No dia cinco de outubro, um país a meio gás para celebrar a implementação da República, focado nos discursos ou simplesmente no dia de fim de semana extra que o feriado ofereceu, foi apanhado de surpresa. Em Itália, um português acabava de passar para a frente na tabela geral do Giro.

Ninguém poderia imaginar, nem nas melhores previsões, que João Almeida, ciclista da Deceuninck-Quick Step, um jovem de 22 de anos, natural de A-dos-Francos, nas Caldas da Rainha, que não estava sequer escalado para participar na prova, tendo sido chamado após uma série de ausências de outros colegas de equipas provocadas pela atual situação pandémica, fosse passar 15 dias à frente de uma das três maiores provas do ciclismo mundial, logo na terceira etapa. Após a subida ao Etna, momento em que foi condecorado com a camisola rosa, o próprio dizia: "estou super feliz, sem palavras".

A improbabilidade não quer dizer, no entanto, que o cenário não tenha passado pela cabeça de João Almeida. Não tivesse este, antes de rumar a Itália, sido provocado, em tom de brincadeira, por Célio Apolinário. O treinador do jovem caldense nos tempos de cadete, primeiro no clube de ciclismo José Maria Nicolau, depois no Bombarralense, desafiou-o a bater o recorde de Acácio da Silva, o único ciclista português que tinha vestido a camisola rosa no Giro.

Na altura João riu-se, conta Célio ao SAPO24, naturalmente longe de imaginar que, ao contrário do feito conseguido por Acácio em 1989, curiosamente na mesma etapa, a segunda pele 'rosa' iria viver sobre si durante muito mais tempo. Com um quarto lugar na final, não só roubou o recorde a Acácio, como também o fez a José Azevedo, que em 2001 tinha terminado a Volta a Itália na quinta posição, e ainda se tornou no primeiro ciclista com menos de 23 anos a manter a maglia rosa durante tantos dias.

“Quando ele vestiu a camisola rosa as pessoas julgavam que um dia ou dois depois desaparecia de lá [da frente]. E o que é certo é que se aguentou”, conta o antigo treinador, para quem a capacidade de foco e trabalho de João, na manutenção da camisola, não foi surpresa.

Foi com a mesma subtileza com que durante o Giro saltou para o estrelato que João, apenas com 14 anos, captou a atenção de Célio e, mais tarde, do selecionador nacional José Poeira.

Conta o primeiro que em duas provas de ciclismo, uma na Venda do Pinheiro e outra em Lousada, reparou num jovem cadete que na altura militava na EcoSprint, uma equipa das Caldas da Rainha “mais virada para a BTT". Apesar de não andar na frente a discutir a prova “era um atleta que mesmo a meio do pelotão lutava até ao fim”, relembra. “Foi aí que eu vi que ele podia vir a ser um grande ciclista e o convidei a integrar a minha equipa”, conta Célio Apolinário.

João Almeida passava a ser um ciclista do clube José Maria Nicolau, no Cartaxo, onde passou dois anos sob a alçada de Célio e onde começou a vencer alguns títulos de maior notoriedade, como o de campeão nacional de contrarrelógio ou de estrada. O sucesso fez a parceria prolongar-se por mais um ano, com treinador e ciclista a mudarem-se juntos para o Bombarralense.

créditos: Rodrigo Mendes | MadreMedia

Célio, que também tem um passado no ciclismo profissional, correu no Carnide nos anos 90, não poupa elogios ao jovem João. “Sempre foi um lutador, um miúdo muito aplicado em tudo e um moço humilde. Mesmo que não esteja na frente, nunca baixa os braços. [O João] é aquilo que se vê hoje. Focado naquilo que quer, nos treinos, no método de trabalho…“, garante.

Foi precisamente quando João estava no Cartaxo que Célio Apolinário recebeu uma chamada do selecionador nacional de ciclismo. José Poeira estranhou, quando desenhava a convocatória seguinte, ver o nome de um jovem, sem registos anteriores, a conseguir um sétimo lugar numa Volta a Portugal de cadetes.

“Na altura até já tinha a lista mais ou menos feita, com 12 cadetes. Mas pensei: é só mais um. Depois, nos testes progressivos, vimos que ele tinha valores muito bons, acima da média do grupo, e até acima da média de outros grupos que tínhamos como referência de outros anos”, conta o selecionador ao SAPO24.

Poeira lembra-se de um dos primeiros momentos em que a qualidade do jovem ciclista ficou bem patente. Num treino conjunto de juniores e cadetes, o selecionador pediu a João que atacasse a subida. Nenhum cadete conseguiu apanhá-lo e foram poucos os juniores a fazê-lo.

“Nesse ano [2016] já foi campeão de contrarrelógio e campeão nacional de estrada, ganhou uma série de corridas e começou a ser o João que passámos a selecionar para os juniores e para sub-23. [Já em 2018] Correu a Volta à França do futuro onde foi sétimo e mostrou o seu melhor nível contra muitos ciclistas que pertencem a equipas pro tour”, relembra José Poeira.

Para o selecionador e treinador, a capacidade mental do jovem ciclista é um dos seus maiores atributos. “Não se dá por vencido. É ambicioso, é calculista, tem um querer muito grande na forma de pensar, na forma de agir. Claro que há momentos melhores e outros não tão bons, mas ele supera sempre esses momentos menos bons com a força de vencer. Quando está bem consegue ultrapassar-se. É muito forte mentalmente. Depois tem outra particularidade, a forma como corre, a forma como se coloca, não é distraído, é atento à corrida. Isso faz com que os adversários vejam nele uma pessoa muito responsável, que está sempre no sítio certo, sempre junto aos adversários principais”, comenta Poeira.

“O João sempre foi um miúdo que trabalhou para estar onde está. Ele sempre foi esforçado, com muito valor, com muito potencial. Tive atletas muito idênticos ao João que poderiam até estar ao pé dele neste momento e que não conseguiram meter em prática o valor que têm. É uma questão de mentalidade e de querer”, acrescenta Célio.

Para José Poeira, o que João Almeida conseguiu na Volta a Itália é algo "monumental". "O Rui Costa ganhou três Voltas à Suíça, mas são 10 dias. Agora, uma prova de três semanas... O Agostinho fez três vezes pódio na Volta a França, mas nunca liderou a corrida. Estar líder tantos dias é histórico para nós, nunca nenhum português conseguiu tal feito. Mesmo não ganhando é um feito muito grande. O facto de ainda ser um jovem faz com que se possa pensar que no futuro possam acontecer mais situações destas. A equipa aposta nele e isso motiva-o, faz com que ele descubra que é um líder", comenta.

Um país que parece estar apaixonado por Joaquim Agostinho há uma vida, foi, nos últimos anos, deixando-se levar por paixonetas de quando em vez. Foi Nelson Oliveira, Rui Costa ou Sérgio Paulinho. Mas ter um jovem de 22 anos a fazer em Itália o que nunca outro português fez, dá esperança ao país e à modalidade.

"Encontrou-se um campeão para as discussões das grandes provas. Ele é muito novito, vai ter de aprender a lidar com esta situação. Um dia ele poderá estar na discussão de uma Volta à França, dependendo de como a equipa gere as coisas e dos seus resultados", prevê José Poeira para Almeida que, no fim do Giro, já falava em vir a voltar a vestir a maglia rosa.