Gravidezes inesperadas, doenças súbitas, salários por pagar. Ser jogadora de futebol não é fácil e ainda há muitos obstáculos a ultrapassar, como mostram os números: "Apenas 190 das 2.013 seniores em Portugal são profissionais", diz Carla Couto, a portuguesa mais internacional de sempre e um dos rostos do departamento de futebol feminino do Sindicato dos Jogadores.

A realidade já foi pior - ainda em 2017/18 havia apenas 24 jogadoras profissionais -, mas o objetivo ainda está longe. Por isso, o Sindicato dos Jogadores quer que o novo acordo coletivo de trabalho (ACT), que regula as relações entre jogadoras e clubes e que prevê salários mínimos iguais para homens e mulheres, entre em vigor já na próxima época.

"Chegámos a uma encruzilhada: por um lado as organizações dizem que querem promover o futebol feminino, por outro não acompanham aquilo que são as condições mínimas necessárias para as mulheres poderem escolher como profissão jogar futebol", diz o presidente do Sindicato dos Jogadores, Joaquim Evangelista.

"Cheguei a não ter dinheiro para comer e a ir almoçar e jantar a casa dos pais de uma colega de equipa"Carla Couto

E lembra o compromisso europeu sobre a igualdade de género, também adoptado pelo governo português. Ainda há um mês a ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendes, apresentou o Relatório e Recomendações do Grupo de Trabalho para a Igualdade de Género no Desporto, com a promessa de nos próximos seis meses ser anunciado um plano de ação para 2023-2026. "Toda a gente fala de igualdade no desporto à boca cheia, mas a diferença entre o discurso e a prática é gigante", denuncia Joaquim Evangelista.

Carla Couto acompanhou as transformações no futebol feminino de perto e conta o que mudou em 30 anos a partir da sua experiência. Mas há outras histórias.

"Era o meu pai que todos os meses me pagava para eu jogar no Sporting"

Tinha 17 anos quando o pai, sportinguista dos quatro costados, lhe disse que o clube tinha acabado de criar uma secção de futebol feminino e estava a fazer treinos de captação. Carla Couto não se entusiasmou, jogava andebol no Passos Manuel e estava a gostar.

"Ele ficou tão desiludido", recorda, que depois de alguma insistência dos amigos resolveu experimentar: "Fazes a vontade ao teu pai, vais lá. Se não quiseres, não ficas". Foi e ficou. "No intervalo do treino vieram logo pedir-me para ficar e assinei contrato". Assinar contrato, note-se, era preencher a ficha de inscrição no clube. 

Este foi o primeiro vínculo com o Futebol 11. O valor mensal que recebia era o pai que pagava. "O meu pai ficou tão feliz por eu ter ido jogar para o Sporting, que me pagava por isso". Já lá vão 31 anos.

Carla Couto jogou até aos 40. "Nunca tive salário no futebol. Tive ajudas de custo, mas nunca tive um contrato de trabalho. As únicas vezes que vivi do futebol foi quando fui jogar para a China e para Itália", diz.

"Toda a gente fala de igualdade no desporto à boca cheia, mas a diferença entre o discurso e a prática é gigante" Joaquim Evangelista

Não deixa de ser irónico que as jogadoras só pudessem sair do país com um contrato, mas que em Portugal este vínculo lhes fosse quase sempre negado. Exigíamos aos de fora o que não fazíamos dentro.

Jogar no estrangeiro também foi complicado, por motivos diferentes. Na China, onde esteve três meses, a diferença cultural era imensa. "É preciso ver que foi há 21 anos, era um regime ainda mais fechado". A língua e a alimentação foram um problema, "eu não falava a língua e não havia do lado deles quem falasse inglês comigo".

"Em termos desportivos, fui titular todos os jogos. Apreciavam muito a minha capacidade enquanto jogadora. Fui levando, mas telefonei muitas vezes para Portugal, para a minha mãe, a dizer que me vinha embora. Ela aconselhava-me a ficar, era o meu sonho, e eu respondia que se era para ser assim não queria sonhar mais", conta.

