"O desporto não é desporto quando não há relação entre esforço e recompensa. Não é desporto se o sucesso é garantido ou se a derrota não é importante". As palavras de Pep Guardiola, treinador do Manchester City, um dos clubes fundadores da Superliga Europeia, proferidas poucas horas antes de o clube anunciar a saída da competição, menos de 48 horas depois de esta ter sido anunciada, resumiam o sentimento de um país inconformado com o facto de seis dos maiores emblemas da Premier League estarem a colocar em cheque o futuro do futebol inglês e europeu.

As declarações de Guardiola, na conferência de imprensa de antevisão ao jogo com o Aston Villa, a contar para a liga inglesa, foram ao encontro das de Jürgen Klopp, no rescaldo do empate entre Liverpool e Leeds, na segunda-feira à noite, quando o técnico alemão disse que “as pessoas não estão contentes e consigo entendê-las”.

As posições dos últimos dois técnicos a sagrarem-se campeões em Inglaterra contrastavam, por exemplo, com a permissividade com que Andrea Pirlo, treinador da Juventus, outro dos clubes fundadores da Superliga, respondeu às questões sobre os planos para a criação da competição como sendo “mais uma evolução no futebol”

“Esta manhã [terça-feira], o presidente deu-nos a conhecer o projeto [da Superliga]. Transmitiu-nos grande confiança e salientou que o mais importante é continuarmos a trabalhar. É apenas um projeto. Os jogadores sabem que o futebol evolui e que têm de permanecer tranquilos e focados no presente, que é o jogo com o Parma”, disse Pirlo, na antevisão da partida da 32.ª jornada da ‘Serie A’.

A forma como Inglaterra reagiu ao anúncio feito no domingo por 12 clubes - AC Milan, Arsenal, Atlético de Madrid, Chelsea, FC Barcelona, Inter Milão, Juventus, Liverpool, Manchester City, Manchester United, Real Madrid e Tottenham - contrastou com as reações que se ouviram a partir de Itália e Espanha, países que acolhem a outra metade dos emblemas que pretendem criar esta nova liga.

Se de Espanha e Itália se ouviam zunzuns de insatisfação, sobretudo direcionados a Florentino Pérez e Andrea Agnelli, presidentes do Real Madrid e Juventus e, ao mesmo tempo, presidente e vice-presidente da Superliga Europeia, pelo protagonismo no desenrolar deste plano que afronta diretamente a UEFA, em Terras de Sua Majestade foram rápidas as primeiras figuras a pronunciarem-se contra a competição, desde logo pelas declarações virais de Gary Neville, antigo jogador do United, que classificou o plano para a competição como “um ato criminoso”, passando mais tarde por nomes como Rio Ferdinand, Alex Ferguson, Bruno Fernandes, Kevin de Bruyne, Mesüt Ozil, Sterling ou Hector Bellerín.

Não demorou muito até que o próprio Governo britânico também tornasse pública a sua posição face a esta competição. “Vamos analisar tudo o que podemos fazer com as autoridades do futebol para garantir que a Superliga não aconteça como está planeada. Isto não é uma boa notícia para os adeptos nem para o futebol deste país. Não gosto dos termos desta proposta e farei tudo o que puder para que não aconteça”, afirmou Boris Johnson aos jornalistas ingleses, admitindo chegar ao ponto de sugerir mudar a legislação britânica para travar o processo.

Até a família real inglesa, através do príncipe William, se pronunciou contra a criação da prova. “Agora, mais do que nunca, devemos proteger toda a comunidade do futebol — do mais alto nível até à base — e os valores da competição e justiça na sua essência. Eu partilho as preocupações dos fãs sobre a proposta da Superliga e os danos que [essa competição] pode causar ao jogo que amamos”, escreveu em comunicado.

Ao mesmo tempo, os fãs saíram à rua, os dos clubes envolvidos neste êxodo para uma Superliga de lugares cativos e valores milionários, mas não só. Colocaram-se tarjas à entrada dos estádios, houve protestos e os adeptos exigiram serem ouvidos.

Não alheios a tudo isto, houve reações mais diretas dos relvados. O Leeds, que defrontou o Liverpool na passada segunda-feira, levou os jogadores para o aquecimento com t-shirts brancas com o símbolo da Liga dos Campeões e com a expressão “Earn it” [Merece-o]. O Brighton fez o mesmo na terça-feira diante do Chelsea. Também esta terça, Jordan Henderson, capitão dos Reds, revelou que os jogadores da equipa estavam contra a criação de uma Superliga. Além disso, Henderson convocou também uma reunião de emergência com os outros capitães de equipa dos clubes da Premier League para discutir uma tomada de posição conjunta.

