"Arriba, o vento está a rodar aqui um bocadinho...aí vem ele, deixa orçar, devagarinho, leme ao meio, deixa ganhar velocidade, não forces”.
Enfiado num bote, Pedro Pinto, treinador na Associação Naval de Lisboa (ANL), orienta três alunos: Felismina, Teodoro e Gonçalo. É, também, responsável, desde novembro, pela vela para pessoas com limitações e deficiência física da Associação Salvador.
Direciona a voz para um deles. “Podes orçar até teres as fitinhas na horizontal, isso mesmo, orça tudo Felismina...boa! Folga a (vela) grande, isso, está bom”, prega, em tom motivacional.
São 10h30 de uma segunda-feira de janeiro. Está sol e quase nenhum vento. O rio Tejo é um espelho que reflete as sombras dos cacilheiros que ligam Lisboa à Trafaria, a Trafaria a Lisboa, e dos três barcos da classe Hansa, que iniciaram um vai-e-vem costeiro entre a Doca de Belém, o Padrão dos Descobrimentos, a Torre de Belém, passando ainda pelo Terreiros das Missas, para regressar Doca de Belém.
Uma hora antes, Felismina, Teodoro e Gonçalo encaminharam-se para as três minúsculas embarcações fornecidas pela Associação Salvador, guardadas no “estaleiro” da Associação Naval de Lisboa.
A vela é uma das modalidades abraçadas pela Associação Salvador. No cardápio cabe também o paraciclismo, handbiking, crosstraining, ginásio e dança.
Felismina é biamputada. Recebe um empurrão para descer até ao pontão onde boiam os barcos. Não recorreu à ajuda da pequena grua e deslizou até entrar a bordo. Teodoro, amputado do joelho para baixo, deixa a prótese em terra e Gonçalo, um crente sobrevivente, ajeita-se a entrar no pouco mais de metro quadrado que acolherá também, mais tarde, o SAPO24.
O tridente saiu da Doca de Belém para o treino livre das quintas-feiras. Cumpre-se quase um ritual litúrgico: o domingo, é dia de competição. E dia do Carlos se juntar à equipa.
“Competem pela Associação Salvador (dinamiza, financia e identifica atletas) com as siglas da ANL, clube inscrito na Federação Portuguesa de Vela”, explicou Pedro Pinto.
Velejar não se resume à competição. “Qualquer que seja a idade e deficiência estamos capazes de metê-los dentro de água em segurança e com muitos benefícios. É desenvolvimento emotivo e físico muito positivo”, adiantou.
“O que o desporto me dá, é que me ocupa o tempo”
Teodoro Cândido é apelidado do campeão dos desportos. “Já fiz mais”, avisou, antes de acrescentar o que fez. “Fiz andebol, tive a sorte de ser campeão europeu, em 2019, a primeira vez de Portugal. Digo sorte, porque fui convocado e porque havia jogadores iguais ou superiores a mim”, reconheceu.
Embora parco em palavras, continuou. “Fiz ténis de mesa, fui duas vezes campeão nacional, Padel, duas vezes campeão e na vela é que sou mais fraquinho, mas também fui campeão em duplas, com o Pedro Reis”, sorriu.
Tropeçou na Associação Salvador há três anos. “Estava na vela adaptada em Cascais, acabou. Vim para aqui. Gosto de cá andar, embora já tenha estado para desistir e nada tem a ver com o treinador”, salvaguardou.
A verborreia assalta-o de forma incomum. Conta a sua história. “Tive a doença de Buerger. Aos 32 anos, fiz a primeira operação. Estragou-se uma veia, andei mais de cinco anos com veias plásticas e aos 38, cortei uma perna, abaixo do joelho”, recordou. “Tive a sorte de apanhar um médico que se interessou por mim”, sublinhou.
Ligado à construção civil, reformado aos 62 anos, hoje com 71, encontrou no desporto uma nova ocupação. “Estava naquela vida de reformado, deitado no sofá a ver televisão e vejo a chegada da seleção nacional de andebol. Nem sabia que havia andebol em cadeira de rodas. Juntamente com o meu rapaz mais velho comecei a pesquisar e vimos que havia essa possibilidade”, disse.
Em 2018, contactou a APD (Associação Portuguesa de Deficientes), em Lisboa. A decisão devolveu ao antigo juvenil do andebol do Sporting e sénior de clubes da Linha de Cascais (Parede e Costa do Sol) o prazer de voltar a sentir uma bola nas mãos.