O contrato foi assinado com a federação chinesa de futebol [Associação de Futebol da República Popular da China], no valor de 3.000 dólares, um balúrdio para 2002.

Carla Couto
Carla Couto Carla Couto, num jogo das seleção portuguesa

Na Lazio foi muito mais fácil a nível cultural - mesmo sem saber falar italiano quando foi, quando regressou a Portugal já conseguia manter uma conversa -, mas "muito difícil em termos desportivos; no primeiro mês recebi o ordenado, no segundo veio com atraso, a partir do quarto mês deixei de receber", lembra.

"Coincidência ou não, nessa altura telefona-me o Dr. Joaquim Evangelista a convidar-me para ser embaixadora do Sindicato dos Jogadores. Mal aceito, ligo para cá a contar o que se estava a passar. Estive seis meses sem receber o meu ordenado, não foi fácil".

Em 2002 Carla Couto assinou com a federação chinesa de futebol por 3.000 dólares

As colegas de equipa estavam na mesma situação, mas pelo menos estavam em casa. "Eu, para ir para Itália, tive de pôr uma licença sem vencimento, trabalhava na câmara de Sintra, era auxiliar de ação educativa. Cheguei a não ter dinheiro para comer e a ir almoçar e jantar a casa dos pais de uma colega de equipa, a quem estarei sempre grata".

"Aqui disseram-me para cumprir o contrato até ao fim para receber a totalidade do dinheiro a que tinha direito, e tive de ficar lá até 30 de Junho de 2012. No dia seguinte meti uma acção contra a Lazio e passados dois anos e meio recebi o meu pagamento".

A derrota pesada contra a Alemanha e o golo que quase mudou tudo

Dezassete anos pode parecer uma idade tardia para iniciar a prática de futebol, mas não só nessa altura não havia escalões - 13, 17 ou 30 anos era tudo sénior -, como isso não impediu a jogadora de fazer um percurso invejável na modalidade: 145 internacionalizações, 29 golos marcados aos serviço da seleção nacional.

O caminho, já sabemos, não foi fácil, pelo contrário. "A minha geração viveu momentos difíceis, tanto ao nível da seleção nacional como ao nível dos clubes havia muito preconceito. Os direitos que estão agora na moda, como a igualdade, não existiam. Foram anos de luta, mas também de muita dedicação, de muita paixão".

Uma carreira faz-se de momentos de glória e também de derrotas. Carla Couto teve ambos. Recordará para sempre a derrota pesada frente à Alemanha, então campeã do mundo, a 7 de Fevereiro de 2004. "O estádio estava cheio e levámos 11-0. Foi muito mau pela impotência que se sente. Por muito que se lute, por muito que se esforce, nada resulta". Era um jogo de apuramento para o Europeu de 2005, em Albufeira, e ao intervalo a selecção lusa já perdia por 5-0.

Mas também há marcas boas, "como os jogos do Mundialito, em que nos superávamos e conseguíamos feitos. Lembro-me do meu primeiro golo contra a Finlândia", em Lagos. Foi a 11 de Março de 2009 e há quem diga que foi o melhor jogo de sempre de Portugal na competição; a seleção portuguesa perdeu nos penáltis e terminou em oitavo lugar.

"O nosso grande objetivo enquanto jogadoras, evidentemente, era entrar para a seleção nacional, estar entre as melhores atletas e poder representar o país. É uma motivação extra, independentemente das horas a que treinamos. Aliás, muitas vezes treinávamos à noite. No 1.º de Dezembro, onde passei 14 anos da minha vida, éramos a última equipa a treinar, muitas vezes começávamos às nove e meia da noite e acabávamos perto da meia-noite".

Carla Couto também se lembra de ter jogado muitas vezes em pelado (areia ou terra batida). "Mas estas coisas também nos fizeram crescer. Foi preciso passar por isso para hoje termos as condições que temos. Vivemos uma era em que o futebol feminino está a dar grandes passos, está a dar às jogadoras a possibilidade de viver o sonho de serem profissionais de futebol em Portugal". 

