1990. 28 de abril
A música “Vogue”, de Madonna, era a grande sensação da altura, assim como os filmes "Tartarugas Ninja" e "Pretty Woman". A União Soviética ainda existia, Margaret Tatcher era a primeira-ministra do Reino Unido. O telescópio Hubble tinha sido enviado para o espaço há quatro dias. Dali a menos de um mês, o recorde da transferência mais cara do mundo iria ser batido pela Juventus com a contratação de Roberto Baggio à Fiorentina por cerca de 12 milhões de euros. Portugal estava a menos de um mês de ver um FC Porto, com Vítor Baía e Domingos Paciência como jovens promessas, sagrar-se campeão, e a 30 dias de ver o Estrela da Amadora, treinado por João Alves, erguer a Taça de Portugal. Aníbal Cavaco Silva era o primeiro-ministro e Jorge Sampaio o Presidente da República. Cristiano Ronaldo tinha cinco anos, Steven Gerrard 10. Mo Salah, Roberto Firmino, Sadio Mané, Alisson Becker ou Virgil van Dijk ainda não existiam.
O vigésimo oitavo dia do mês de abril do primeiro ano da década de 90 é uma data longínqua, estendida na memória dos adeptos do Liverpool, passada de geração em geração. Foi nessa data que os Reds, comandados pelo mítico Kenny Dalglish, venceram o 18.º título de campeão inglês, sem saberem, claro, o interregno de três décadas que aguardava a equipa da cidade dos Beatles.
A data é distante, mas aquele jogo do título está bem presente. O Liverpool recebia em Anfield Road o Queens Park Rangers. No minuto 14 sofreu um golo que ameaçava adiar as celebrações para a jornada seguinte, não fosse Ian Rush, a cinco minutos das equipas irem para os balneários descansar no intervalo, dominar a bola de peito dentro da grande área, descaído sobre o lado direito, e atirando-a para o fundo da baliza de David Seaman. Após o intervalo, um golo de John Barnes de grande penalidade consumava a reviravolta e fazia a festa dos adeptos. O Liverpool era campeão inglês, fazia aumentar o número de troféus do principal escalão do futebol de Inglaterra para 18. Ninguém tinha mais títulos que os Reds. Estávamos em 1990, a Premier League como a conhecemos não existia e o campeonato era então conhecido como Football League First Division.
Desde então até hoje passaram mais de 30 anos e 51 dias. O contador não pára e asfixia os adeptos do Liverpool, notáveis, reconhecidos no mundo inteiro pelo incansável apoio à equipa e por fazerem de Anfield Road um dos estádios com ambiente mais intenso e apaixonado em que uma equipa visitante pode jogar.
Se 30 anos parece um período longo, esse tempo traduzido em épocas desportivas parece uma eternidade. Verdade seja dita, no entanto, que nas últimas três décadas não foram de total insucesso desportivo para um clube que venceu duas Ligas dos Campeões (2004/05 e 2018/19), uma Taça UEFA (2000/01), três Supertaças Europeias (2001, 2005 e 2019), um inédito Campeonato do Mundo de Clubes (2019), três FA Cup (1991/92, 2000/01, 2005/06) e quatro Football League Cup (1994/95, 2000/01, 2002/03, 2011/12).
O problema é que a memória destes feitos era engolida pelas imagens da escorregadela de Gerrard no jogo diante o Chelsea, na temporada 2013/14, que ofereceu o golo aos Blues que venceram o jogo e deitaram por terra a possibilidade de Brendan Rodgers vencer a Premier League com uma armada que incluía nomes como Luis Suárez, Sterling ou Philippe Coutinho. A mesma memória era também poluída pela estatística que relembra os fãs do Liverpool de que o Manchester United chegou ao 20.º título com Alex Ferguson, isolando-se em Inglaterra como o clube com mais campeonatos. Ou ainda pelo último campeonato perdido para o Manchester City, depois de uma campanha exímia em que os pupilos de Jürgen Klopp somaram apenas uma derrota. O título mais desejado era o campeonato e as três décadas de espera abafaram as glórias dos adeptos dos Reds da mesma maneira que estes abafam o som do apito inicial do árbitro em Anfiled quando entoam a "You’ll Never Walk Alone".
