Boxe. Nas linhas que se seguem vamos falar de boxe amador. “...Plim...”, coloque na cabeça este som de uma campainha que dá início a uma viagem ao contagiante mundo deste pugilismo longe dos holofotes da fama. Sim, leu bem. Não escrevemos, propositadamente, a palavra, “violento”. Tentaremos explicar porquê. Porque foi isso mesmo que nos mostraram. Já vai saber onde.
Como nota de introdução, comecemos com uma pergunta. Que outro desporto conhece em que, durante três minutos, multiplicado por três ou mais períodos, homens e mulheres, rapazes e raparigas, sobem ao ringue, cumprimentam-se, olham-se, estudam-se, dançam, de um lado para o outro, recuam e avançam, num bailado quase coreografado, esquivam-se, baixam-se, desferem golpes e murros, à zona lombar, cara ou ao queixo, com a mão esquerda e a mão direita, uns atrás de outros, potentes e rápidos, procurando encostar o adversário às cordas, colocá-lo KO, por vezes, cospem sangue e que, sem direito a golpes baixos, a cada interrupção do árbitro, pedem desculpa e encostam as luvas, e no final, quando soa o último toque da campainha ou quando o juiz põe fim ao combate, dão um abraço, um forte e sentido abraço, revelador do mais puro respeito mútuo, juntando os amassados corpos que segundos antes encaixaram múltiplos golpes?A resposta é simples e está no inicio deste parágrafo: boxe.
Nesta altura, alguns de vós saltam para a discussão e trazem outros exemplos de desportos, outros não baixam a guarda e continuam a pregar com a palavra violência. Certo, para os primeiros, nada mais errado, para os segundos.
Rapidamente. Reconheçamos, há outros desportos de combate que partilham o espírito da centenária modalidade. Sim. Quanto a apelidar o boxe de desporto violento, quem está neste mundo contrapõe com uma resposta de quatro letras apenas: arte.
É uma arte. Dura, sim. Com dor, sim, mas digna e nobre. E quando se fala de arte, não se resume à que é mostrada, por exemplo, no cinema, em filmes de boxe e sobre boxeurs. Quem não se lembra da sequela de “Rocky”, de Touro Enraivecido, Raging Bull, no original, The Boxer, Ali, The Champ, Million Dollar Baby. Ou, falado em português, o documentário Belarmino e, mais recentemente, de São Jorge, filme que espreita a modalidade. Quase todos retratam o mesmo, a superação versus solidão, em que por norma, a ascensão social e económica se faz por via de um par de luvas.
Mas deixemos de lado essa análise sociológica. O que descrevemos antes foi presenciado num evento de boxe amador. Boxing Battle (ok, o nome até não ajuda nesta demonstração de que estamos na presença de uma arte), uma coorganização que reuniu dois clubes de Lisboa, o Rounds Academy, de Campo de Ourique, e o Águias da Musgueira, bairro na zona norte da capital, apelidada de Alta de Lisboa.
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Juntos levaram à Escola Secundária Josefa D’Óbidos, em Campo de Ourique, 10 clubes - Rounds Academy, Águias da Musgueira, Privilégio Boxing Club, Sporting, Belenenses, Outurela, Paço de Arcos, G.C. Corroios, Liberdade e Mira Sintra – que protagonizaram 14 combates e leveram 28 atletas no ringue.
Mais que um desporto. Uma arte onde se respeita e se é respeitado
No boxe quase tudo é ruído. Mesmo quando se devia pedir silêncio naqueles três minutos que parecem horas. Há sons dos golpes. Da respiração e da dor que se manifesta a cada soco. Da campainha, da voz dos juízes e do público que entra no combate com gritos de incentivo numa catarse conjunta como fossem uma extensão do próprio atleta. E a música do DJ.
Tudo começa no balneário. Onde cabe uma equipa que pode ser mista. Homens e mulheres, rapazes e raparigas, de vários pesos e idades, um variado cocktail de proveniências e motivações, que tem no desporto de punhos cerrados o denominador comum. Há aqui uma espécie de partilha, de cumplicidade entre todos que se consideram elementos de uma família unida à volta de um par de luvas.
Na visita aos espaços reservado ao Rounds Academy e do Águias da Musgueira, poucas diferenças se notam, apesar dos diferentes “pedigrees” de quem combate. Ligaduras enroladas minuciosamente à volta do punho e mão. Vaselina besuntada na cara. Com os movimentos “sombra” ensaiam golpes: “diretos” (golpe rápido e forte), “gancho” ou “cross” (potentes e rápidos, em rotativa, à cara ou tronco), os “jab” (frontal desferido com a mão que está à frente na guarda) ou o “uppercut” (que podemos traduzir literalmente no murro nos queixos com um movimento de baixo para cima).