Só por isso, olha para trás e sente que "valeu a pena". E lembra que antes da sua houve outra geração que abriu caminho, que fez um trajeto, numa época ainda mais difícil. "Depois houve um interregno de cerca de dez anos, mas é importante falar disto, falar destas mulheres antes de nós, que também abriram portas à minha geração. E que passaram grandes dificuldades, numa altura em que era ainda mais complicado afirmarem-se, lutar contra preconceitos, contra estigmas".

Admite que ainda há muito a fazer, mas orgulha-se de "hoje viver numa sociedade em que um pai ou uma mãe faz 40 ou 50 quilómetros para levar a sua filha de dez anos aos treinos. As meninas podem ter o sonho de jogar futebol. Isso, para mim, vale tudo. E não vão passar nunca por aquilo que nós passámos", remata.

A doença que obrigou a pôr termo à carreira e a vontade de trabalhar na FPF

Carla Couto jogou até aos 40 anos, tem hoje 48, quase 49. "A Sílvia Brunheira jogou até aos 44 anos, a Edite Fernandes até aos 40 ou 41. Éramos amadoras, acredito que profissionalmente a carreira possa acabar um pouco antes, mas até aos 35, 36, 38 anos é possível jogar ao mais alto nível".

Deixou a seleção nacional aos 38 anos e anunciou o fim da carreira dois anos depois, por motivo de doença. "Foi uma coisa repentina. Na altura trabalhava num jardim de infância e comecei a reparar que tinha uma pequena dormência nas pontas dos dedos". Nunca mais esquece o dia em que foi a uma consulta de dermatologia na Clínica de Santo António, em Sacavém. "Como tenho Lúpus [doença auto-imune que provoca lesões na pele], fui ver o que se passava".

"Estava na sala de espera e começou a doer-me um joelho, depois o maxilar, depois o ombro, depois as mãos, a anca. Assim, do nada. Saio da consulta e começo a ter estes sintomas - que estranho, o que é que me está a dar?! Fui directamente para o Hospital Beatriz Ângelo, às urgências. E - acho que há pessoas que passam na nossa vida com um propósito -, quando sou chamada, atende-me um médico brasileiro, novo, muito giro. Pede-me para tirar o casaco e tive de lhe pedir ajuda, não conseguia mexer as mãos. Estivemos uma hora e meia a conversar, ele quis saber todo o meu historial, da minha mãe, do meu pai, tudo".

Passados 15 dias tinha o diagnóstico: artrite reumatóide. "Mas porque aquela pessoa, que ainda hoje gostaria de reencontrar, olhou para mim e se interessou". A conversa sobre a seleção também serviu para quebrar a barreira paciente-médico. "Vou estar-lhe eternamente grata por tudo o que fez. Se algum dia ler uma entrevista minha, gostava mesmo que entrasse em contato comigo. Sei que, entretanto, saiu do Beatriz Ângelo, mas gostava mesmo de lhe voltar a falar, foi quem me deu a mão".

Levou tempo até acertar na medicação, com altos e baixos. "Tive momentos em que nem conseguia andar. As articulações que a doença mais apanhou foram as dos pés, dos joelhos, do ombro e das mãos".

Hoje tem dias melhores e dias piores. A doença está controlada, mas é para a vida. "Foi muito complicado estar habituada a jogar 90 minutos e, de repente, a cabeça dizer uma coisa e o corpo não obedecer. Precisei de apoio psicológico - espero, também nisso, poder ser um exemplo. Nem sempre estamos bem e há momentos da vida em que temos de pedir ajuda e isso não é vergonha nenhuma".

Os olhos brilham: "Se me pedissem para jogar os últimos cinco minutos da fase de apuramento para o campeonato do mundo, eu jogava". "Estou muito grata ao futebol por tudo o que me deu. E acho que ainda não acabámos, eu e o futebol ainda temos muito para conquistar". Onde se vê no futuro? "Não escondo que o meu grande objetivo de vida e de carreira é estar ligada à Federação Portuguesa de Futebol", confessa.

