Chove. É agosto, mas o verão pôs-se escondido por cima das nuvens. Na avenida da Boavista, no Porto, o outono acampa como se de férias para aqui tivesse vindo. Numa transversal desta via, está a D20 Sports, a empresa de Deco, o jogador que nasceu Anderson, no Brasil, e conquistou a camisola 20 da seleção portuguesa.
Anderson Luiz de Souza, ou Deco, foi um dos mais importantes jogadores portugueses no início deste século. Marcante nas Antas, velhinha casa dos Dragões, naturalizou-se português e foi um dos obreiros da seleção da esperança que viu o sonho derrubado na final do Euro 2004.
O "mágico" atravessou o Atlântico para jogar no SL Benfica, mas foi a norte, no Salgueiros, que despertou para o sonho do FC Porto. Depois do Euro, saltou para o Barcelona. Ajudou os catalães a subir ao estrelato — e a RTP até lhe chamou “Conde de Barcelona” — mas o marasmo nos resultados motivaram a partida para o Chelsea. "Não quero estar onde não me querem", afirmou na altura ao diário desportivo catalão ‘Mundo Deportivo’.
661 jogos e 101 golos depois, Deco pendurou as botas. Sair, ninguém quer, mas o corpo do internacional português acusava o esforço: "Já não estava a ser feliz, estava a ter lesões", admite o jogador.
Do início da carreira e da chegada a Portugal, à saída do FC Barcelona e fim da vida de atleta, o mítico dez dos Dragões fala com o SAPO24 daquilo que é ser jogador de futebol: as pressões, as responsabilidades — e o futuro que é incerto para todos: joguem no Real Madrid ou no Feirense.
Deco colecionou taças, ligas e honras em quatro países. Mas voltou para a beira do Douro. Hoje, vive no Porto. Representa outros jogadores, pondo em prática o que aprendeu com Jorge Mendes, o agente estrela. Em setembro vai a Oeiras para a Soccerex Europe.
O antigo internacional português e atual representante de jogadores junta-se ao agente do internacional alemão Mesut Özil, Erkut Sögüt, ao CEO da Prime Time Sport, Esteve Calada, e a Andrew Orsatti, representante sénior da FIFPro. Os quatro vão integrar o painel dedicado ao tema “Football’s Changing Transfer Market”, moderado por Daniel Cravo, senior partner da Cravo, Pastl & Balbuena. Deco vê no evento que decorre no Oeiras Valley, nos dias 5 e 6 de setembro, uma oportunidade para pensar o futebol para lá do ruído dos jogos e dos valores das transferências.
A viagem pela história do emblemático 10 dos Dragões arranca num Bonfim que não é no Porto (mas no Brasil) e termina em Oeiras. Pelo caminho, Camp Nou, Antas, Luz — e, claro, Alverca.
“Os miúdos até uma certa idade deviam jogar sempre”, disse ao Porto Canal. O que é que a pressão da vitória faz a um jovem?
O problema é que muitas vezes temos treinadores jovens que têm as suas ambições — o que é natural — de treinar equipas grandes e isso de alguma forma fá-los acreditar que vencendo, ganhando campeonatos vão-se promover.
Acabam por, de alguma forma, não dar a atenção devida à formação. Tal como sabemos, o futebol é um mundo competitivo, ninguém tem dúvidas disso. Mas um jogador em formação está a fazer isso mesmo: formação. O talento existe, mas o processo varia muito. Então, se eles não jogarem, se não competirem, acabam até por desistir numa idade muito jovem. Acabamos por perder alguns jogadores com talento por uma questão destas, por privilegiar-se a competição, o ganhar, o vencer.
Não sei, não sou especialista, mas acho que devia existir, até uma certa idade, alguma obrigação de os jogadores participarem mais — porque há miúdos que passam um ano inteiro sem fazer um minuto em campo e isso não é bom.
Recuemos aos tempos do Bonfim, como é que a bola lhe chegou aos pés?
