Foi um ano duro, mas nem tudo é mau. Alguns tiveram boas razões para celebrar naquele que ficará para a História como o ano da pandemia. Este é o Almanaque da Felicidade de 2020. Se também teve motivos para ser feliz este ano partilhe connosco, envie um email para 24@sapo.pt


Miguel Ângelo Falcão de Oliveira. O sobrenome de Falcão assenta que nem uma luva no piloto de MotoGP nascido em Almada, a 4 de janeiro de 1995.

MO88, Falcão da Charneca ou Einstein, o número 88 da Tech3 KTM, equipa satélite da KTM, teve razões de sobra para ser feliz no ano da capicua maldita (2020).

Numa temporada que esteve em risco de nem sequer arrancar, em março, o piloto português de 25 anos, rasgava curvas na Playstation, sentado à espera do sonho da segunda época na elite do motociclismo mundial. Em novembro, cumpriu as 14 provas realizadas num calendário encurtado e adaptado à pandemia.

Oito corridas terminadas entre os seis primeiros lugares e duas vitórias. No Grande Prémio de Estíria, Spielberg, Áustria, abrilhantado com a épica ultrapassagem na última curva do circuito, após o qual, ganhou o cognome de “Einstein” e em Portimão, no GP de Portugal.

A correr em “casa”, empurrado pelo vento português, à pole position, a segunda da época, acrescentou uma corrida solitária, sempre na frente na montanha russa do Autódromo Internacional do Algarve, até cerrar os punhos na reta da meta.

Numa prova sem público, à chegada ao Paddock, transbordou o caldeirão de emoções contidas debaixo do capacete. Ali, naquele momento, pousou a bandeira de Portugal e abraçou, em lágrimas, o seu triângulo de suporte fora das pistas. O pai, Paulo Oliveira, o homem por detrás da sua carreira, a namorada, Andreia Pimenta, filha da madrasta, Cristina Oliveira, a quem sempre tratou por “mãe”.

Uma família unida no momento de glória, quatro meses depois de não terem conseguido na primeira subida ao mais alto lugar do pódio, face às restrições impostas pela pandemia que impediram a viagem de pai e mãe.

O piloto português terminou na 9.ª posição do mundial de motociclismo, um lugar acima das previsões iniciais. Fecha quatro meses de sonho a título profissional e pessoal, consubstanciado na subida à equipa oficial da KTM,  no ano que agora começa.

 A primeira pista: Areal da Charneca da Caparica

Franzino, 1,70 m de talento nato, Miguel Oliveira começou nas duas rodas um par de anos após começar a equilibrar-se com os dois pés. Aos três ou quatro anos, senta-se ao volante do veículo, por brincadeira, longe de saber que dele faria o seu modo de vida.

O areal da Charneca da Caparica serviu de primeira pista. Foi de vida curta a primeira experiência, suspensa após um acidente. Dos 5 aos 9 anos encostou o brinquedo à box. Saiu, por uma vez só, mas em kart, num troféu em Palmela. Não voltaria. Regressa às motos. Para de lá nunca mais sair.

créditos: Patrícia de Melo Moreira / AFP

Nascido no seio de uma família de origens humildes, a mãe era empregada doméstica, o pai, motard e frequentador de concentrações, começa a juntar dinheiro para o filho dar asas ao jeito para a condução.

Largou, aos poucos, a empresa ligada à construção civil, o suporte financeiro, e começa a desempenhar o papel de agente, negociador de patrocínios, mecânico e tudo o mais. Tudo para que o filho, Miguel Oliveira, se limitasse a treinar e a correr em pista. Sem qualquer outra preocupação adicional.

Com a separação dos pais, MO segue o caminho ao lado do pai.

A carreira começa sem certezas do local (Braga?), mas com uma certeza quantos resultados. O último lugar em todas as corridas no primeiro campeonato.

A montra espanhola

Portugal era, no entanto, pequeno para os sonhos de ambos. Paulo Oliveira decide atravessar a fronteira com o filho Miguel. Vencedor do campeonato Português de MiniGP, então com 10 anos, começa a competir no campeonato espanhol de velocidade, a grande montra para o jovem almadense.

Sagra-se vice-campeão espanhol, em 2010, e número dois mundial de Moto3, campeonato do mundo de motociclismo de velocidade, em 2015 (Red Bull KTM Ajo). No Circuito de Mugello, em Itália, ouviu-se pela primeira vez “a portuguesa” num mundial de motociclismo. Três anos mais tarde, repete o feito de vice-campeão, então no Moto2, antecâmara da elite das duas rodas.