O assédio, os seguros e as desvinculações

A partir de 2014 Carla Couto passou a estar no Sindicato dos Jogadores a tempo inteiro. "Estou muito feliz no sindicato e imensamente grata ao Dr. Joaquim Evangelista por, em 2012, quando o futebol feminino era todo amador, ter tido a visão de criar um departamento feminino, um organismo para defender, esclarecer e ajudar as jogadoras, e de me ter convidado a mim e à Edite [Fernandes] para o representar".

Os problemas apresentados pelas jogadoras são geralmente laborais e abarcam um pouco de tudo. "Incompatibilidades com o clube, problemas com processos de seguros - normalmente a jogadora avança com pagamento de exames e o clube nem sempre restitui a dinheiro -, desvinculações ou incumprimento salarial". "Nós também tivemos subsídios em atraso e incumprimento salarial, mas não tínhamos esta retaguarda".

"Não escondo que o meu grande objetivo de vida e de carreira era estar ligada à Federação Portuguesa de Futebol" Carla Couto

O assédio é um problema que pode não ser novo, mas, "na minha altura, mesmo que existisse, não era falado". Neste aspeto, considera que "o mais importante é dar às jogadoras a noção de que há o que pode e o que não pode ser feito, que é tudo o que as deixa desconfortáveis. Há limites e esses limites não podem ser ultrapassados. E não têm de ter medo de represálias - porque também há o receio de a denúncia não levar a lado nenhum. O mediatismo de casos mais recentes também veio dar às jogadoras a capacidade e as ferramentas necessárias para denunciar tudo o que sai fora de contexto. O sindicato e a federação têm linhas próprias, anónimas, de denúncia".

Carla Couto acredita que se estão a dar passos consistentes no desenvolvimento do futebol feminino e "é com naturalidade que acabamos por ir ao Mundial. Porque o apuramento também tem a ver com as condições que têm sido dadas às jogadoras para a prática desportiva".

Joaquim Evangelista: Querem mesmo mulheres no futebol? Então, provem-no

O Sindicato dos Jogadores quer equiparar salários de homens e mulheres no futebol. Mas esta é apenas uma das propostas que consta do acordo coletivo de trabalho (ACT), um documento apresentado à Federação Portuguesa de Futebol e aos clubes para acabar com a situação precária em que se encontram muitas jogadoras.

"É fundamental criar estabilidade para as jogadoras de futebol", diz o presidente do sindicato, Joaquim Evangelista. "E isso só é possível com contratos de trabalho efetivos, que não existem atualmente".

O responsável lembra que "o futebol feminino dá um salto qualitativo quando a Federação Portuguesa de Futebol coloca o assunto na agenda e incentiva os clubes a formar equipas femininas, até apoiando-os financeiramente".

Só nesta época, a Federação Portuguesa de Futebol gastou perto de dois milhões de euros em apoios aos clubes para promoverem a profissionalização do futebol feminino, o que representa, em média, 30% dos seus orçamentos.

O ACT define as normas básicas de qualquer profissão: o que é preciso para fazer contrato, para ser despedido, para gozar férias, para ter baixa. Define uma relação laboral. A proposta, que prevê um período de transição, garante os direitos já estabelecidos, mas regula matérias específicas do futebol feminino.

"Se o governo, se a federação, se os órgãos desportivos querem a igualdade de género como prioridade, então aqui está um documento estrutural, no qual trabalhámos durante mais de ano, que reúne as melhores práticas na matéria: Austrália e Suécia, que são referências no futebol feminino, e, mais próximo, França e Espanha, que são realidades mais recentes", explica.

"É um documento progressivo", diz Joaquim Evangelista, e que foi validado pelo professor João Leal Amado, uma referência no Direito Desportivo em Portugal, coordenou o trabalho da lei de praticantes desportivos".