Acho que todos os jogadores passam por ser crianças e gostar de jogar futebol, ter o sonho. No meu caso não fugiu muito a qualquer criança.
Ainda jovem, passou pelo futsal. O que é que trouxe do futsal para o futebol de onze?
Primeiro, o controlo e a forma de controlar [a bola] — a reação rápida do futsal dá-nos muito isso. E dá também outra coisa: participar no jogo o tempo todo, porque tenho de estar atacando, defendendo, participando no jogo, que é uma coisa dinâmica. E também o raciocínio rápido, acho foi isso que o futsal me trouxe.
Deixei de jogar futebol de onze por um tempo, por uma questão não tão boa: depressão, porque não aceitava não jogar. Era muito novo, daí que sempre falo que essa pressão que existe hoje sobre jogadores de 13, 14 ou 15 anos é muito grande. A adolescência é uma fase de transformação e muitas vezes é-lhes colocada uma pressão exagerada numa fase em que a vida ainda não é para isso — uma fase de diversão, de descoberta, conhecimento.
Cada vez mais cedo se procura o jogador do futuro quando ainda não tem idade para isso.
É importante um jovem jogador experimentar outros desportos para além do futebol?
Acho que sim. Há um grave problema, mesmo em idades jovens, que é os jogadores treinarem e depois chegarem aos jogos e não entrarem em campo. Acho que isso é ruim. Nalguns desportos sei que são obrigados a jogar todos.
Hoje, cada vez mais cedo se procura o jogador [do futuro], quando ainda não tem idade para isso. Pelo que, de alguma forma, acho que é bom: acho que [o jovem] tem de se divertir, desenvolver a capacidade motora, por isso é bom praticar outros desportos.
O Deco está fora de casa desde os 12 anos. Como é esta independência precoce?
Quando dá certo, toda a gente diz que é bom. Quando dá errado, vamos criticar. No fundo, tem de haver um equilíbrio — é óbvio que para a criança é bom estar com os pais, porque é sempre bom ter uma estrutura familiar por perto o maior tempo possível.
Mas isso não quer dizer necessariamente que esta proximidade tenha de ser física. Você pode não ter os seus pais perto o tempo todo, mas eles serem na mesma pais presentes, pais que de alguma forma atuam.
Se hoje os clubes estão muito mais estruturados, têm infraestruturas melhores do que aquilo que existia no passado para um jovem ficar. Mas os pais têm de estar atentos a isso: onde os filhos estão, a forma como estão. No fundo, serem presentes, mesmo que não estejam ali no dia-a-dia.
A criança não tem obrigação de ser jogador: tem obrigação de se divertir.
É óbvio que alguns jovens se podem dar ao luxo de jogar ao pé de casa — quem é do Porto e joga no FC Porto acaba por ter essa vantagem. Outros não são, vêm de fora, de cidades sem clubes grandes ou importantes.
Para mim, sair de casa era uma necessidade: vivia numa cidade pequena e não tinha nenhum clube. Quando comecei a crescer e a ir para outros clubes importantes, como o Guarany, que já não eram perto de casa, foi uma decisão que tive de tomar.
Numa situação dessas, é mais fácil correr mal, ou correr bem?
Depende muito da estrutura do clube, da estrutura da família. Depende muito também da expectativa que se cria em função da criança. Acho que a responsabilidade é importante, seja lá em que idade for — porque se sai de casa tem de fazer as coisas bem feitas.
Mas a pressão é prejudicial. Porque a criança não tem obrigação de ser jogador: tem obrigação de se divertir e de ser responsável. Porém, às vezes se põe uma pressão muito maior do que aquilo que já é o dia-a-dia — porque já existe pressão no treino, pressão do treinador, pressão de ganhar...
A única coisa com que fiquei chateado foi não saber a verdade.
Como é, depois, atravessar o Atlântico e ir parar ao Alverca, quando o sonho seria o Benfica?