Tendo rapidamente passado a duas. “Pediram-me para jogar basquetebol. Há muito deficiente, mas poucos a praticar desporto. É uma dificuldade enorme arranjar pessoas”, lamentou.
Está realizado nesta nova fase da vida. “Para já, o que o desporto me dá, é que me ocupa o tempo”, referiu. “Porque esta coisa de uma pessoa se reformar e depois não ter um ofício. O desporto é bom para isso”, confessou.
“Para mim, a morte é uma coisa absolutamente pacífica”
Gonçalo Pinto Gonçalves esteve “três vezes à porta da morte”. A vida à prova de bala deu à luz um livro de autor, intitulado “Abraço”.
“Sofri um desastre de mota. A 9 de julho de 2016 sofri um traumatismo crânio-encefálico e estive em coma quase quatro meses. A minha mulher, filhos foram avisados que podia acabar mal. Já tinha tido dois milagres e achei que tinha de escrever e contar a história aos meus filhos”, resumiu, dentro do minúsculo barco.
“Estive muito lá fora, não me lembro de nada e tive um acordar muito violento. Na cama do hospital, um dos meus filhos disse-me: “Pai, fomos campeões europeus de futebol. José Maria, isso foi quando, no fim de semana passado?”, perguntei. “Estamos em novembro”, respondeu ele. “Foi assim que soube”, sussurrou.
Pausa a fita da memória para explicar o que tem. “Não sei qualificar, não é doença, é uma incapacidade que se chama Gnosis. Com G, Gnosis”, soletrou. “Basicamente é quando o cérebro leva uma pancada forte e pode perder a capacidade de interpretar algum dos sentidos. Olfato, sabor, visão. No meu caso, foi o toque”, detalhou.
Viaja até à recuperação. “Não percebia porque é que as pessoas me tocavam quando estava na cama do hospital. Levei semanas a perceber o que era o toque. Um dia, traduzi o toque ... não estou a ser tocado, estou a ser abraçado. Isto é o modo que a minha família, amigos, colegas de trabalho, seja quem for, têm para dizer que gostam de mim. Percebi, assim, o que era um verdadeiro abraço”, pormenorizou.
“Objetivamente, sou cristão e um dia pensei: Oh Gonçalo, tu não deves ser um tipo mau de todo. Um dia que chegues ao céu, a última coisa que queres, e esperas, é que não te mandem para a porta ao lado. Esperas ser recebido por Jesus com um abraço para toda a eternidade. E isso, para mim, tornou a morte uma coisa absolutamente pacífica. Quando for, vou para melhor”, antecipa Pinto Gonçalves, num soluço silencioso.
A conversa flui pausadamente ao sabor do pouco vento. “Não sei para onde é que nós estamos a ir, mas pronto”, atirou. Seguimos o percurso à bolina até à Doca de Belém.
Já nas instalações da ANL, confessou. “Estou às portas da morte pela quarta vez. Não está no livro...tive uma leucemia, um tumor no pâncreas, e há seis meses foram-me diagnosticadas metástases no fígado”, revelou.
O novo infortúnio não o verga. “Já não quero saber. É o que Deus quiser, porque como disse, para mim, a morte é uma coisa absolutamente pacífica”, reforçou o velejador que começou a vela adaptada no Clube Naval de Cascais.
Regressa atrás no tempo. “Estava em Alcoitão quando me foram propor que fosse fazer vela em Cascais. A minha primeira resposta, foi não. Porque cresci e fiz vela em Cascais. E porque tinha o meu cérebro muito partido e não queria chegar ao meu clube de cadeira de rodas (na altura)”, lembrou.
“Estive em Cascais durante dois ou três anos, mas não correu bem. Porque perdi os travões sociais (sequelas no cérebro devido ao acidente) e, de vez em quando, saem-me umas bojardas”, alertou. Em Cascais, “não percebiam as dificuldades. Achavam que era só um tipo mal-educado”. Não era. Não é.
“Agora, tenho mecanismos de defesa e aplico quando percebo que estou a navegar em águas turvas e vai acabar mal. Levanto-me e saio. Porque, senão, vem aí um grito. Não é um grito que queira dar. É um grito que vou dar. Porque não tenho travões”, referiu o antigo engenheiro de telecomunicações, 61 anos, reformado desde os 57.
A viver à distância de um quilómetro da Doca de Belém, sede na ANL, certo dia, ligou para a Associação Naval de Lisboa. “Falei com o Eduardo Guimarães Marques, presidente na altura. Passados uns meses, telefonou-me. “Gonçalo, se quiseres vir, agora é a altura certa”. Estávamos, talvez, em 2021, não tenho a certeza, vim e não parei”, contou o velejador que representa a Associação Salvador/ANL.