Joaquim Evangelista acredita que o acordo coletivo de trabalho é consensual em quase tudo, "exceto nos salários". "Temos consciência de que é difícil, mas isto é uma ambição. Como presidente do sindicato não posso ser menos ambicioso relativamente às mulheres, não há um sindicatos dos jogadores e outro das jogadoras. Claro que a paridade não se atinge de um dia para o outro, e estamos disponíveis para discutir o assunto".

"A realidade da nossa competição é só há praticamente quatro clubes (Benfica, Sporting, Braga e Famalicão) com contratos profissionais, os restantes não têm. E o futebol feminino também tem de gozar desta estabilidade", considera. "Não aceito - e estas são as contradições do futebol português -, que por um lado estejamos a promover o futebol feminino, e por outro as condições que os clubes têm para oferecer sejam tão precárias. Isto é contraditório e não é aceitável".

O presidente do Sindicato de Jogadores admite que há clubes que não têm, pelo menos para já, condições para oferecer às jogadoras um contrato de trabalho, pelos encargos que isso representa. "Então, vamos colocar a questão de outra maneira: como posso oferecer um contrato a uma jogadora beneficiando da Segurança Social ou a nível de impostos? Porque o governo tem mecanismos para ajudar", sugere.

O problema, é que "há cubes pequeninos que não têm ambição, não querem sair dali, estão confortáveis. Mas as nossas jogadoras merecem mais". Então, "no mínimo, a Liga BPI tem de ser toda profissional. É o mínimo", considera o responsável.

E lembra quando, lá atrás, o preconceito também atingia o homens e o futebol era considerado uma distração, não uma profissão. "Os pais não queriam que os filhos jogassem futebol, queriam que eles estudassem. O jogador era menorizado. Também acabou por se impor pelo dinheiro que gera, naturalmente. Hoje o futebol tem os melhores jogadores, mas também tem os melhores médicos, os melhores economistas, os melhores juristas, os melhores fiscalistas. Porque paga".

"Somos um país muito pequeno, mas com muito talento para a prática desportiva. E, como dizia o outro, quando Deus distribuiu o talento não foi apenas pelos homens, foi pelas mulheres também. No futebol e noutras modalidades. É preciso dar às jogadoras condições para desenvolverem esse talento, que foi o que a federação fez. Porque houve um investimento estrutural para dar às jogadoras tudo o que é necessário para potenciar o seu rendimento: treinadores, médicos, fisioterapeutas, relvados, tudo".

"Mas ainda continua a haver atropelos laborais, falsos amadores, jogadoras a quem não é reconhecido o estatuto de profissional, grávidas postas de parte, dificuldade na conciliação dos estudos com a vida desportiva". É tudo isto que o novo acordo coletivo de trabalho quer ver regulado:

Salários mínimos e prémios por antiguidade: garantir a equiparação salarial entre homens e mulheres. São ainda propostos prémios a pagar pelos clubes em função da antiguidade das jogadoras ao seu serviço;

Proteção em situação de gravidez e maternidade: conjugar os direitos já consagrados na gravidez e maternidade para qualquer trabalhadora em Portugal com as melhores práticas internacionais no futebol feminino, garantindo a estabilidade do vínculo laborar, ou seja, o pagamento integral da retribuição da jogadora durante este período e a assistência, com infraestruturas adequadas para amamentação e acompanhamento dos filhos durante os treinos, estágios e jogos;

Assédio sexual e moral na relação laboral: clarificação das proibições legais relacionadas com assédio e direitos que assistem à jogadora vítima destas práticas, conferindo à entidade empregadora o ónus de implementar um protocolo de prevenção e de agir adequadamente no conhecimento destas situações;

Outros deveres especiais: aplicação do conhecimento científico existente no que respeita aos ciclos menstruais das jogadoras, privilegiando o bem-estar através da adequação do volume e intensidade de trabalho durante o período em causa.

Patrícia Gouveia: uma gravidez inesperada e uma proposta indecente

Patrícia Gouveia tem 35 anos, treze anos de diferença de Carla Couto. Começou a jogar com 15 anos, no 1.º de Dezembro, "o clube sensação da época, campeão nacional". Começou em 2003, nas sub-19, e rapidamente foi chamada a integrar a equipa sénior. Foi há 20 anos.

