À frente de Angra do Heroísmo, Açores, há dois pequenos ilhéus e duas rochas. Um dos ilhéus, que é propriedade privada, é habitado, durante o inverno, por cabras.
É com vista para a principal cidade da Ilha Terceira, que já foi capital de Portugal, que durante os meses de maior precipitação estes animais, reis e senhores daquele íngreme e pequeno fragmento terrestre que emerge no meio do mar, vivem, partilhando o espaço com algumas espécies de aves, em especial gaivotas. No verão, face à pouca vegetação existente nesta montanha rodeada de água, ganham direito a mudar-se para outra residência. Em solo firme.
Entre os habitantes da ilha, aquele pedaço de terra no meio do Atlântico foi batizado como Ilhéu das Cabras. E é à sua volta que o Angra Iate Clube organiza uma regata especial: a Angra Bay Cup 8 aos ilhéus e que completou a 22ª edição.
No percurso desenhado em 8, os barcos saem da marina, passam pelos ilhéus, contornam os “Fradinhos”, meia dúzia de metros quadrados de dois pequenos pedaços de terra perdidos no Atlântico e onde as embarcações viram de regresso à baía.
Este ano, a maior competição de vela de cruzeiro dos Açores (em número de participantes), contou com 35 barcos (mais um Optimist e um Laser) na linha de largada, situada em frente à baía de Angra do Heroísmo. Facto que deixou o incansável presidente do Angra Iate Clube, Augusto Silva, realizado com esforço feito e com a obra que leva já 8 anos e que visa devolver Angra ao mar e colocar o clube como uma das referências náuticas do arquipélago.
Nascido em 1995, o clube contabiliza 680 sócios e desdobra-se entre a Vela de Cruzeiro, Ligeira, Adaptada, Canoagem e Jet-ski.
No Angra Bay Cup 2017 participaram velejadores de outras ilhas açorianas, um vindo da Madeira e outros de Lisboa. E houve quem tivesse vindo de França.
Na água, Horácio Marques, natural de Angra, colocou as bóias e Miguel Amaral, que veio de Lisboa, foi o juiz de regata.
O ex-oficial da Marinha Mercante com um espumante com o nome da embarcação
Rui São Marcos foi oficial da Marinha Mercante. Natural de Ílhavo, vive na Madeira “pontualmente, há 29 anos”. Com “mais de 80 mil milhas”, “quatro travessias do Atlântico” e “nove meses nas Caraíbas”, participa pela décima vez nesta prova da Ilha Terceira ao leme do barco “Quero-quero”.
O nome tem uma explicação. O primeiro barco que teve foi batizado de “Quero”, em Finlandês. O atual, na sua posse há 14 anos, ganhou direito a duplicação. Quando lhe perguntam o significado responde de forma matreira, entre sorrisos: “é uma abreviatura... tem a interpretação que quero dar no dia e na hora a quem pergunta”.
Sozinho, vindo do Funchal, Madeira, a 15 milhas de Angra do Heroísmo, o barco que “tem tudo, só não tem comparação”, mas avariou e meteu água. Obrigado a rumar a norte para ganhar rede e pedir ajuda, sem motor e sem instrumentos, foi rebocado até à marina. Ali, o “Quero-quero” foi arranjado em tempo recorde para participar na regata. A tripulação escolhida tinha um denominador comum: ninguém tinha experiência de vela. “Em vez de estarem a apanhar sol na praia, fazem-no aqui. E eu traduzo para linguagem terráquea o que devem fazer”, sublinhou antes da partida.
Depois de “50 anos de desconto” e com notória boa disposição que os quase 69 anos de vida permitem, olhando para trás recorda: “já bebi e fumei tudo na minha vida”. Depois de uma pausa, mais ou menos longa, recuando 18 anos, a uma noite de Natal em que se preparava “para beber leite ou água” e que provou um champanhe. “Soube-me bem”, e desde então acrescentou essa bebida a bordo. Orgulhoso, mostra a garrafa de espumante produzido na Quinta do Ortigão, prémio de melhor espumante nacional e que tem um rótulo com o nome da embarcação: “Quero-quero”.
O comandante Rui, um dos favoritos à partida, sabia que não tinha condições para ganhar com o vento de “3 a 5 nós”. Não se importou, mas lamentou a avaria na parte elétrica que não lhe permitiu celebrar condignamente a chegada com um copo de champanhe bem fresco.
O barco veio da Polónia. Entrou na água depois de 10 anos em Doca Seca
Olhando para os quase 40 barcos na água, o “Aloha II” era o mais “despido”. De tudo. Completamente “descascado por dentro”, destacava-se, no entanto, pela cor vermelha, muito viva, num casco visivelmente pintado de fresco. A explicação é dada pelo skipper, Pedro Cipriano, treinador e membro da direção do Angra Iate Clube.
“Foi um barco construído pelo governo polaco. Só há três no mundo com estas características, para fazer certas regatas e travessias do Atlântico”, explicou, fazendo referência às duas velas que denunciam o peso da idade e que ainda ostentam a publicidade a uma cerveja e empresa de telecomunicações daquele país da Europa do Leste. “Um polaco veio de Chicago para os Açores, vendeu o barco a alguém que só pagou o sinal. Pelo meio meteu-se uma disputa judicial, o barco esteve parado, em doca seca, ao abandono, durante 10 anos. Consegui comprá-lo, finalmente, num leilão”, continuou. “Foi amor à primeira vista”, garantiu.