Se quisermos resumir, em linguagem futebolística, a espera de um adepto do Liverpool pelo momento de hoje, basta explicar que desde que a última vez que os Reds foram campeões, Peter Schmeichel, "O Grand Danois" assinou pelo Manchester United, ganhou a liga cinco vezes, foi para Portugal, foi campeão nacional pelo Sporting CP, teve um filho, o filho estreou-se na Premier League e venceu-a ao serviço do Leicester.
30 anos é muito tempo, mas as picardias entre adeptos e a proliferação de memes na internet fazem com que pareça muito mais. Mas tudo isto para quê? Para dizer que acabou. Este caminho longo, tantas vezes angustiante, chegou hoje ao fim quando o Manchester City foi incapaz de vencer o Chelsea, em Stamford Bridge, e a matemática 'chutou', a sete jornadas do fim, Pep Guardiola e os seus pupilos para fora das contas do título.
Finalmente, o Liverpool é campeão inglês, pela primeira vez no atual formato da Premier League. O feito é tão grande, desportivamente, que o SAPO24 viu-se obrigado a consultar um 'tradutor' para o entender, alguém que vestiu a camisola dos Reds, que jogou em Anfield e que diz, com todos os dentes que tem na boca, que a não há pandemia que afete a felicidade, partilhada de geração em geração, que hoje um adepto do Liverpool sente.
Senhoras e senhores, Abel Xavier.
De Houllier a Klopp: a construção de um ADN de dimensão mundial
Quando a equipa de Dalglish venceu o QPR e sagrou-se campeã inglesa em 1990, Abel Xavier era uma das jovens promessas do futebol português. Com 17 anos, ainda longe de imaginar a carreira que teria pela frente, fazia parte dos quadros do Estrela da Amadora que nesse ano venceu a Taça de Portugal. Só 10 anos depois é que o defesa chegaria a Inglaterra, primeiro para representar o Everton, eterno rival dos Reds, e depois, finalmente, o Liverpool.
Quando Abel Xavier foi apresentado ao lado de Gérard Houllier, o clube estava há 12 anos sem vencer a liga, embora na temporada anterior tivesse conquistado a Taça UEFA numa final decidida nas grandes penalidades diante do Alavés. O português ficaria na cidade dos Beatles, agora vestido de vermelho, durante época e meia, período em que conquistou uma Supertaça Europeia, uma Supertaça inglesa e uma Taça da Liga inglesa.
"O meu Liverpool foi um Liverpool de uma cisão clara com o passado. Eu entrei na gestão de Gérard Houllier, que teve carta branca para fazer uma restruturação total naquilo que era o término de um ciclo de uma estrutura britânica, de costumes mais próprios, mais vocacionados para dentro, para passar a assumir-se como um clube de dimensão internacional. Não tenho dúvidas nenhumas de que a grande transição de fissura do passado em relação ao Liverpool de outras gerações teve a ver com Houllier, que aumentou as estruturas, lutou por um complexo do melhor que há a nível mundial. Obviamente que ao longo destes anos vários treinadores conseguiram potencializar a estrutura, sendo que quem melhor a entendeu foi Klopp", diz o antigo internacional português.
Com Houllier no comando, na primeira época de Abel Xavier ao serviço dos Reds, o Liverpool ficou em segundo lugar, atrás do Arsenal de Arséne Wenger, que dois anos depois conseguiria o feito nunca antes alcançado de vencer o campeonato inglês sem qualquer derrota.
Abel conta que aquela 'medalha de prata', e até a campanha na Liga dos Campeões, onde chegaram até aos quartos-de-final, fase em que foram eliminados pelo Bayer Leverkrusen (que chegaria à final de onde saiu derrotado pelos Galáticos do Real Madrid), fizeram com que o seu coração continuasse a bater pela equipa de Liverpool. Por isso, esta é uma noite de celebração de um grande feito.
"Se nós analisarmos a história do Liverpool, a maior parte dos adeptos locais vem de uma classe laboral de grandes dificuldades, a zona de Liverpool é uma zona que é preciso ser reconhecida como uma zona de classes humildes", explica, sublinhando a importância desta conquista para a comunidade local, embora reconheça que hoje o clube vai muito mais além, assumindo-se como um emblema de dimensão mundial. "Embora não possa haver uma festa física e que seria um grande evento no centro da cidade de Liverpool, a satisfação interior, acumulada, dos adeptos é muito grande. Foram tantas gerações... Finalmente Klopp conseguiu: ao fim de quatro anos transformou definitivamente o clube", diz.
