“Se não for o João (Almeida) é o Nelson (Oliveira). Tem de ser um português a ganhar”, exclamava uma mãe para a filha, provavelmente saída do colo materno no verão passado e que aproveitou o sol de agosto de 2024 para mergulhar na praia da Torre, em Oeiras, reta da meta da primeira etapa da 79.ª Volta a Espanha em bicicleta.
O prognóstico feito na passagem subterrânea da avenida Marginal, por onde, em cima, no asfalto, voavam a conta-gotas os ciclistas, não foi certeiro, mas não andou longe.
Brandon McNulty (UAE Emirates) venceu o contrarrelógio de 12 quilómetros (12’35´´28) que ligou Lisboa, Mosteiro dos Jerónimos a Oeiras, praia da Torre, aos pés do Forte São Julião da Barra.
O norte-americano é primeiro líder da Vuelta, deixando o seu companheiro João Almeida (10.º) a nove lugares de distância e a 19 segundos (12´54´´94).
O ciclista que tem sangue das Caldas da Rainha, por sua vez, terminou a dois segundos do esloveno Primoz Roglic (BORA-hansgrohe), três vezes vencedor da Volta a Espanha e forte candidato a vestir a camisola vermelha em Madrid, a 8 de setembro.
Nélson Oliveira (Movistar), diploma olímpico em Paris 2024, 21 grandes voltas nos pedais e 10 Voltas a Espanha no dorsal, somou mais um segundo (12’55’´81) e um posto classificativo (11.º) que o português que todos queriam ver e que fizeram questão de demonstrar do local de partida à chegada.
Mas isso foi o fim das pedaladas que atingiram o novo recorde histórico da prova que se realiza desde 1935 (57,2 km/h de média do vencedor), um pouco acima da velocidade legal numa via tendencialmente caracterizada pelo “para e arranca” às horas de ponta durante a semana ou em concorridos fins de semana de verão.
Na Praça do Império, a banda das Força Aérea tocou os Hinos de Portugal e Espanha
De regresso à casa de partida, bem cedo a presença da grande volta se fazia sentir em diversas infraestruturas e movimento das equipas entre as imediações do Centro Cultural de Belém (CCB), Mosteiro dos Jerónimos, Padrão dos Descobrimentos e a casa dos Pastéis de Belém, símbolos da portugalidade.
André Cabica e Rui Ferreira, fardados de azul a preceito e trompete na mão, membros da Banda de Música da Força Área, apressavam-se por entre os caminhos do Museu da Marinha até à Praça do Império. “Fomos recrutas há 20 anos na Forca Aérea e integrados na música”, detalhou André Cabica (apontou para a placa ao peito).
“A nossa tarefa é tocar os Hinos, de Portugal e de Espanha”, adiantou Rui Ferreira ao SAPO24. “É o essencial do nosso trabalho, tocar os hinos em sessões solenes, receções a figuras de Estado ou cerimónias de Estado”, acrescentou, pouco antes de se juntarem a outros membros da banda e de seguirem (todos) os caminhos que vão dar ao ponto de partida da Volta a Espanha, edição 79.
City breaks para ver Fátima, Mosteiro dos Jerónimos e a La Vuelta
O público, heterogéneo e multinacional, acotovelava-se entre os gradeamentos que circundam os jardins em frente aos Jerónimos.
Dividia-se entre portugueses fãs de ciclismo e muitos turistas que passavam o tempo entre refrescar corpos para baixar a temperatura corporal ou ver monumentos embrulhados num city break e ainda quem, vindo de fora das fronteiras nacionais, aterrasse em Lisboa para ver o pelotão de 176 ciclistas seguir rumo a Espanha.
De Madrid vieram Raquel e Alberto e as duas filhas do casal. “Viemos ver La Vuelta, mas não só”, vincou Raquel, a quem o marido cedeu a palavra. “Em três dias fomos a Fátima, Ourém e Nazaré”, apontou para um mapa imaginário na tentativa encurtar o percurso feito em tão poucos dias. “A zona aqui à volta”, atirou.
“Sou aficionada e já fui comissária em provas mais pequenas. A minha irmã também comissária e já fez duas Vueltas”, especificou, deixando escapar que o “ciclismo é uma adição de família”, mas que ainda não conquistou as veias de Alberto.
Camile não entra no pelotão das duas rodas. Aliás, desconhece mesmo. “Viemos de Faro, agora três dias em Lisboa e vamos embora domingo (hoje)”, adiantou esta francesa acompanhada de uma amiga (Chloe), surpreendidas com o aparato às portas do sítio que iam visitar. “Não sabíamos que tínhamos isto aqui (não sabe o que é nem do que se trata) e vamos ao Mosteiro dos Jerónimos. Ponto final”, disse, a sorrir.
Os fãs portugueses de João Almeida ... à partida
O calor apertava junto a linha de saída dos ciclista e três pistolas de água dava conta do recado da rega que, nem sempre, era pedida.
Indiferente ao sol e ao forte vento, Viegas conta a sua história. “Recebi do meu pai uma bicicleta no meu exame da 4.ª classe, em 1974 e nunca mais larguei”, confidenciou este veterano ciclista nas horas livres.