"O clube estava na melhor fase de sempre", recorda, foi campeão nacional 11 vezes seguidas. Era a equipa que mais ganhava, mas a competitividade não tinha nada a ver com aquilo que existe agora. Hoje a Liga BPI é muito mais competitiva", garante.

Do 1.º de Dezembro Patrícia Gouveia passou para o Futebol Benfica e daí, já no fim da carreira, para o Sporting. Pelo caminho uma experiência de um ano no estrangeiro, no campeonato italiano, no Chiasiellis.

"Senti uma competitividade muito maior, o futebol é muito mais físico e muito mais rápido do que era na altura em Portugal. Agora, Portugal também já evoluiu. Mas o futebol italiano sempre foi mais agressivo, mais exigente em termos de complexidade física, e a competitividade era sempre muito grande", assegura. "Lembro-me de as equipas que estavam em primeiro lugar jogarem com equipas do meio da tabela, ou até do final da tabela, e nunca serem jogos fáceis. Cresci muito lá". 

"Não é fácil jogar futebol no estrangeiro, tem de se abdicar de muita coisa. E acabei por voltar, porque estava a conciliar os jogos com uma carreira profissional, queria preparar um backup, um plano B para quando saísse do futebol", conta Patrícia.

Em termos salariais a diferença entre Portugal e Itália também era grande. "Foi a minha primeira experiência a receber, porque em Portugal nunca tinha tido nenhum contrato profissional, era amadora, não ganhava. Logo aí a diferença era enorme, estava habituada a não receber nada e fui para lá com um contrato profissional. Sei que entretanto também houve um grande salto, houve um esforço por parte da federação italiana para que as coisas evoluíssem, à semelhança do que tem acontecido em Portugal. Quanto mais clubes grandes conseguirem aparecer, melhor, porque isso só vai fazer aumentar o dinheiro para a modalidade".

No regresso a Portugal Patrícia voltou ao Futebol Benfica, onde foi por duas vezes consecutivas campeã nacional. Depois, "recebi o convite para entrar no Sporting. Aceitei, era a capitã de equipa na altura".

E é então que surge uma surpresa: "Uma gravidez muito desejada, mas não planeada". Na altura, Patrícia Gouveia já estava com um contrato profissional, "claro que não a ganhar aquilo que, provavelmente, algumas jogadoras ganham hoje. Nesse tempo houve até uma intervenção do sindicato para normalizar os contratos com as jogadoras, porque isso não estava definido, era novo", recorda. 

Quando decidiu ser mãe, Patrícia teve alguns constrangimentos no clube. "Uns dias depois de eu ter comunicado à direção e às jogadoras que estava grávida - e a recetividade foi muito boa por parte de todos os elementos da minha equipa, sempre cinco estrelas, o treinador, o professor Nuno Cristóvão, também -, sou surpreendida pelo contato de um membro da direção do Sporting, a querer substituir o contrato que eu tinha, e que estaria em vigor por mais dois anos, por um contrato de seis meses e um quinto do valor".

Patrícia conhecia os seus direitos e não abdicou. "Comuniquei de imediato que não fazia sentido nenhum, além de ninguém me ter passado aquela mensagem antes. Acabei por falar com o Sindicato dos Jogadores, que me ajudou na articulação com o clube, e a situação acabou por ficar sanada. O próprio Sporting Clube de Portugal e as pessoas que estavam acima perceberam claramente que aquele não era o caminho".

A situação ficou resolvida, mas a mágoa acabarei por levar sempre comigo". Afinal, "no momento mais feliz da minha vida, que foi a gravidez, acabei por ter essas chatices e problemas, quando o que queria era festejar e estar tranquilamente com a família e os amigos. Essa foi a parte menos boa", recorda.