O período de espera e ansiedade termina no ato de calçar as luvas. Seguem-se palavras de incentivo mútuo dentro daquele espaço exíguo. Gritam juntos. Num lado, João Bastos, 42 anos, treinador e responsável do clube de Campo de Ourique; na porta em frente, Carlos Morais, franzino treinador do Águias, ex-campeão nacional, na categoria de 56 kg, que apesar dos 39 anos mantém o ar de “puto reguila” de quem passou muitos anos entre cordas. Ambos dão as últimas notas a quem está a segundos de saltar para o ringue. E aproveitam para dar explicações a quem está de fora.
“Promovemos o boxe apostando muito na relação interpessoal”, começa por dizer João Bastos, responsável do Rounds Academy, um projeto com dois anos de existência. “O nosso objetivo é destruir estigmas e mostrar a modalidade tal como ela é, nada mais nada menos que nobre”, sublinha.
Carlos Morais, treinador do popular Águias da Musgueira, reforça que “é sempre um desporto de combate”, mas que no boxe amador “há humildade e amizade” e, no final, “há o abraço”. E até se necessário “tomam banho juntos”. Não hesitando em falar do “seu bairro” e dos “problemas que “existem em tantos outros”, procura “modificar os olhos de quem vê o boxe como desporto de arruaceiros”. Nascido e criado na Musgueira Norte, acrescenta que “não é um deporto de bairro nem de quem trabalha à noite”. Antes é “uma arte em que se ensina a viver em paz, em que se é respeitado e se respeita o próximo”.
E respeito tem de ser para dentro e fora do ringue. Paulo Oliveira, treinador de kickboxing do Rounds Academy alerta que dão importância “à escola e ao trabalho” dos atletas. E não hesita em “pôr de castigo quem merecer”.
A subida ao ringue. No canto encarnado e no canto preto
É chegado o tal momento. Para muitos o desfile é o clímax que se atinge depois de dezenas de horas, dias a fio, a treinar no duro. Uma intensidade solitária.
Sim, o boxe é solitário. Nos treinos viramos a força interior para os sacos de boxe ou para o corpo contra quem treinamos, “sacos humanos”. No ringue, o pugilista está sozinho, corpo e mente, enquanto os ouvidos tentam apanhar os gritos dos treinadores que dão a tática naqueles três minutos que parecem uma eternidade.
“O planeamento do treino nas quatro semanas que antecederam o evento foi muito individualizado e passou por treino técnico e físico, alguns dos atletas treinaram de seis a dez horas por semana distribuídos na grande maioria em treinos bidiários de 30 a 60 minutos”, esclarece João Basto.
O ator e comediante Salvador Martinha, padrinho do evento, entra em palco vestido a rigor ao som de “Rocky”. Há gritos de “força Musgueira” e pompons no ar com as cores do Rounds. Outras “claques” de apoio não ficam atrás, embora em menor número.
O Mestre de Cerimónias do Boxing Battles, Mr. Speaker Freitas, o "Bruce Buffer" português, apresentou-se vestido de kilt escocês, camisa branca e sem direito a meninas vistosas ao seu lado com a placa na mão a anunciar o número de “assaltos”. Arrastando a voz, apresenta um a um os pugilistas que sobem ao ringue, perante os gritos do público presente, mais de 300 pessoas, diga-se.
Chamados por categoria e peso, os atletas entram no tapete onde tudo acontecerá. Antes, elementos de cada uma das equipas levantam as cordas do ringue para a passagem. Um vai para o canto encarnado, o outro, para o lado oposto, de cor preta. Há tímidos pulos, como se saltassem à corda, uma espécie de dança, movimentos “sombra” e o pescoço mexido vezes sem conta de um lado para o outro.
Em palco, trocam cumprimentos. Cada qual no seu canto, ouvem as últimas palavras dos treinadores, colocam boqueira ou proteção facial, vão até ao centro, param, escutam o árbitro, olham uma última vez um para o outro e tocam com as luvas.
“Oh Bernardo....sai das cordas”
“Prim” escuta-se a campainha. Começa o combate. Escuta-se a pancada no corpo alheio. Os passos de um lado para o outro. “Fuuu...fuuu...” da respiração.
No Boxe, apesar do bailado entre os artistas, quem está de fora não o vive como se estivesse a assistir a uma ópera. Participa. O barulho é, por vezes, ensurdecedor. E o volume aumenta a cada murro. “Puto...cabeça...olha para ele”, grita quem está de fora. Desvia-se e também desfere golpes. Mexe-se. Sente dor e pede, de braços levantados, quase em jeito de clemência alheia: “oh Bernardo...sai das cordas”.
Bernardo tem 15 anos. É da Musgueira. Há dois anos, entrou no boxe pela “mão de amigos” e fica enquanto “gostar”. Quem não gostou de início foi o pai. Deixa claro: é isto que “quero fazer”. Não foi feliz neste dia... “perdi”, diz encolhendo os ombros.