Em 48 horas, em Inglaterra, os amantes do futebol saíram à rua. Os decisores políticos e desportivos falaram sobre a modalidade que amam e que não querem ver transformada num parque de diversões fechado, onde histórias de sucesso como a do Leicester em 2016, que por si só já são raras nos dias que correm, estão vetadas a ficar de fora dos possíveis desfechos do final de época.

Sim, porque se no primeiro comunicado oficial da Superliga Europeia os 12 clubes afirmaram que não queriam deixar de competir nas ligas domésticas, sendo antes a nova competição um substituta da Liga dos Campeões, a UEFA não deixou margem para dúvidas: todos os clubes que viessem a integrar esta liga seriam excluídos do organismo, contando Aleksander Čeferin com o apoio direto das federações de Espanha, Itália e Inglaterra, para além de que os jogadores destas mesmas equipas ficariam impedidos de serem chamados às respetivas seleções e assim de competir em Europeus e Mundiais.

Ora, se o êxodo de uma competição tão histórica como a Champions de alguns dos seus protagonistas - com ênfase em alguns, porque do grupo fundador Tottenham, Arsenal, Manchester City e Atlético de Madrid nunca venceram a competição -, o contra-ataque da UEFA não trazia melhores benefícios ao futebol europeu, uma vez que deixava o futebol órfão de alguns dos seus maiores talentos como é o caso de Cristiano Ronaldo.

Os adeptos ingleses não podiam aceitar isso e nenhum daqueles seis clubes poderia viver com ambições tão contrárias às da sua massa associativa. Assim, perante protestos impossíveis de ignorar, o Manchester City, provavelmente, a par do Chelsea, o mais inesperado dos seis a fazê-lo, pelo perfil comercial que adotou desde a chegada de investidores, anunciou oficialmente, por volta das 22h00 de terça-feira, que “iniciou formalmente o procedimento para se retirar do grupo responsável pelo desenvolvimento do projeto da Superliga europeia".

Ceferin, que durante a tarde tinha dito aos 12 clubes fundadores da Superliga que ainda não era tarde demais para voltarem atrás com a sua decisão, aplaudiu-a. “Como referi no congresso da UEFA, é preciso coragem para admitir um erro, mas nunca duvidei de que teriam capacidade e bom senso para tomarem esta decisão. O Manchester City é uma mais-valia para o futebol e estou muito satisfeito por poder trabalhar com eles para um futuro melhor para o futebol europeu”, salientou o esloveno.

Mas uma boa notícia nunca vem só e com o avançar da noite chegou a notícia oficial de que Arsenal, Manchester United, Liverpool e Tottenham também deixariam a Superliga Europeia.

"Após termo-vos escutado (adeptos), bem como à comunidade alargada do futebol, nestes últimos dias, retiramo-nos da Superliga. Cometemos um erro e pedimos desculpa por isso", pode ler-se num Twitter dos 'gunners'.

No mesmo tom, os Red Devils confirmavam que iam participar na nova competição que estava a ser planeada para a próxima época, sublinhando que ouviram “cuidadosamente as reações dos nossos adeptos, do governo britânico e de outros acionistas importantes”. “Continuamos comprometidos com o trabalho conjunto, através de toda a comunidade do futebol, para encontrar soluções sustentáveis para o desafio a longo prazo que o desporto enfrenta”, escreveram.

Também o Tottenham diz estar arrependido “da ansiedade e do transtorno causado pela proposta”.

O último do grupo dos seis ingleses a anunciar que não faria parte da Superliga Europeia foi o Chelsea, num comunicado já emitido já na primeira hora desta quarta-feira.

“O Chelsea confirma que deu início aos procedimentos formais para abandonar o grupo responsável pelo desenvolvimento do projeto da Superliga europeia. Depois de nos termos juntado ao grupo na semana passada, tivemos tempo para reconsiderar a nossa posição e concluímos que a participação nestes planos não servia os melhores interesses do clube, dos nossos adeptos ou sequer da vasta comunidade do futebol”, informou o clube londrino, em comunicado divulgado no site oficial.

Com o anúncio da saída dos Blues, o grupo de clubes fundadores da Superliga ficou assim reduzido a metade, restando apenas seis dos primeiros 12 emblemas que foram anunciados há pouco mais de 48 horas: os espanhóis Real Madrid, FC Barcelona e Atlético de Madrid, e os italianos AC Milan, Inter de Milão e Juventus.

A Federação inglesa, a Football Association, a mais antiga do mundo, celebrou estas últimas horas da noite em comunicado, abraçando as boas notícias dos recuos dos clubes ingleses em participar nesta nova competição.

“O futebol inglês tem uma história orgulhosa, baseada nas oportunidades para todos os clubes e o desporto tem sido unânime na decisão de não aprovar uma liga fechada. Foi uma proposta que, por defeito, podia ter dividido o nosso desporto; mas, ao invés disso, uniu-nos a todos”, pode ler-se na nota que agradece o papel dos adeptos neste processo.