Nasceu a Constança, hoje com cinco anos, e, "quatro ou cinco meses depois, regressei aos treinos". "Foi particularmente difícil, estava a amamentar e tinha de articular isso com os treinos, o que nem sempre é fácil. Lembro-me de, nas primeiras semanas, dar por mim a treinar e, de repente, sentir a subida do leite, uma coisa na qual as pessoas normalmente não pensam, mas que acontece. E lembro-me de sair do treino, já depois de ter tomado banho, e de precisar de tirar o leite com urgência. Mas o nosso corpo adapta-se". 

Quando ficou grávida, patrícia Gouveia recebeu uma proposta de um membro da direção do Sporting: reduzir o contrato de dois anos para seis meses e receber um quinto do valor previsto

O que levou Patrícia a abandonar a competição não foi a gravidez, mas um problema de saúde que a gravidez pode ter exacerbado ou contribuído para agravar. "Tenho um problema crónico ao nível dos pulmões e a minha doença piorou depois da gravidez. Comecei a ficar com algumas limitações. Tive este revés, não consegui voltar da melhor forma por problemas de saúde. E foi esse o principal motivo por que acabei a minha carreira, em 2019. Abandono o relvado, mas não saio do Sporting nesse momento, o clube convida-me para ser team manager, figura que não existia no futebol feminino".

Patrícia Gouveia sempre teve uma carreira dual, sempre jogou e trabalhou ao mesmo tempo, como a maioria das jogadoras. "Trabalhei durante muitos anos na área bancária, neste momento estou na área seguradora". Na verdade, confessa, "quando regressei de Itália já tinha tido a experiência que desejava. Queria crescer como jogadora, mas queria também crescer pessoalmente. Depois disso, já tinha experimentado todas as conquistas, queria dar outro salto, crescer na seleção nacional. Quando sinto que não iria evoluir mais, pensei que teria de voltar à minha profissão, porque para continuar a trabalhar numa carreira que não é o futebol, e que é aquilo que me vai dar sustento, ou era então ou seria muito difícil voltar ao mercado de trabalho".

Liga Feminina de Futebol: Sporting vs Valadares
Liga Feminina de Futebol: Sporting vs Valadares Patrícia Gouveia recebe o título de campeã nacional, em 2018, quando representava o Sporting © 2018 LUSA - Agência de Notícias de Portugal, S.A.

Quando passa a team manager, aos 28 anos, já estava novamente a trabalhar na sua área profissional, a seguradora onde está atualmente. "Tinha dois trabalhos, o de team manager, no Sporting, e na seguradora. Trabalhar só no Sporting não me compensava financeiramente, para mais com outro tipo de despesas, com outras responsabilidades. Sei que hoje algumas jogadoras dos clubes maiores já conseguem viver bem com o seu contrato de trabalho, mas nada que se compare com um jogador de futebol masculino. E acho que ainda estamos a anos luz disso".

Admite que "já faltou muito mais" e que Portugal "já deu um pulo bom para mudar as coisas". E fala na liga inglesa e na aposta nos patrocínios: "Em Portugal, quando houver uma aposta nesse sentido, acredito que os salários possam ser mais iguais, mas neste momento ainda estamos longe. No entanto, a UEFA e a FIFA estão a ir ao encontro desta realidade, e, se os clubes querem manter-se em competições europeias, têm de ter obrigatoriamente futebol feminino. Isto vai obrigar a que todos se mobilizem para criar soluções", acredita.

"Sei que hoje algumas jogadoras já conseguem viver bem com o seu contrato de trabalho, mas nada que se compare com um jogador do futebol masculino"Patrícia Gouveia

"Esta geração de raparigas nos 15 ou 16 anos vai poder pensar no futebol de forma diferente, mas neste momento não é possível. Temos de ter sempre um plano B, e acho importante dizer isto: primeiro acabar os estudos, completar o ensino, tirar uma licenciatura e ter um plano alternativo".

Bruna Morais: o regresso à competição aos 30 anos

Se Patrícia Gouveia deixou o futebol aos 30, é agora aos 30 anos que a jogadora Bruna Morais regressa à competição. Natural de Castro Daire, Viseu, vive há oito anos em Lisboa. Apaixonada desde sempre por futsal, foi federada durante 13 anos, campeã distrital mais de seis vezes. 