“Essencialmente ... venho ajudar o Pedro, a Associação Naval e a Associação Salvador. E venho retribuir. Porque é a maneira que tenho de agradecer toda a ajuda que tive e me deram. E não foi pouca”, reconheceu.
Para as despedidas, decifra o nome da embarcação. “CHAN. Quer dizer: Costumeiro e Habitual Almoço de Natal. É grupo de amigos, começámos oito, agora somos cerca de 50. Há 30 anos reunimo-nos domingo anterior ao Natal para esse almoço”, clarificou.
“Somos nós, o mar, a água, o vento”
Felismina Gomes foi amputada dos dois membros inferiores devido a um acidente de trabalho, em dezembro de 2016. “Trabalhava na restauração e estava a fazer descargas para um batizado. Um autocarro da Carris, numa rua de sentido único, num sábado à tarde. Foi o que foi”, engoliu, em seco. “Agora é olhar em frente, olhar como o mundo tem imensas possibilidades para mim. E vivê-las”, elucidou.
Não esquece o período negro vivido. Partilha-o. Em 2017 e 2018 percorreu os corredores dos hospitais São José, Curry Cabral, Alcoitão, regressou para casa e mudou de casa por força da (falta de) acessibilidade.
“Achámos que não estávamos cá a fazer nada. E foi isso que me levou a um extremo grande, complicado. Valeram-me as minhas quatro filhas”, exclamou. “Achava que era um peso para todos, para a família, para elas. Ficava em casa, olhava para as paredes e aquilo não me dizia nada. Achei que, realmente, era melhor não estar cá”, disparou, sem tremer a voz.
A atividade desportiva na Associação Salvador entrou-lhe porta adentro. “O desporto, de facto, não era o meu projeto de vida, não fazia parte do meu ADN até ao acidente, mas veio dar-me uma esperança e fez-me ver que a vida continuava”, referiu.
“Com o desporto, hoje sou embaixadora da Associação, e com todo o apoio que recebi, sou hoje uma pessoa completamente diferente. Em tudo”, assegura.
Abre o coração às sensações de estar sozinha no Tejo. “É a maior dificuldade. E é desafiante, mas muito gratificante”, indicou passando o leme para o SAPO24.
A conversa decorre dentro da minúscula “caixa” de fósforos onde cabem duas pessoas. Segundo rezam as crónicas de velejadores, não vira. Confirmámos in loco.
Assumimos o controle da estai (genoa). “Somos nós, o mar, a água, o vento. O poder de controlo é o nosso, controlamos o barco, desafiamo-nos a nós próprios. Somos nós, sem qualquer tipo de impedimento”, catalogou. “Tudo se faz, desde que a nossa cabeça queira. Se quero, vou atingir. A força física dá-nos esta independência. E a força de vontade, que é a principal, também”, garantiu.
Felismina iniciou-se na vela há cerca de três anos. Fê-lo a seguir ao paraciclismo, a sua “grande paixão”. Já tinha experimentado em Alcoitão, “numa brincadeira” com um grupo da Associação. Colocou as mãos nas handbikes, “comecei a gostar cada vez mais e a querer realmente fazer disto um mote”, finalizou.
Despediu-se, sabendo que, dentro de umas horas, nos reencontraríamos.
“O desporto sempre foi uma aposta da Associação”
Encontrámo-nos noutro local, no Estádio 1º de Maio”, em Lisboa, noutro desporto, paraciclismo, debaixo do mesmo elo, a Associação Salvador.
Ao final do dia, às 17h00, Felismina é acompanhada por Lurdes e José. E Ester Rosa.
“O desporto sempre foi uma aposta da associação. Já tivemos várias modalidades desportivas e fomos especializando, sobretudo, naquelas em que sentimos que há mais falha”, contou Ester Rosa, coordenadora de projetos da Associação Salvador, 10 anos feitos numa casa que já dobrou duas décadas durante as quais apoiou mais de seis mil pessoas na promoção da inclusão de pessoas com deficiência motora.
“Por exemplo, já tivemos surf, mas começámos a perceber que havia muitas outras entidades a fazer o mesmo. Vamos onde fazemos mais diferença e mais falta, onde não existe”, salientou a responsável da associação fundada há 21 anos por Salvador Mendes de Almeida, que estima ter produzido um impacto de mais de 10 milhões de euros na sociedade, substituindo-se ao Estado na promoção da inclusão.