Num primeiro momento foi uma frustração, mas depois percebi que talvez fosse mais uma ilusão da minha cabeça, pensar que viria do Brasil — apesar de estar no Corinthians, um clube grande — para jogar diretamente no Benfica.
Talvez quem trabalhava comigo, no caso os meus empresários daquele tempo, poderia ter dito a verdade. Não teria tido problema nenhum, era uma questão de escolha ou não. A única coisa com que fiquei chateado foi não saber a verdade.
É importante fazer esse caminho de passar por uns clubes pequenos primeiro antes de passar para os grandes? Ou não há problema em escalar logo?
Não sei. Cada um tem a sua história, a sua formação. O jogador de um clube grande talvez não passe por isso. Eu acho que, no fundo, o mais importante é jogar. Porque você só evolui com o jogo; só evolui com a competição. E acho que é importante que os jogadores vão evoluindo o seu grau de dificuldade com o tempo — isso é o que faz, depois, você jogar em alto nível. Se está num clube grande mas não joga, isso talvez — passados dois, três anos — não seja bom. Talvez seja melhor jogar, querer evoluir e crescer.
Como é que depois passa do Alverca, do Benfica, para o Salgueiros?
Eu saio do Alverca e, aí, o Salgueiros compra-me no Brasil. Passados seis meses, estou no Porto.
O FC Porto foi o clube mais importante em que eu estive.
Chegando ao Porto, à cidade, estava já mais perto do FC Porto. Na altura as Antas já eram um sonho?
Na altura não. Na verdade, quando estava no Salgueiros, fui ver um jogo nas Antas e foi meio que paixão à primeira vista. No fundo, a partir dali, eu sonhei jogar no Porto — achei o estádio fantástico, o ambiente, os adeptos... E foi um pouco isso. Óbvio que, quando venho para o Salgueiros, não imaginava. Fui ver um jogo por ver — como um fã, um adepto. E foi a partir daí.
O que é que o FC Porto significou na sua carreira?
O FC Porto foi o clube mais importante em que eu estive. Foi o clube onde eu estive mais tempo. A minha relação com os adeptos foi muito, muito forte; e a minha relação com o clube, com o presidente.
Vivi momentos bons, momentos maus e, no final, a história foi uma história bonita. Apesar de ter jogado no Barcelona e de ter tido sucesso também, talvez o FC Porto seja o clube com o qual eu sinto uma ligação muito maior em todos os sentidos.
E o que é que há de especial no clube?
Para mim, muita coisa. Óbvio que cada um tem a sua história, a sua ligação, a sua forma de ver as coisas. A minha foi em função disso, de tudo aquilo que eu vivi — não só por ganhar coisas importantes, mas enquanto jovem, enquanto homem, em todos os sentidos. Foi fundamental, para mim, o que vivi no FC Porto — para toda a minha vida, a minha carreira, inclusive a minha vida depois. Enfim, uma série de coisas. Agora, o contexto de hoje é diferente? Não sei. Por isso é que eu falo só daquilo que vivi lá.
Eu cresci no FC Porto.
E a cidade? Porquê regressar, já depois da carreira de futebolista?
Gosto muito da zona onde vivo hoje, na Foz Velha, aquela parte do rio. O Porto tem essa ligação com o Douro que é uma coisa muito bonita da cidade, poucas no mundo têm essa ligação tão forte, pelo que toda essa zona para mim é muito bela. A vista de Gaia para o Porto é espetacular.
Não sei o que é melhor ou não, mas há partes que são mais especiais que outras. Adoro a cidade, tenho os meus amigos aqui. Alguns dos meus filhos nasceram aqui e vivemos bem aqui. É uma escolha pessoal, que não tem nada a ver com o trabalho.
Quando chegou ao FC Porto, já havia o Deco ou ainda houve espaço para crescer e para aprender coisas novas?
Eu cresci no FC Porto — foi aí que eu evoluí, foi aí que eu cresci, foi aí que eu joguei, foi aí que ganhei coisas. Em todo o lugar onde se chega, buscam-se coisas novas, evoluir e crescer, em função dos jogadores que você tem e dos treinadores.