Foi chamada à seleção nacional e disputou um torneio na Rússia, em 2012. Também integrou a seleção nacional de futebol A e sub-19, jogou contra o País de Gales, Hungria, Arménia e Áustria, entre outros. A sua primeira internacionalização, de um rol de mais de vinte, foi na época 2008/2009, e jogou com Carla Couto.

Até certo ponto, a sua história é igual a tantas outras: começou no desporto escolar e acabou por se entusiasmar nos jogos inter-escolas. A oportunidade de jogar numa equipa federada chegou aos 13 anos e desde então foi sempre a competir, até aos 25 ou 26 anos. 

Conversamos depois de um treino, perto das 23:00. "Infelizmente, tive uma lesão do ligamento cruzado, que me afastou do futebol. Felizmente, de então para cá houve uma evolução do apoio médico e da fisioterapia, coisa que há dez anos não havia. Mas fui bem tratada pelo seguro do clube e depois da operação estive um ano a fazer recuperação".

Nesse tempo, "tive de começar a trabalhar para sobreviver, o futebol não era pago". Hoje é chefe de cozinha num hotel. "Quando tinha uns dez anos perguntaram-me o que queria ser e respondi "jogadora de futebol". Hoje estou numa área completamente diferente, jogo por diversão".

Há umas semanas, Bruna Morais recebeu um convite especial para regressar ao futebol de onze, e vai voltar a competir. A equipa é nova, a Associação Desportiva Pastéis da Bola, um clube recém criado em Marvila. "Estamos agora numa fase de apuramento para subir de divisão".

Bruna diverte-se como se estivesse num dos grandes do futebol. "Há todo um processo de integração na equipa e está a ser interessante, porque as outras jogadoras acabam por ser todas mais novas do que eu - e não é que eu seja velha, tenho 30 anos, sou jovem. A equipa tem muitas raparigas com imenso potencial, imensa capacidade". 

A jogadora-chef vibra com "o feito histórico que a seleção nacional de futebol feminino acaba de alcançar" e garante que "o investimento que Portugal está a fazer na modalidade faz com que a esperança aumente". Diz quem sabe o que custa ter dois trabalhos, o dos treinos e dos jogos e o que sustenta a vida. "O futebol é uma espécie de segundo emprego, chegamos a casa por volta da meia-noite" e, no seu caso, "tenho de me levantar às seis da manhã".

"Saber que agora as jogadoras podem ter um futuro profissional dá ânimo à nova geração", diz Bruna Morais. "Pode compensar todo o esforço".

Jogar não lhe deu um contrato profissional, mas "deu-me bastantes bases para o mundo do trabalho". Hoje, "faria tudo igual. Se calhar, olho para uma Ana Borges ou para uma Jéssica Silva, com quem joguei na selecção nacional, e gostava de estar ao lado delas a competir".

Não está, mas aos 30 anos regressou aos relvados e treina três vezes por semana, com jogos ao fim-de-semana. A equipa técnica é toda masculina, "à excepção da fisioterapeuta, que é mulher". Mas, quem sabe um dia, em breve, também isso mude.

Bruna Morais é a favor das quotas nos órgãos diretivos, porque acabam por forçar uma situação que de outra forma talvez não acontecesse tão depressa. E tem fé numa progressão significativa nos próximos dois anos: "Com a conquista da seleção, o futebol feminino português vai ser olhado com outros olhos, o que é bom. Pelo menos, quero acreditar que será assim. Acho que vai haver cada vez mais jogadoras federadas, mais raparigas a querer competir, os clubes vão acabar por abrir mais escalões, até infantis e iniciados, que hoje são equipas mistas".

E deixará de ser estranho para um miúdo de cinco anos olhar para uma fotografia antiga e descobrir que aquela é, há alguns anos, a sua tia e madrinha com a camisola das quinas e a representar Portugal no futebol feminino.