A residir no Canadá “há 37 anos”, de passagem pela terra natal, concelho de Cascais, sentiu-se abençoado com as coincidências da vida. “Coincidiu a Volta a Espanha estar daqui” e apressou-se a por uma licra para pedalar até à partida e desta, seguindo “pelo paredão”, até à reta da meta.
Sem coincidências, a família Mário e Carla Manso, de Almancil, Algarve, testemunhou a segunda vez que a Volta a Espanha arrancou de Portugal e de Lisboa, não o tendo feito na primeira em 1997, numa manobra de promoção portuguesa da Expo98, na estreia da grande prova espanhola na travessia de fronteiras.
A “culpa” foi da filha Carolina, “atleta juvenil de segundo ano” do clube de Almancil que “participou na prova de manhã”, prova aberta ao público em geral. Juntos “vão ver a chegada a Ourém”, antecipam.
O tic-tac até ao início da 79.ª edição e do primeiro corredor a partir – Luis Ángel Maté (Euskaltel-Euskadi) – demorava a passar e para animar quem estava longe da linha de partida, mas perto, muito perto, de algumas tapas espanholas, Josep, o speaker responsável por uma das zonas de animação só para alguns convidados, atropelava o vento que soprava com um espanhol bem audível do Padrão dos Descobrimentos aos Jerónimos. “É a minha primeira vez”, confessa o catalão, de Barcelona, que não perde tempo a dar informações a todos.
Às 16h09, cinco aviões da Forças Área rasgaram os céus e, nem um minuto depois a banda da Força Área tocou os dois hinos que poucos, muito poucos dos presentes àquela hora, acompanham em alta voz.
Sons à parte, no meio da torre de babel, o vento trouxe palavras em português. “Sou fã de ciclismo e vejo tudo pelo Eurosport, Tour, Giro e clássicas. É a primeira vez que vejo ao vivo a Vuelta”, confessa Rui Araújo, de Guimarães (mas vestido à Benfica) que pouca atenção dá à prova que percorre o país. “Não me entusiasma a Volta a Portugal”, dispara, secamente, o vimaranense acompanhado da mulher, Catarina e do filho, Diogo, de passagem por Lisboa. “Viemos apoiar o João “Bota Lume” Almeida”, exortou o fã Rui Araújo, antes de seguirem viagem para sul. “Vamos domingo para o Algarve de férias e fizemos uma paragem de um dia”, sorriu Diogo.
...e à chegada
Se, à partida da Volta a Espanha, entre uma população multicultural, o apoio ao ciclista português das Caldas da Rainha conseguia destacar-se, à chegada, as nacionalidades afunilavam na mesma proporção que do volume crescente dos aplausos direcionados ao ciclista que muitos apontam como um dos potenciais vencedores.
Os irmãos Simão e Rui, acompanhados do pai, Jorge, vindos de Fafe, terra ligada ao ciclismo e do primo, Alexandre, de Lisboa, demonstravam bem a razão de ali estarem.
Duas bandeiras portuguesas, camisolas brancas com uma inscrição “bota lume” e meias em chamas a condizer. “É a primeira vez a ver a Volta a Espanha ao vivo. Só acompanhamos na televisão”, frase decorada com um toque de antecipação do que vira a seguir-se.
É que a claque que dava nas vistas não deixou que Olivier Bonamici passasse despercebido, obrigando-o o popular comentador francês do Eurosport a assinar as suas camisolas das inscrições de apoio a João Almeida.
Vieram ver a Vuelta passar e vão andar a vê-las mais dois dias. “Domingo, vamos estar em Cheleiros, Sintra, depois seguimos para Ourém. Faremos as etapas em Portugal”, detalhou Alexandre, o responsável por fazer com que esta família ficasse “doente” por ciclismo. “Comecei a ver o Sérgio Paulinho, nos Jogos Olímpicos”, recordou.
Os ciclistas iam chegando separados por segundos, mas quase todos os olhares estavam na hora de saída de João Almeida (18h55) do Mosteiro dos Jerónimos e de chegada à Praia da Torre.
Chegou quase 13 minutos depois. Bandeiras ao alto, palma das mãos a “partirem” a publicidade estática deram as boas-vindas ao ciclista português que passar a uma velocidade supersónica e que não lhe permitiu escutar as palavras de apoio.
Parado junto ao carro de apoio da UAE onde ficaria a pedalar sem sair do mesmo sítio durante alguns instantes para arrefecer os músculos retribuiu e acenou aos muitos apoiantes presentes antes e depois de conversar com jornalistas.
Entre gritos “Bora, João Almeida” e “João Almeida, lá, lá lá...”, deixou promessas à nação. “Pode esperar que dê o meu melhor, há muitos fatores que podem decidir a corrida. É a primeira vez que faço o Tour e a Vuelta, estou em boa forma” e será “dia a dia e controlar aquilo que posso”, explicou aos jornalistas submerso entre órgãos de comunicação social e adeptos.
Sem a presença dos três Deuses das duas rodas na travessia por Espanha - Pogacar, Vingegaard e Evenepoel – Almeida sente-se endeusado pelos portugueses.
Hoje, o ciclista natural de A-dos-Francos, sabe que o pelotão vai passar pelas Caldas da Rainha (14h44m), quase à porta de casa, e não treme.
“Estou mais que preparado, vai ser uma experiência única na minha carreira”, finalizou o João “Bota Lume” Almeida.
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