Foram cerca de sete dias, mais de 168 horas, sem saber se o sonho e a vontade sobreviveriam à força do Oceano Atlântico que une a Gâmbia, país da África Ocidental, e Portugal.
Yankuba Daffeh, de 16 anos, era um entre cerca de 130 migrantes – a maioria rapazes – que partiram em busca de uma vida melhor. Sem saber nadar, enfrentou o mar, como hoje enfrenta o futuro: com esperança.
“Nós viemos por mar, foram cerca de sete dias, por barco. Éramos 128 rapazes e três raparigas no barco. Quando chegámos a Espanha decidi continuar a viagem para Portugal, porque esse era o meu objetivo. Cheguei a Portugal, em fevereiro, e fui trazido para São João da Madeira pela AIMA [Agência para a Integração Migrações e Asilo] e pela polícia”, contou, na praia de Matosinhos, no distrito do Porto, onde têm lugar as aulas de surf, à saída do mesmo mar que o trouxe a território nacional.
Foi em São João da Madeira (Aveiro), através da Cruz Vermelha local, que lhe foi dada a oportunidade de integrar o “Waves in You”, um projeto destinado a crianças migrantes e refugiadas que assume como missão a promoção do bem-estar psicológico e a inclusão social de que é exemplo Yankuba.
De prancha na mão, o rapaz de 16 anos que não sabia nadar diz estar a começar a aproveitar. Vê nos portugueses e em Portugal um país seguro e amigável, para o qual gostava de contribuir.
“O meu maior sonho é tornar-me uma pessoa melhor na vida, melhor para mim, para a comunidade e para Portugal. Eu gostava de contribuir para o desenvolvimento nacional”, afirmou.
Mariana Barbosa, coordenadora de saúde mental no projeto, investigadora e docente da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica (FEP-UCP), também ela praticante da modalidade, explica que os benefícios da prática do surf são hoje reconhecidos cientificamente, seja enquanto ferramenta terapêutica para tratar problemas como o stress pós-traumático, a ansiedade ou a depressão, seja pelo seu impacto em matéria de inclusão social e melhoria da qualidade de vida.
Desenvolvido pela Fish Surf School, sediada em Matosinhos, em parceria com a Universidade Católica e o Instituto Universitário de Ciências da Saúde, o projeto, que arrancou em 2023, combina estratégias de educação não formal e formal, através de sessões de surf dinamizadas por um instrutor e uma psicóloga.
Numa primeira fase, o programa-piloto envolveu cinco crianças — com idades compreendidas entre os 6 e os 10 anos, todas beneficiárias da MEERU Aproxima, uma associação dedicada ao apoio às comunidades de migrantes e refugiados, a que se juntam agora 10 jovens, entre os 11 e os 17 anos.
“Neste momento, os resultados são mais qualitativos, uma vez que falamos de grupos pequenos [um primeiro grupo com crianças e agora o segundo com adolescentes]. Estamos em processo de análise das entrevistas aos voluntários para perceber o impacto [emocional e psicológico]”, adiantou a investigadora que aponta para uma maior autonomização, melhoria de confiança e da capacidade de interação em contexto de grupo como maiores evidências do impacto do projeto.
O objetivo é agora fazer “escalar o projeto” e oferecer esta oportunidade a mais crianças, sublinha a especialista, que espera que, com financiamento público, possa no futuro ser feita uma avaliação quantitativa do impacto do projeto que acolheu, até ao momento, crianças da Gâmbia, Roménia, Síria, Marrocos e Afeganistão.
“No mar não existem nacionalidades. Somos todos iguais”, afirmou a investigadora que, enquanto voluntária, testemunhou a transformação da ilha turística Lesbos, na Grécia, num enorme campo de refugiados.
Como Yankuba, Abdul Bacit Jabar, de 11 anos, entregou-se de corpo e alma à experiência. Há mais de dois anos que saiu do Afeganistão e procurou refúgio em Portugal, onde conquistou, para além de novos amigos, as ondas da praia de Matosinhos. Com ajuda do treinador já se equilibra na prancha, quase tão bem como fala português.
“No início foi difícil, mas tentei aprender e estou a gostar. Na aula anterior consegui levantar-me na prancha”, contou, com a felicidade de quem já se sente em casa no mar português.
Para Diogo Silveira, a quem cabe a tarefa de ensinar os princípios basilares da modalidade, está hoje claro o papel do surf enquanto elemento de transformação “social, emocional e psicológica”.
Assumindo-se “como um mero ajudante” num projeto no qual, confessa, já ganhou mais do que ofereceu, Diogo reconhece hoje a importância da linguagem não verbal e da escuta ativa enquanto elemento de acolhimento e de promoção de bem-estar.
Para Ana Rita Pereira, assistente social na Cruz Vermelha de São João da Madeira, onde estão a ser acompanhados estes menores, o impacto deste projeto assemelha-se quase às ondas que enfrentam a cada domingo.
“Há um enorme contributo – e que os conheço desde o dia em que chegaram a são João da Madeira e os vejo agora – que é a confiança nos serviços. Numa fase inicial desconfiavam de qualquer coisa que lhe pedíssemos, mesmo que fossem obrigações legais ou a simples ida à escola. Agora é diferente, já são eles que tomam a iniciativa”, explicou, acrescentando que idêntica mudança é observável nas famílias.
O projeto, assinala a psicóloga Beatriz Duarte que os acompanha na Cruz Vermelha, permitiu até desconstruir o discurso de ódio que aparece nas redes sociais.
“Mesmo que surja esse tipo de receio [de discriminação], eles próprios substituem fazendo a comparação com a realidade [na qual estão inseridos]”, rematou.
De acordo com a Agência da ONU para os Refugiados (ACNUR), em 2023, Portugal recebeu cerca de 2.600 novos pedidos de asilo, sendo as principais nacionalidades a Gâmbia, o Afeganistão e a Colômbia.
No final de 2023, existiam em Portugal cerca de 1.300 requerentes de asilo, 3.800 refugiados e beneficiários de proteção subsidiária e 59.400 titulares de proteção temporária, revela o relatório de tendências globais de 2024.
Em maio, o número de deslocados forçados em todo o mundo tinha já atingido novos níveis históricos, ascendendo a 120 milhões, o equivalente à população do Japão, o 12.º maior país do mundo.
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