De onde vieram as principais inspirações e influências?
Depende da fase, do momento. Quando era novo, tinha alguns jogadores de que gostava: o Zico, o Maradona... São jogadores que eram uma inspiração. Depois, com tempo, já jogando e vendo os outros jogadores, via jogadores que não eram uma inspiração, mas que me impressionavam e dos quais gostava. Quando era mais jovem, tive só esses dois.
E o que é que se tira dessas inspirações? Tenta imitar os jogadores em campo?
Não, talvez em campo não; mas talvez alguns exemplos, alguma forma das botas, alguma forma de marcar um livre... Qualquer jovem se inspira nos seus ídolos — de alguma forma, é uma coisa que há em mim e em todos.
O Ronaldinho era um jogador completamente diferente.
Já agora, qual foi o melhor jogador com quem partilhou balneário? Ou aquele de que mais gostou?
De todos os jogadores com quem joguei, tem sempre aqueles que acabam por se tornar amigos, como é o caso do Maniche, do Jorge Andrade; do Puyol e do Sylvinho no Barcelona; e do próprio [Cristiano] Ronaldo.
Enfim, tem uma série de jogadores com quem você acaba por criar uma relação não só do dia-a-dia, e acabam virando amigos.
Agora, talvez o jogador que mais me impressionou tenha sido o [Ronaldinho] Gaúcho, porque fazia coisas... Não era tão eficaz, tão determinante, mas era um jogador completamente diferente.
Porque tinha duas coisas que hoje não é fácil ter: uma capacidade técnica muito acima da média e, depois, quando estava bem, nos momentos bons, tinha muita força e conseguia colocar isso tudo nas ações que fazia.
Aquele jogo contra a SS Lazio, o 4-1, é um daqueles que não queria que acabasse.
Ao longo da carreira, foi parceiro de meio-campo de vários jogadores. Destas duplas, qual foi aquela com que mais gostou de jogar: Costinha e Maniche ou Xavi e Iniesta?
Talvez Costinha e Maniche, porque foi com quem joguei mais tempo. O Xavi e o Iniesta variavam muito: umas vezes não jogavam, ou o Iniesta jogava do lado do campo. O Xavi esteve, também, durante muito tempo lesionado. Então, Costinha e Maniche foi [a dupla] com que joguei mais tempo — e, talvez, aquela de que eu mais gostei porque a função de cada um encaixava muito bem.
Como é que se define um jogo de que se gosta?
É difícil escolher um jogo, ainda para mais quando passei por muitos momentos importantes, em vários clubes. Se escolhesse um jogo do FC Porto, deixava de escolher um do Fluminense FC, um do FC Barcelona ou da seleção... Enfim.
Quando você sai do jogo com a sensação de, além de o resultado ter sido bom, é óbvio, ter desfrutado do jogo, sai feliz porque as coisas lhe correram bem, não só a nível pessoal, mas a nível coletivo. Acho que talvez seja essa a satisfação: aqueles jogos que não queríamos que acabassem.
No FC Porto vivi isso, aquele jogo contra a SS Lazio, o 4-1, é um daqueles jogos que se calhar não queria que acabasse.
Na seleção talvez escolhesse um jogo na qualificação, contra a Rússia [em 2004], em que ganhámos por 7-1. Também foi um desses tais jogos que podem entrar na dinâmica de querer que não acabe, porque o jogo está sendo tão bom, as coisas estão correndo tão bem que não queremos que acabe.
Olhando para os treinadores, qual foi o mais decisivo na sua carreira?
[Pensa] Decisivo é difícil, porque tive vários. Todos me ajudaram de alguma forma na evolução e no crescimento, mas talvez o José Mourinho tenha sido o que mais me impressionou no sentido do jogo, do conhecimento. Numa altura em que realmente revolucionou muito aquela que era a forma de ver o jogo, o treino.
