e crueldade de estar permanentemente a procurar falhas na sua própria natureza.
Ao longo da vida, uma mente saudável mantém um controlo firme e ajuizado sobre a constante ameaça do medo. Sabe que, em teoria, há inúmeras fontes possíveis de preocupação: um vaso sanguíneo pode falhar, um escândalo pode vir à tona, os motores do avião podem desprender‑se das asas... Mas tem o bom senso de distinguir entre o que teoricamente pode acontecer e o que é realmente possível que aconteça, e por isso consegue não nos incomodar com as possibilidades mais fantasiosas do destino, assegurando‑nos de que as coisas horríveis, ou não vão acontecer ou, caso alguma vez aconteçam, seremos capazes de resolvê‑las cabalmente. Uma mente saudável evita cenários catastróficos: sabe que no espaço entre si e o desastre vai encontrar uma sólida e ampla escadaria de pedra, e não uma rampa inclinada e escorregadia.
Uma mente saudável tem compartimentos com portas pesadas que fecham de forma segura. Consegue compartimentar onde é necessário. Nem todos os pensamentos pertencem a todos os momentos. Enquanto falamos com uma avó, a mente evita o surgimento de imagens das fantasias eróticas da noite passada; enquanto tomamos conta de uma criança, consegue reprimir os pensamentos mais cínicos e misantrópicos. Pensamentos aberrantes sobre saltar para uma linha de comboio ou fazermos mal a nós próprios com uma faca afiada podem permanecer como breves lampejos muito esporádicos, sem se tornarem fixações recorrentes. Uma mente saudável já dominou as técnicas da censura.
Uma mente saudável consegue silenciar as suas próprias preocupações de modo a conseguir focar‑se no mundo para além de si mesma. Pode estar presente e envolver‑se com as pessoas e assuntos à sua volta. Nem tudo o que se pode sentir tem de ser sentido a cada momento.
Uma mente saudável combina a dose certa de desconfiança em relação a certas pessoas e uma confiança elementar na humanidade. Pode assumir um risco calculado com um estranho. Não extrapola os piores momentos da vida de maneira a destruir a hipótese de possíveis ligações.
Uma mente saudável sabe ter esperança, identifica‑se e agarra‑se com tenacidade a algumas razões para seguir em frente. É evidente que os motivos para o desespero, a raiva e a tristeza estão por todo o lado. Mas a mente saudável sabe como isolar a negatividade em prol da resistência. Agarra‑se a todas as provas do que ainda é bom e agradável. Lembra‑se de usufruir; consegue – apesar de tudo – continuar a ansiar por um bom banho quente, por comer frutos secos ou chocolate negro, por ter uma conversa com um amigo ou um dia de trabalho gratificante. Recusa deixar‑se silenciar por todos os argumentos racionais a favor da raiva e desânimo.
Enumerar algumas das caraterísticas de uma mente saudável ajuda‑nos a identificar o que pode falhar quando ficamos doentes. O âmago da doença mental é a perda de controlo sobre os nossos melhores pensamentos e sentimentos. Uma mente que não está bem, não consegue aplicar um filtro à informação que chega à consciência; já não consegue ordenar ou sequenciar o seu conteúdo. E a partir daqui, sucede‑se uma panóplia de cenários dolorosos:
A nossa consciência é continuamente invadida por ideias despropositadas, como vozes inclementes que ecoam sem parar. As possibilidades mais angustiantes abatem‑se sobre nós todas ao mesmo tempo, sem qualquer ponderação quanto à probabilidade da sua ocorrência. O medo corre à solta.
Ao mesmo tempo, os arrependimentos esgotam qualquer capacidade de nos reconciliarmos com quem somos. Todas as coisas más que alguma vez dissemos ou fizemos reverberam e ferem a nossa autoestima. Somos incapazes de medir as verdadeiras proporções do que quer que seja: uma gaveta que não abre parece um sinal evidente de que estamos condenados; um comentário ligeiramente menos amável de um conhecido, torna‑se a prova de que não devemos existir. Não conseguimos avaliar as nossas preocupações para nos concentrarmos nas poucas que podem realmente ser merecedoras de preocupação.
Não conseguimos moderar a nossa tristeza. Não conseguimos ultrapassar a ideia de que não fomos realmente amados, que fizemos da nossa vida adulta uma bagunça, que desapontámos todas as pessoas que alguma vez tenham tido um pingo de esperança em nós.
Todos os compartimentos da nossa mente estão escancarados. Os pensamentos mais estranhos, mais extremos, correm descontrolados pela nossa consciência. Começamos a temer que possamos gritar obscenidades em público ou magoar‑nos com as facas da cozinha.