Pega no fio e dá lastro ao pavio. “Na dança, o que nos distingue é que não fazemos casting para entrar, não temos esse objetivo de ter pessoas altamente funcionais a fazer espetáculos. Aceitamos qualquer pessoa e, através de um movimento e da socialização, trabalhamos uma série de aspetos e fazemos atuações”, acrescentou.
“No paraciclismo, deve ter uns sete ou oito anos, a competição começou mais recentemente, há também uma diferenciação face a outras entidades. O nosso clube de paraciclistas é o maior a nível nacional, temos seis paraciclistas a competir e conquistámos, este ano, 42 pódios só no paraciclismo. E dois na vela”, informou.
“É uma aposta e gostávamos de conseguir captar mais atletas para estas modalidades, para o ginásio e para dança, porque temos capacidade para mais”, mencionou.
“O desporto é, muitas vezes, uma porta de entrada para outros projetos da associação, outros voos, como emprego, respostas e apoios sociais”, aludiu. Este visa já colocou 462 pessoas com deficiência motora no mercado de trabalho, anunciou a Associação Salvador no Dia Nacional das Acessibilidades, no passado mês de outubro.
“No âmbito da academia, outro projeto, temos formação para professores. Através dessa formação capacitamos os professores a estarem mais confortáveis e confiantes a falar sobre o tema da inclusão nas escolas e a incluir pessoas que tenham algum tipo de condicionamento, motor ou não”, citou.
“Levamos testemunhos de pessoas, falamos sobre o capacitismo, discriminações que temos de conhecimento, como as evitar, falamos sobre vários temas, mas sobretudo é importante trazer o tema para cima da mesa, que não seja falado tão tarde”, concluiu.
“Quero tornar-me atleta e vou dar o máximo”
Ester esgotou o tempo de antena e cede o palco aos atletas.
O treino de uma hora no tartan foi supervisionado por Moisés, um dos dois treinadores do dia, de uma equipa de quatro.
Informa que os seus pupilos fazem tudo, à medida das capacidades. “Alguns dos nossos estagiários ficam fascinados por ver os atletas a fazerem burpees. “Fazem, de forma adaptada, mas fazem. Dançam? Dançam. E até já fui responsável por uma aulinha de zumba. Basta ter criatividade e coração, tudo é possível”, assegurou.
Felismina chega de cadeira de rodas, Lurdes tem uma bota especial e José caminha amparado em duas canadianas.
José tem um passado de futebol amador. Começou na hidroginástica e mergulhou no handbiking. Foi convidado por Maria Inês, treinadora.
Sofreu uma “queda aos sete anos” de que resultou “uma malformação” e diversas operações mais tarde. Nunca perdeu a determinação. “Sempre gostei de me desafiar. Se me deixa confortável, não gosto”, desabafou.
Puxar pelas rodas “não me chamava a atenção”, anotou. Rapidamente, mudou. “No primeiro dia, esqueci-me de tudo. Fiquei muito cansado, sem ar”, recuperou. “Mas, quando fui para casa, senti-me bem. E comecei a musculação”, notificou. O poder de fogo nos braços é elogiado por Moisés, treinador de serviço.
A trabalhar num supermercado, sopra para o ar um desejo: “quero tornar-me atleta e vou dar o máximo”, asseverou.
“Os meus colegas dizem agora: a Lurdes já ri”
Lurdes ajeita a licra, veste um casaco e chega-se à frente antes de dar voltas sem fim à pista de atletismo. “Sofri um acidente, em 2018. Seguia de bicicleta e alguém, apareceu a correr, bateu-me e o pedal esmagou-me o pé”.
Ressuscitou na memória o fatídico dia. “Tive uma fratura completa do calcanhar. O pé não funciona e qualquer coisa parte logo. É um pé não funcional”, descreve.
“Estive quatro anos em depressão, isolada sem sair de casa, sem conviver”, reviveu. “Até que descobri a Associação Salvador através do psicoterapeuta e quando vi pessoas piores que eu e conseguiam fazer desporto, naquele momento o feedback daquelas pessoas mudou completamente a minha vida”, atestou.
Informática de profissão, praticava meias-maratonas. Renasceu com o desporto adaptado. “Quando estamos em depressão, só vimos aquilo que não conseguimos fazer”, clarificou. “O desporto tirou-me da depressão. O desporto é um antidepressivo”, fixou.
O acidente puxou-lhe o tapete, mas um email para a Associação mudou-lhe a vida. Reaprendeu a sorrir. “A Associação Salvador fez-me sair de casa e os meus colegas dizem agora: a Lurdes já ri”, gracejou, despedindo-se antes de pedalar com as mãos.
Comentários