Também alguns jogadores foram reagindo com alívio e alguma dose de sarcasmo à queda precoce do projeto, pelo menos do lado inglês. Se Raheem Sterling escreveu "ok adeus", o seu colega no Manchester City Aymeric Laporte ficou-se por um "isto foi rápido lol".

Não deixa de ser curioso que o país que há 4 anos, 9 meses, e 27 dias votou para deixar a União Europeia seja agora aparentemente responsável pela atual salvação do futebol europeu e pelo princípio do suposto fim da Superliga Europeia. Mesmo que a luta não tenha sido levada a cabo pela Europa do futebol ou 'só' pela Europa do futebol.

A anatomia de um desastre

No entanto, esta não é só uma história romântica de como os adeptos e os verdadeiros amantes do futebol saíram à rua para salvar a modalidade. A Superliga terá repercussões.

A primeira é essa mesma, a Superliga Europeia foi suspensa. "Dadas as correntes circunstâncias, vamos reconsiderar os passos a dar para remodelar o projeto, tendo sempre em conta que os nossos principais objetivos são oferecer aos adeptos a melhor experiência possível, além de garantir os mecanismos de solidariedade para toda a comunidade do futebol”, lê-se no comunicado emitido esta madrugada, que diz ainda que os clubes ingleses foram forçados a abandonar os planos “ devido à pressão exercida sobre eles” e que continuam “convencidos de que a nossa proposta está completamente alinhada com as leis e regulamentos europeus”.

O segundo motivo é que é pouco provável que depois de os clubes terem avançado para uma ação tão rebuscada, ignorando os adeptos e agindo nas costas dos organismos internacionais, não haja consequências visíveis.

A primeira de todas foi sentida no Manchester United, onde Ed Woodward, vice-presidente do clube e porta-voz da família Glazer, dona do clube, apresentou a demissão. Os Glazer são os maiores derrotados da história porque, para além de perderem um aliado de confiança, parecem ter perdido definitivamente a confiança da massa associativa com quem têm uma má relação desde que Alex Ferguson saiu do clube, sendo que os vermelhos de Manchester nunca mais recuperaram o estatuto de então.

Automaticamente, todos os outros investidores, os do Arsenal, do Liverpool, do Chelsea ou do Manchester City, saem igualmente fragilizados destes últimos desenvolvimentos. Tanto mais que se somam os rumores de que o fundo que detém o Liverpool, o FSG, estará a pensar vender a sua posição, e aumenta a pressão no Arsenal para que Stan Kroenke também coloque o clube londrino no mercado —

No entanto, as próximas novidades deverão recair sobre dois nomes: Florentino Pérez e Andrea Agnelli. O presidente do Real Madrid assumiu a liderança da rebelião, não só por ser o presidente da Superliga, mas também pelas duas entrevistas que deu enquanto detentor desse cargo. Pérez é oficialmente, e agora para todos, um dos maiores vilões do futebol europeu depois de ter tentado recuperar as perdas económicas do clube com a pandemia (cerca de 400 milhões de euros em duas temporadas) com uma mensagem uma ambição maior de salvar o futebol. Algo em que poucos adeptos terão acreditado.

Já Agnelli conseguiu uma derrota ainda maior que a do dirigente dos Merengues. O bilionário italiano agiu como um agente duplo, ao mesmo tempo que planeava a nova prova à revelia da UEFA ocupava o lugar de presidente da Associação Europeia de Clubes e era amigo próximo de Aleksander Čeferin, tendo sido, inclusive, padrinho da filha do presidente. Agora, está completamente desacreditado. Ainda assim, rejeita a demissão, mesmo que a isto tudo somemos o facto de a Juventus estar na quarta posição do campeonato italiano, que muito dificilmente vencerá, e de ter sido eliminada nos oitavos-de-final da Liga dos Campeões pela segunda época consecutiva.

A terceira era aquela que já na noite de terça-feira era avançada por vários meios de comunicação social internacional. Hoje mais clubes seguiram os passos do grupo dissidente inglês. Em Espanha o Atlético de Madrid comunicou "a sua decisão de não formalizar definitivamente a sua adesão ao projeto". E em Itália todos os emblemas envolvidos no projeto anunciaram que já não vão fazer parte do mesmo.

O grande símbolo da derrota da criação da prova acabam mesmo por ser as declarações do presidente da Juventus e vice presidente da Superliga, Andrea Agnelli, quando afirmou que, apesar de continuar “convicto da beleza do projeto, do valor que poderia ter dado à pirâmide, da criação da melhor competição do mundo", admitiu que o projeto não está pronto para avançar.

Até ao momento, a nova Superliga Europeia são só duas equipas: FC Barcelona e Real Madrid.

*artigo atualizado às 13h20 com novas decisões por parte dos clubes envolvidos no planeamento da nova competição