Nos casos mais graves, perdemos o poder para distinguir a realidade exterior do nosso mundo interior. Não conseguimos distinguir entre o que está fora de nós e o que está dentro, onde nós acabamos e os outros começam; falamos com as pessoas como se elas fossem personagens dos nossos próprios sonhos.
À noite, tal é o turbilhão e consequente exaustão que ficamos indefesos perante as nossas piores preocupações. Às três horas da manhã, depois de horas a ruminar, acabar connosco já não nos parece uma ideia assim tão remota ou indesejada.
Por muito aterrador que isto pareça, não deixa de ser um paradoxo que a doença mental, vista de fora, não pareça geralmente tão angustiante como nós achamos que seria de esperar. A maioria de nós, quando não estamos bem mentalmente, não espumamos da boca nem nos convencemos de que somos o Napoleão. Não começamos a fazer discursos sobre invasões alienígenas ou a afirmar que controlamos o espaço e o tempo. O nosso sofrimento é mais silencioso, mais introspetivo, mais encoberto e mais conforme com as normas sociais; abafamos o choro com a almofada ou entranhamos as unhas silenciosamente nas palmas das mãos. Os outros podem nem sequer perceber, durante um longo período de tempo, que estamos com dificuldades, se é que alguma vez chegam a dar‑se conta disso. Nós próprios podemos não aceitar a real dimensão da nossa doença.
As imagens estereotipadas da «loucura» – com as suas obscenidades, delírios e cenas escandalosas – podem ser assustadoras em si mesmas, mas a nossa obsessão coletiva com essas imagens sugere uma necessidade oculta de tranquilização. Caraterizamos a doença mental em termos imaginativos e extremos para nos convencermos da nossa própria sanidade; para abrir um caudal de água límpida entre os nossos estados de fragilidade e aquelas pessoas que designamos com desdém de «lunáticos». Isso impede‑nos de reconhecer que a doença mental acaba por ser tão comum, e tão pouco vergonhosa, como a sua contraparte física – e que também compreende uma gama de pequenas mazelas, equiparáveis a aftas ou pulsos partidos, a cãibras abdominais ou unhas encravadas.
Se definirmos a doença mental como uma perda de controlo sob a mente, poucos de nós podem garantir estar livres de algum tipo de mal‑estar. A verdadeira saúde mental envolve uma aceitação honesta de que, mesmo nas vidas mais competentes e significativas, haverá sempre algum grau de sofrimento ou dificuldades. Haverá dias em que não conseguimos parar de chorar por causa de alguém que perdemos. Ou em que nos preocupamos tanto com o futuro que desejaríamos nem ter nascido. Ou em que nos sentimos tão tristes que até falar nos parece fútil. Deveríamos, em tais momentos, ser considerados tão doentes como uma pessoa na cama com gripe – e igualmente merecedores de atenção e simpatia.
Também não ajuda o facto de estarmos a anos‑luz de compreendermos corretamente como funciona o cérebro – e de como pode ser curado. Não ajuda que neste domínio estejamos mais ou menos no mesmo ponto que estava a medicina física em meados do século xvii, quando se começou lentamente a construir uma imagem rigorosa do sistema circulatório ou do funcionamento dos rins. Na tentativa de encontrar soluções, somos como aqueles cirurgiões retratados em imagens antigas que cortavam cadáveres com tesouras enferrujadas e rebuscavam desajeitadamente as entranhas com um atiçador. Estaremos – surpreendentemente – a caminho de colonizar Marte antes de conseguirmos decifrar por completo os segredos do funcionamento das nossas mentes. Certamente não é coincidência que a partir da Renascença, em muitas partes da Europa, os asilos para doentes mentais fossem albergados em mosteiros convertidos para o efeito, assinalando uma ligação implícita entre o consolo procurado na religião e na psiquiatria. Os melhores destes asilos, e houve muito poucos, prometiam um refúgio digno para as pressões da sociedade e os terrores da mente. Podem ter tido jardins amplos, como o do asilo de Saint‑Paul em Saint‑Rémy, onde o enfermo Vincent Van Gogh passou um ano em 1889, sentado muito quieto durante horas a fio no seu quarto e depois a pintar dezenas de pinturas sublimes de lírios, ciprestes e pinheiros, pinturas que conseguem ainda hoje convencer os inconsoláveis a continuar a viver.
À sua maneira, este livro ambiciona ser um santuário, um jardim murado repleto de uma frondosa vegetação psicológica e com bancos confortáveis onde possamos sentar‑nos e recuperar as forças, numa atmosfera de bondade e companheirismo. Concebe uma espécie de jangada de processos terapêuticos que nos permitem navegar as nossas aflições e instabilidades mentais mais persistentes. Pretende ser um amigo durante alguns dos momentos mais difíceis das nossas vidas.
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