Aqui no FC Porto: Pinto da Costa. O que há a dizer sobre este presidente?
Como presidente, não há muita discussão sobre o que ele significa para o clube, o que ele fez ou deixou de fazer; o que tem feito. Talvez não haja ainda hoje no futebol mundial um presidente com tanto tempo, com tanto êxito, com tanto resultado positivo — e que tenha mudado tanto a história de um clube.
Depois, tenho a minha relação pessoal, de amizade, de carinho, de respeito mútuo. Depois tenho o outro lado, como o vejo enquanto adepto — o que ele fez pelo FC Porto foi sem dúvida sempre fantástico.
E o poder dos adeptos? Qual é a sua importância no desempenho de um jogador?
Depende do clube, depende da pressão que existe. No fundo, os adeptos são a essência do jogo. Não existiria futebol se não houvesse jogadores e adeptos. Se houver jogadores, até existe, mas depois os clubes não seriam grandes, não teriam interesse.
Os adeptos são a essência daquilo que representa o futebol. Nenhum jogador gosta de jogar sem adeptos; nenhum jogador vai ter sucesso, vai ser famoso, vai ganhar dinheiro se não existirem os adeptos. Eles são a alma disso tudo.
Quando o jogador é apontado como responsável pelo insucesso, é sinal de que ele teve sucesso
Foram os adeptos que determinaram a saída do FC Barcelona?
[Faz que não com a cabeça].
Não?
Do Barcelona? Não. São ciclos que se acabam. Quando você é um jogador importante, é importante no sucesso e na derrota. Quando o jogador é apontado como responsável pelo insucesso, é sinal de que ele teve sucesso — porque senão não lhe seria apontado nada. É assim que funciona.
Quando vestiu a camisola da seleção portuguesa, houve alguma desconfiança dos adeptos?
Não senti isso. Falou-se muito, especulou-se muito, mas eu sinceramente nunca o senti.
Eu já tinha direito a me naturalizar, era uma decisão minha, pessoal, e queria tomá-la. Por isso, foi tranquilo.
E porquê optar pela seleção portuguesa em vez da brasileira?
Porque era o que eu queria fazer. Tinha essa opção, sentia-me feliz em Portugal, a maioria dos jogadores eram meus amigos, jogavam comigo, era a mesma geração. Por isso, não foi uma decisão complicada — foi simples.
Como foi marcar, logo na estreia — frente ao Brasil —, um golo decisivo?
Jogar contra o Brasil não era igual a jogar contra as outras seleções. Não era normal. Mas fiquei feliz porque foi um golo que deu a vitória — e, mesmo sendo um jogo particular, virou um jogo sério, que ninguém queria perder. A sensação foi boa por isso.
Qual foi o melhor momento ao serviço da Seleção?
Teve vários, mas talvez o Euro 2004 tenha sido o melhor — e o pior. Foi um torneio espetacular. O Mundial 2006 também foi muito bom, chegámos à meia-final.
É difícil escolher um momento, porque houve vários.
Aquilo que fez Portugal chegar [ao título de 2016] foi o facto de estarmos sempre chegando.
O Euro 2004 foi, então, quer o melhor, quer o pior momento. Quão importante foi para construir o título de 2016?
Não sei se isso tem alguma ligação. É óbvio que para os adeptos tem, é natural, mas eram gerações diferentes; o Cristiano [Ronaldo] e o Ricardo [Quaresma] são os únicos que participaram em 2004 e depois em 2016.
Aquilo que fez Portugal chegar [ao título] foi o facto de estarmos sempre chegando: 2008 esteve perto; 2012 esteve perto... Quando é assim, numa hora acaba por conseguir. Em 2016, Portugal talvez não fosse o favorito, mas venceu.
Eu achava que Portugal tinha uma grande seleção, porque tinha grandes jogadores. Depois, era uma questão de ver se isso ia funcionar ou não. Ter o Cristiano ajuda muito, e essa era uma vantagem que nós tínhamos, que Portugal tinha em 2016.