Para Abel Xavier não há dúvidas de que este título, de que este ADN de um novo Liverpool que extravasa as fronteiras inglesas, começou com o treinador que o acompanhou na passagem por Anfield, Houllier, e que o treinador alemão foi quem melhor soube incorporar esse espírito. "Nós sabemos que somos fortes, mas não falamos das nossas forças. Isto é muito importante quando se quer construir estruturas fortes, quando se quer construir uma equipa forte. Nós reparamos que Klopp, ao longo de quatro anos, conseguiu estar dentro desse espírito. Klopp sempre viu que era importante trabalhar os aspetos coletivos, não só na preparação da equipa como na identidade de jogo e, como nós vimos, esta equipa do Liverpool é marcada por uma intensidade a nível coletivo. Não podemos propriamente dizer que tem na sua equipa as maiores referências do mundo a nível individual, mas tem a melhor equipa a nível coletivo", diz.
O Liverpool de Jürgen Klopp, uma breve história
"É preciso recuar até ao primeiro dia de Jürgen Klopp em Liverpool, quando este disse que era preciso transformar a descrença que reinava no clube em crença", para podermos perceber que o projeto que o treinador alemão, que se notabilizou ao serviço do Borussia Dortmund, criou em Inglaterra. Para Tomás da Cunha, comentador desportivo da TSF e Eleven Sports, o sucesso de Klopp assenta em três grandes grandes pontos: carisma, conhecimento tático e precisão do clube nas idas ao mercado.
"Foi um processo muito longo porque o Liverpool precisava acima de tudo de um projeto que não tinha. Era um clube que tinha ficado perto do título com Brendan Rodgers, mas quase de forma episódica, porque depois não houve sequência. Agora podemos reparar não só que o Liverpool tem andado em finais europeias de forma consecutiva, como também lutou pelo título no ano passado, fez uma época estrondosa e só não foi campeão porque havia o City. Desta vez foi o culminar de um trabalho longo e um título justo para o Liverpool", explica Tomás.
O futebol propriamente dito
Os Reds souberam ser uma equipa em constante evolução nestes últimos quatro anos em que estiveram sob o comando de Klopp. Uma equipa reconhecida, inicialmente, pela sua verticalidade, é hoje um conjunto que sabe pausar o jogo "quando é preciso, e muitas vezes tem sido habitual", sublinha Tomás. "Vemos o Liverpool a defender com bola, por exemplo, a acalmar o ritmo de jogo e isto é algo que não acontecia nos primeiros dois/três anos com Klopp ao comando. Aliás, a equipa técnica já destacou isso mesmo: à medida que os adversários iam conhecendo a forma de jogar deste Liverpool, foi preciso encontrar novas soluções e tornar a equipa mais completa em termos de recursos. Por isso, já não vimos um Liverpool tão vertical e tão desenfreado, embora mantenha naturalmente essa característica, passando a ser também uma equipa que sabe gerir o jogo com bola sempre que é necessário", analisa.
Para o comentador da TSF, esta é uma equipa com "muita influência dos dois laterais, tanto de Robertson como Alexander Arnold, tem também Firmino, um jogador que é um avançado, mas que é quase um número 10, em termos de influência ofensiva no último terço. E depois duas motas que atacam a profundidade e que são extremamente difíceis de travar, tanto Salah como Mané. Além disso, há uma imagem de marca que já vem do Dortmund de Klopp que é a pressão alta. O Liverpool quase sempre pressiona no meio-campo ofensivo, com muita intensidade, e isso condiciona muito o jogo de qualquer adversário".
Uma das maiores qualidades de Jurgen Klopp, assinalada por Tomás da Cunha, é a capacidade de ter formado uma equipa e não um conjunto de individualidades. Para isso "basta perceber que Henderson, um jogador algo discreto, tornou-se num dos melhores médios do mundo e uma figura indiscutível. Creio que Klopp tem essa arte para explorar o melhor de cada jogador, adequando, claro, à ideia de pressão alta, verticalidade. Henderson é um jogador muito importante não só na pressão alta, mas também com bola, um jogador que evoluiu muito. É uma das tais vantagens da passagem de Klopp pelo Liverpool, a forma eficaz como escolheu quase todos os reforços. Não há um jogador que possamos considerar um grande fracasso desde que Klopp está em Liverpool e isso destaca, claro, o mérito do alemão e do clube na abordagem ao mercado" que não contratou por contratar, mas sim "para acrescentar à ideia coletiva que Klopp levou para Liverpool".