Para trás estão anos de injeções monetárias de dezenas de milhares de euros. Vindas do bolso do pai e de empresas nacionais e internacionais. O primeiro ordenado surge em 2012, no segundo ano de Mundial. Aos 17 anos, deixa de pagar para correr, conforme admite em entrevista ao Expresso, e entra, “por mérito próprio” na alta-roda do motociclismo.

44 curvas antes da entrada na elite mundial. Ídolos e agradecimentos

O caminho que levou Miguel Oliveira até ao MotoGP demorou 15 anos. “Foi longo e cheio de curvas, de avanços e recuos, com muito menos glamour e muito mais sofrimento do que se imagina”, conforme o próprio descreve no livro “Next Level, 44 Curvas até ao MotoGP” (Casa das Letras), escrito por quatro mãos, ao lado da jornalista Edite Dias. Um “percurso de determinação e persistência” no qual são relatadas “histórias de amor, desilusão, persistência”, combinadas com “momentos de alegria, profunda emoção e gargalhadas honestas”. Uma estrada de emoções que “levaram Miguel Oliveira até ao seu sonho”.

Entre os 44 capítulos, em referência ao número usado, desde 2011, na parte da frente da mota até chegar à prova rainha, há um que desperta particular atenção. “Adeus, ídolos”, capítulo 42, onde entra em cena Valentino Rossi, grande referência de Miguel Oliveira.

Outrora olhado com venerada admiração, o piloto italiano foi pela primeira vez campeão mundial quando MO, então com dois anos, dava os primeiros passos, passa a ser companheiro de grelha da partida. E deixou de ser ídolo, conforme admitiria em entrevista ao Público “Já não tenho ídolos. O meu ídolo agora sou eu. Ou, melhor, o piloto que serei dentro de cinco anos, talvez”, disse antes na estreia no MotoGP.

A nova etapa trouxe nova numerologia. Cai o número 44, ocupado pelo espanhol Por Espargaró, e o piloto português decide dobrar a numeração. Passa a ser MO 88.

Na hora da primeira subida ao pódio de Miguel Oliveira, no MotoGP, Paulo Oliveira não esqueceu quem esteve ao lado dos dois nos anos anteriores. Enumera-os em entrevista à Rádio Observador. “Esta vitória é de todos nós. [Do] meu tio Lafayette, [do] António Coimbra da Vodafone, que sempre acreditou, [do] António Lima, do Motor Clube do Estoril, [do] engenheiro Domingos Piedade, que já não está entre nós”, disse.

O curso, a escola e a família fora de pistas

Fora de pista, o piloto de Almada procura ajudar ao sonho de jovens pilotos. Criou o projeto “Oliveira Cup”, um troféu-escola destinado a miúdos dos 6 aos 14 anos. Não se limita a emprestar o nome. Deu algo mais. O dinheiro recebido do merchandising é para aqui canalizado, tentando dar aos outros – condições financeiras – que ele não teve.

Ter boas notas é um dos requisitos de entrada. Ou não tivesse ele mesmo trilhado o mesmo caminho, conciliando competição e educação. Porque, conforme reconhece em entrevistas dadas, a vida de piloto “é curta”.

A educação escolhida não recaiu em engenharia mecânica, como seria de esperar, mas na área da Saúde. Concorre a medicina dentária e escolhe o Instituto Superior Egas Moniz por ser perto de casa. Frequenta, atualmente, nessa instituição o mestrado integrado de medicina dentária.

Miguel Oliveira não é protótipo de piloto vedeta, à imagem daquele que admirou desde pequeno. “Gosta particularmente, entre outras coisas, de estar em casa e usufruir da família”, respondeu, por SMS, ao SAPO24, Paulo Oliveira.

Tem igualmente queda para a cozinha. “Uma cozinha variada, mas mais centrada na sua dieta”, acrescenta, sem especificar o menu.

O casamento adiado e o título mundial antecipado

Quer Miguel Oliveira, ao Expresso, quer o pai, no Observador, acreditam no título de campeão mundial. Anteciparam-no para 2020. Poderá ser em breve. Talvez, em 2021.

Para Miguel Oliveira, este será o ano de celebração do casamento com Andreia, também ela dentista, com quem namora há 11 anos. Uma cerimónia inicialmente marcada para 25 de julho, exatamente um ano depois do pedido, mas cuja pandemia levou ao adiamento e à queda no GP da Andaluzia.

Será igualmente nos próximos 12 meses que, finalmente, deverá ter a carta de condução de mota, um processo a ser tratado no ACP, entidade presidida por um dos seus grandes amigos e admiradores, Carlos Barbosa.