Talvez hoje as pessoas vejam Portugal muito melhor do que viam antes, mas eu sempre vi bem, porque, no fundo, nós em 2004 estivemos numa final; em 2008 estivemos nos quartos; depois, em 2012, chegámos à meia-final... Vai chegar uma altura de sorte, um momento importante do jogo, ou aquela bola que não entra, mas você precisa de estar sempre lá, jogando, para que as coisas aconteçam.
Esta vitória foi algo inédito, ou pode repetir-se?
Acredito que se pode repetir. Portugal tem feito um grande trabalho, temos jovens de uma qualidade muito boa; temos uma Federação a trabalhar muito bem, com o doutor Fernando Gomes. E temos tido sucesso nessas camadas jovens.
Por isso, é de esperar que se repita, não vejo porque não.
Qual foi o jogo mais duro que fez?
[Pensa]
Em que sentido?
Todos. Mental, físico...
Talvez a final da Taça UEFA [FC Porto, 2003]. Estávamos sempre a vencer, depois acabámos por sofrer um golo e o jogo foi ao prolongamento. Estava calor, foi um jogo de muito desgaste físico — e mental.
O que passa pela cabeça de um jogador quando está em campo?
Depende do momento do jogo. É gestão de esforço, físico e mental. É uma capacidade de sofrimento, de aguentar o jogo, de concentração.
Isso treina-se, trabalha-se. Primeiro treina-se a parte física, depois também a questão mental.
Não conseguia fazer aquilo de que gostava da melhor forma.
Saiu dos relvados quando queria?
Não sei se foi quando queria. No fundo ninguém quer. Mas foi quando foi necessário. Já não estava a ser feliz, estava a ter lesões. Aquela que era a minha paixão de jogar futebol estava me fazendo mal; não conseguia fazer aquilo de que gostava da melhor forma. Quando é assim, acho que não é o momento para continuar.
Como é que um jogador lida com o facto de ter um prazo de validade?
É ruim, não é? Porque qualquer atleta de alta competição sabe que há um momento em que acaba, em que tem de deixar. Esse não é um momento fácil para ninguém, mas é uma coisa em que se vai trabalhando, pensando mais à frente.
Quando se tem vinte anos, ninguém pensa nisso. Quando se tem 28, 30, já começa a ser uma coisa em que você pensa, porque sabe que está mais perto.
Que mazelas traz no corpo ou na mente depois de uma carreira de alta competição?
Na mente, nenhuma. No corpo, talvez algumas [agarra o tornozelo esquerdo], joelhos, lesões, algumas coisas que são normais por causa da competição. Se é um jogador de alto nível, acontece isso.
Mas [mazela] mental, nenhuma.
E como é que o Deco se preparou para a segunda vida, após a carreira desportiva?
A nível mental não há muito como se preparar. Vai passar por uma fase de alguma insegurança, não sabendo aquilo que vai fazer a seguir. Tem de perceber um pouco aquilo que você se sente bem fazendo — uns viram treinadores, outros querem fazer outras coisas; outros não querem fazer nada...
Mas acho que é o dia-a-dia, executando, fazendo. Daí você vai descobrindo realmente aquilo de que gosta, aquilo que te dá vontade, prazer.
Qual a importância de um empresário na vida de um jovem jogador?
A importância depende muito de como se toma isso. O que nós [empresários] podemos fazer é sempre aconselhar, ajudar a tomar decisões corretas, a pensar no dia-a-dia. Sempre falo que a maior parte é do jogador, é ele que tem de se dedicar, ele é que tem de fazer, querer, ter ambição.
Porque é ele que lida com os treinadores, é ele que está no dia-a-dia do clube. O que nós podemos fazer é ajudar nessa gestão, nessa carreira, nesse processo de conseguirmos fazer com que ele tenha sucesso.