No campeão, os destaques vão para....
Alexander-Arnold: um dos melhores laterais do mundo, um jogador com uma influência ofensiva seja para assistir de bola parada ou de bola corrida. É um jogador com uma capacidade de cruzamento notável que também é capaz de marcar golos de bola parada, enfim, é um lateral para durar muitos anos e uma referência pós-Gerrard que o Liverpool também precisava.
Sadio Mané: Primeiro andava um pouco na sombra de Salah, mas entretanto roubou-lhe o protagonismo e já é um jogador altamente valorizado e com influência clara nesta equipa do Liverpool.
Henderson: É muito importante na pressão alta, muito importante na equipa de Klopp. Com bola, tornou-se num jogador cada vez mais presente no momento ofensivo.
*escolha e seleção por Tomás da Cunha a convite do SAPO24
Um Liverpool que fica para a história
Quando a Premier League foi interrompida no dia 13 de março, devido à pandemia provocada pelo novo coronavírus, o Liverpool tinha 82 pontos em 29 jogos, somando 27 vitórias, um empate e uma derrota. Era um campeão praticamente anunciado e já tinha alcançado vários recordes que cravavam o seu nome na história: melhor arranque da história da Premier League (61 pontos em 21 jogos), mais pontos conquistados em 38 jogos (104 pontos, contabilizando a temporada anterior), maior número de vitórias consecutivas em casa (23) e conquista mais antecipada da liga (a sete jornadas do fim).
O eco do campeão
O Liverpool foi campeão no sofá e nestes tempos atípicos isso não é muito diferente de o fazer em campo. Com os estádios vazios, os Reds celebram um feito aguardado, e passado de geração em geração, distantes dos adeptos. Uma situação inglória para um grupo de pessoas que nunca deixaram de apoiar a equipa nestas últimas três décadas, mas que, garante Abel Xavier, em nada diminui a felicidade de cada sócio e simpatizante da equipa da cidade dos Beatles.
"Infelizmente, devido a esta pandemia, as pessoas não podem estar presencialmente mais perto da equipa para celebrar. Mas nós estamos a falar gerações e gerações de adeptos. Quando nós vamos a um estádio como o mítico Anfield Road, nós vemos desde crianças a pessoas muito mais velhas que acompanham os Reds desde outros tempos. Não tenho dúvidas de que vai ser um campeonato muito celebrado em Liverpool por este acumular de emoções que percorreu tantas gerações. Em Inglaterra, nomeadamente em Anfield, não são só adeptos que vão aos estádios, vão também famílias. A questão do desporto está muito enraizada numa cultura muito própria e por isso é que o jovem que viu o Liverpool numa determinada altura, compreende a sua história: porque esta é-lhe narrada pelo adepto que já tem mais idade. O Liverpool ser campeão em Inglaterra é muito especial e no final de contas é benéfico para a indústria do futebol terem quebrado a hegemonia de outros clubes", diz o antigo internacional português.
Já Tomás da Cunha prevê um efeito agridoce entre a massa associativa. Se por um lado foi possível retomar a Premier League e o Liverpool ser campeão em campo e não na secretaria, será sempre "um título incompleto", uma vez que não "vamos poder assistir à loucura que seria ter os adeptos do Liverpool a festejar com os jogadores como tanto queiram e mereciam".
"Uma coisa é uma equipa ser campeã regularmente, acaba por não ter o mesmo impacto; outra coisa são os adeptos do Liverpool que não festejam um título há 30 anos não poderem ver a equipa, ao vivo, ser campeã", diz.
Adversidades à parte, este título do Liverpool ecoará durante muitos anos nos estádios, palcos silenciosos de hoje, onde se ouve tudo, desde bola a descolar do relvado a monólogos de guarda-redes que, cá de trás, ficam a observar o ataque da equipa e a falar sozinhos. Assim, o objetivo máximo continua a ser vencer a Premier League na próxima época para trazer os ecos aos chão e gritar bem alto, em uníssono, adeptos, jogadores, equipa técnica e direção: o Liverpool é campeão.
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