Para se fazerem ao mar com esta embarcação de 40 pés e com um peso de 4900 kg foram necessários 15 dias e 15 noites em que Pedro Cipriano e a jovem e alegre tripulação puseram as mãos na massa. Com o sonho realizado, o “Aloha II” foi para a água pela primeira vez ao fim de uma década.
“É a prova que os barcos têm alma”, afirmou este homem do mar, de 42 anos, que ao lado do Nuno, do “Toni”, dono da empresa “Deep Blue”, um diving center, do Bruno e do João cortaram a meta em 2º lugar. “Se não fosse a manobra que fiz junto aos ilhéus e não teríamos conseguido”, recordou Pedro Cipriano.
Depois da auspiciosa estreia, para o ano prometem entrar no “Baiona - Angra Race”, a segunda edição de uma regata que liga a cidade espanhola à Terceira, prova que conta com a chancela organizativa do Angra Iate Clube e do Monte Real Club de Yates e que, de acordo com as palavras do vereador Guido Teles durante o jantar de encerramento da Angra Day Cup, “serve para aproximar politicamente as duas cidades”.
O francês que não tinha ninguém à espera e chegou a tempo de receber a medalha
Com velejadores açorianos, outro vindo do Funchal e uma tripulação (“O Carapau”) que velejou de Lisboa, na lista dos 37 inscritos havia nomes não portugueses. Entre eles, um francês, Michael Simoens. De passagem pela ilha com a família, pressionado por amigos, inscreveu uma tripulação. Ele e mais quatro.
No registo constava uma embarcação de nome “Tuuggy”, inscrito na classe Open. À hora da largada, por desistência dos restantes, apresentou-se sozinho num Optimist. Comparado com outras embarcações parecia uma caixa de fósforos ao lado de um fogão.
Sozinho, navegou, velejou, correu contra o tempo e a luz solar. Chegou, não tinha sequer uma bóia à sua espera, nem buzina a anunciar a chegada. Mas ainda foi a tempo de entrar na história da regata e receber a medalha alusiva da participação.
Às 21h00, 8 horas depois de se ter aventurado no mar para dar a volta ao ilhéu onde vivem as cabras, chegou a porto seguro e foi direto para o jantar de entrega de prémios. Visivelmente exausto, quase sem palavras, limitou-se a abrir os braços e a sorrir por ter participado nesta aventura.
“Mariazinha”. O barco que dá nome a troféu que será eterno
“Mariazinha”. Um nome incontornável a quem anda no mar naquelas paragens. A embarcação chegou dois dias antes da regata. Veio do Faial, Horta, parou na Madalena, no Pico, antes de atracar em Angra do Heroísmo, no porto das Pipas, Terceira. A bordo, o Manuel Goulart Nunes, o Zé, o Sarmento, o Luís, a "Xana" e a Mariana.
Lá dentro, durante os dois dias que antecederam a prova, o veleiro transformou-se numa autêntica sala de convívio e local de culto de partilha de histórias. Lapas, cracas, bolos de banana e chocolate, cerveja, vinho, tudo servia de pretexto para entrar a bordo e conversar. Horas a fio, desfrutando de uma amizade que os mares não separam.
“Devido à mudança, este ano, do dia da prova (de sábado para domingo) e a compromissos de parte da tripulação, infelizmente, o 'Mariazinha' não pode participar na regata”, explicou Manuel Nunes, patrão do barco que ostenta o nome da sua mulher e que desde que foi comprado, 2003, tem participado nesta prova. Somente falhou uma vez, embora estivesse em Angra e inscrito. “Com as festas sanjoaninas estávamos tão cansados”, sorri. “Este ano, embora soubéssemos que não iríamos participar, não podíamos faltar e viemos. A regata faz parte de nós”, assumiu.
Às 04h00 do dia de saída do 8 aos Ilhéus, o Rui, o Sarmento e o Luís partiram de regresso à Horta. Para trás ficou o Manel. “Vim à boleia no meu próprio barco”, riu. O “Mariazinha” chegou ao Faial sensivelmente à mesma hora que a embarcação “Açor” e o skipper João Leal cortaram a linha de chegada, pouco passava das 15h00, 2 horas e sete minutos depois do início da prova.
Manel ficou na cidade por uma boa razão, embora o próprio não soubesse. É que na entrega de Prémios aos vencedores, prémios feitos na Olaria S. Bento, única olaria tradicional da ilha, foi anunciada uma nova categoria a ser introduzida. Este ano, seguintes, até à eternidade. A “Mariazinha” dá e dará nome ao “troféu perpétuo”, um prémio que sairá da escolha dos skippers e que que representa o espírito desta regata onde impera a amizade e convívio entre todos. O troféu será entregue todos os anos à tripulação com maior espírito de camaradagem, competição e boa disposição. E este ano, como não poderia deixar de ser, o vencedor foi o Manuel Gabriel Goulart Nunes, armador do “Mariazinha”.
Com os prémios entregues, jantar finalizado, medalhas ao peito e troféus na mão, alguns dos participantes aviaram-se em terra para seguir por mar para casa. Durante a noite ou ao principio da manhã seguinte.
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