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Outro artista. É a vez de Albertino Monteiro, 24 anos, “Tino”, como é tratado, porque no boxe quase todos têm uma alcunha. Veste as cores do clube que mora em Campo de Ourique. Depois do Karv Maga, kickboxing e do boxe sonha com o MMA. Treina “todos os dias” e trabalha na loja da Samsung, no centro comercial Colombo.
Os combates decorrem. O árbitro, de laço preto, vestido todo de branco, o que confere alguma pureza, digamos, anda em constante rodopio a soprar aos ouvidos dos atletas. Está sempre pronto a entrar em ação. Mal interrompe, os atletas afastam-se e ninguém contesta. Há respeito.
Os treinadores batem com as mãos no ringue. A boca e olhos estão muitas vezes colados às cordas. No ringue, quem combate protege a cara, as luvas servem de airbags ao impacto de uma mão alheia. O movimento é constante. Procuram desviar-se, quase ao limite do contorcionismo corporal, enquanto respondem em ataques potentes e fulminantes. Ataque-defesa, numa luta até à exaustão, agarram-se, por vezes, num abraço cúmplice. E respiram. “Ahaaaa...”
Ouve-se a campainha. Cada um dos boxeurs segue para o canto onde recupera forças. Uma cadeira sobrevoa as cordas e aterra dentro do ringue. O atleta, ofegante, sentado, pernas esticadas em cima das pernas do treinador que está cócoras, escuta-o. Outro elemento da equipa limpa-lhe o rosto. Já de pé, outras mãos puxam-lhe os calções, enquanto aquele que limpou o suor faz um movimento de ventoinha com a toalha. Água para a boca. Quase a conta-gotas. Parece um carro de F1 na box.
Corpos recauchutados. “Musgueira olé…”, gritos quase que impedem de ouvir o recomeço do combate.
“Maria...Maria...Maria”
O boxe não é um feudo de homens duros e musculados. Hoje, há cada vez mais miúdas e mulheres de luvas calçadas e calções dois números acima do recomendado. Carlos Morais é responsável por uma equipa feminina no Águias da Musgueira. Entre as pupilas, Maria Antunes, ou “Nela” nome de combate da “guerreira” de 33 anos.
“Não tinha nada para fazer e há dois anos entrei no mundo do boxe”, recorda. Vive perto da Musgueira. Elogia o ambiente vivido ali e os amigos e conhecidos que “são uma família”. Mãe solteira, a filha de 13 anos “não vê os combates”. Treina duas horas por dia depois de 8 horas de trabalho, numa pastelaria, de segunda a sábado.
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“Maria...Maria...Maria...”. Os gritos femininos, agudos, são o doping de quem se prepara para o primeiro combate do resto da sua vida. Maria do Mar Cavaleiro representa o Rounds Academy. De sorriso fácil e contagiante, cumprimenta com um beijo só. Estudante na Escola António Arroio, em Lisboa, conta que tudo começou em novembro de 2016. Com karaté no curriculum “necessitava de algo mais físico com mais contacto. E por isso vim para o boxe”. Reconhece que “nunca foi muito rapariga”. Fez ballet, mas quer dançar no ringue e “para sempre”. Com a vitória em mão sai debaixo de aplausos a caminho do balneário, não sem antes agradecer à equipa, masculina, que a acolheu "como um deles”, sorri.
“Nunca me chamaram pai”
O boxe é um desporto solitário. Mas porque opõe um lutador contra o outro necessita de alguém que julgue a ação dos dois. Paulo Ferro, 51 anos, é árbitro. Juiz como se apresenta. Explica que há três, um no ringue e outros fora dele. Rodam entre si.
Soma 521 combates amadores e três profissionais, mas “não tem interesse” nesses últimos. Ex-praticante no extinto clube Lisboa Rio de Janeiro, tem como função gerir “a não violência” entre dois indivíduos e tentar “fazer com que cumpram as regras” diz. Sobre as palavras que dirige segundos antes do combate desvenda: “Quero um boxe limpo” se não têm de ouvir a palavra “stop”, que é nem mais nem menos a que mais vez repete a cada três minutos de um “assalto”. E quando toca a palavras há uma que nunca ouviu. “Nunca me chamaram pai”, numa alusão à ainda pouca compreensão do público quando chega a hora de levantar o braço do vencedor.
E é esse o momento do epílogo. Se não houver KO, com o combate terminado, cada um dos pugilistas recolhe ao local onde tudo começou. Vão para o seu canto. Encarnado ou o preto.
Treinadores e demais, uns ficam agarrados às cordas, outros saltam para dentro do ringue. Os boxeurs desenrolam as fitas, com a ajuda de um elemento da equipa, num movimento sincronizado em que um recua de braços esticados enquanto o outro segura, parado. Tiram as luvas.
Os juízes reúnem e decidem. De mãos dadas, árbitro e atletas, um só braço será levantado. No público há gritos de vitória e outros que refilam. Naquele quadrado, os atletas abraçam-se uma última vez. Um abraço de respeito mútuo e admiração.
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