Depois, tomar uma série de cuidados nos contratos, várias coisas que são o nosso trabalho diário.
O que é que aprendeu com Jorge Mendes, o seu antigo agente?
Bastantes coisas. O Jorge tem uma paixão muito grande por aquilo que faz e uma dedicação muito forte naquilo que busca para os jogadores, naquilo que ele pretende para os jogadores. Acho que isso é uma coisa que aprendi e vi muito nele — porque vivi isso. É uma coisa que sempre admirei muito.
[O jogador] quando entra em campo, não pensa em quanto custou, ou deixou de custar.
Como é que um jovem jogador com uma etiqueta a dizer que vale 120 milhões de euros consegue lidar com isso?
Quando entra em campo, você não pensa em quanto custou, ou deixou de custar. Não acho que isso seja um problema, principalmente para os jogadores que têm personalidade, jogadores que conhecem as suas capacidades.
É óbvio que hoje, quando se pensa em jogadores que custam 200, 180, 50... Acho que os jogadores, no dia-a-dia, no campo, não pensam nisso. Para a imprensa tem impacto, para o próprio clube, que gastou o dinheiro... Mas o jogador não pensa muito nisso.
Não cria uma pressão acrescida?
Acho que não. Pode haver dos outros, mas ao nível do jogador, acredito que não.
Os jogadores têm a mesma exigência, quer joguem no Real Madrid ou no Feirense.
“O desporto profissional, o dos milhões, é bonito em cima, em baixo não é o que as pessoas pensam.”, disse ao Expresso. Como é “em baixo”?
Quando se fala em transferências, jogadores, contratos, fala-se muito da parte de cima. A classe dos jogadores de futebol é grande, é extensa. Em Portugal temos 18 clubes na primeira liga, mais vinte na segunda, mais o CNS [Campeonato de Portugal]... Todos os jogadores são profissionais tal como eu fui, tal como o Cristiano, igual ao [João] Félix que foi vendido por 120 milhões...
Discutem-se medidas para as transferências, para as comissões — e não se discute o que é realmente preciso para melhorar certas coisas. Os jogadores têm a mesma exigência, responsabilidade, trabalho, quer joguem no Real Madrid ou no Feirense; num clube do CNS ou no Paços.
Enfim, às vezes fala-se muito daquilo que é o glamour, mas acho que temos de falar também do resto. O mesmo jogador que acaba a carreira aos 36 no Real Madrid, acaba também no CNS. Ou seja, de alguma forma essas coisas no futuro têm de ser alteradas.
Há uma série de coisas que se devia discutir em vez de falarmos só do valor das transferências ou disto e daquilo.
Como o quê?
Várias coisas: por exemplo, acho que um curso de treinador não pode durar três anos; tem de se criar uma lei de reforma específica para atletas de alta competição — não só jogadores de futebol, porque as competições são uma profissão de desgaste rápido. Há uma série de coisas que se devia discutir em vez de falarmos só do valor das transferências ou disto e daquilo.
E haverá abertura para essas discussões, ou só interessa mesmo o ruído dos jogos, das transferências?
Acho que sim, há muita gente a trabalhar para isso. O sindicato [dos jogadores] tem várias ideias; nós temos uma série de coisas; a própria federação hoje trabalha muito bem. E acho que a Soccerex também é um evento para se debater e pensar nisso.
Qual é a importância de um evento como o Soccerex para falar de futebol?
É grande. É um dos maiores eventos de futebol do mundo e é natural para Portugal, com a importância que tem no futebol. Apesar de sermos um país pequeno, temos uma importância muito grande no futebol mundial — e é bom que estes eventos possam acontecer em Portugal.
Faz falta falar sobre futebol desta maneira?
No contexto em que vivemos, sim. Fala-se de muita coisa menos de futebol. Enfim, é já um pouco cultural. Há muito tempo que se fala de muita coisa menos do que é a essência, o jogo, o futebol em si.
E qual é a essência do futebol?
Os jogadores, acima de tudo.
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