O MMA (Mix Martial Arts) entra por acaso na vida de Pedro Carvalho. “Estava a dar um programa na televisão e vi um anúncio de um desporto de combate. Chamou-me a atenção, eram dois lutadores numa jaula com luvas muito pequenas e lutavam no chão, em pé, agarrados e tudo aquilo fascinou-me. Memorizei logo a data de estreia do programa que passava estes combates. Na SIC Radical. Foi amor à primeira vista”.
O mote da conversa do SAPO24 com o lutador de 28 anos era um combate do Bellator 299, o segundo maior evento mundial de MMA. O português natural de Guimarães, 5.º do ranking do Bellator, entra na jaula com o número 3 da hierarquia, o norte-americano Aaron Pico. Está marcado para esta noite em Dublim, na Irlanda, país para onde se mudou em 2016 à procura de tomar o seu destino pelas suas mãos e pés.
Antes de falar do presente, viajou ao passado para justificar as escolhas de vida. “Na altura, não tinha conhecimento nenhum do que era o MMA e nem sabia se existia em Portugal”, recordou numa voz grossa carregada num sotaque nortenho que esconde um corpo franzino de peso pena.
O sentimento da primeira luta amadora
“Mais tarde, liguei numa 4.ª feira, lembro-me do dia da semana, a um colega, daquele tipo de colegas que está sempre ligado a um clube de futebol e a fazer qualquer coisa. Disse-me que ia treinar e estava a fazer MMA na cidade Guimarães”, relembrou.
O amor à primeira vista saltou para a frente das decisões. “Inscrevi-me logo no sábado. E o resto foi sempre mais e mais. Três treinos semanais, à noite, segunda-feira, quartas e sextas. Comecei a ir a um, depois a dois, depois à tarde, pedia mais, mais”, contou.
Introduz na conversa o ídolo da sua vida. “Necessitava de autorização da minha mãe para ir para o ginásio. Tinha treinos às terças e quintas, às 16h00 e tinha o handicap de ter de faltar às aulas. A minha mãe pediu-me para que no final do ano a escola estivesse feita. Arranjei meio-termo. Treinava e cheguei ao final do ano e completei a minha função”, resumiu, a rir.
“Mas cada vez queria mais treinos e perguntava ao meu antigo treinador, quando é que ia lutar, quando é que ia lutar”, repetiu sofregamente.
O momento chegou. “Tinha 16 quando fiz a primeira luta, amadora”, assinalou. “O sentimento não dá para explicar, foi sentir-me vivo, uma sensação de adrenalina e nervos. Sabia que estava no sítio certo e era aquilo. E queria mais”, garantiu. “Depois de sentirmos aquela sensação queremos voltar a senti-la outra vez”, asseverou.
Sentiu-se vivo e sentiu a outra face do combate. A derrota.
“Conversei com a minha companheira e, se queria alcançar o que queria, tínhamos de sair de Portugal”, apontou. A razão era simples de justificar. “Com o MMA em Portugal não ganhava dinheiro. Estudava, acabei o 12.º ano em junho 2015, tive a tal derrota (no MMA) e dois ou três meses depois ficou a ideia de emigrar. Ainda tentei fazer coisas mais a sério, treinar duas vezes por dia, mas não havia eventos MMA em Portugal e pararam após a tragédia com o João Carvalho (atleta morreu em combate)”, especificou Pedro Carvalho.
Da fábrica em Portugal às limpezas de casa de banho na Irlanda
Próxima paragem. República da Irlanda, ano de 2016. “Nunca tinha estado na Irlanda e não havia ninguém nem nada para fazer a ponte. Ainda em Portugal, comecei por trabalhar numa fábrica para juntar dinheiro para emigrar”, justificou.
“Tirámos uma semana de férias para ir, em finais de novembro. Fomos à procura de qualquer coisa e ver como nos podíamos mudar. No final dessa semana, nem trabalho, nem casa. Regressamos a Portugal e uma semana depois ...decidimos voltar para Dublin. Foi assim que em janeiro de 2017 emigrámos”, sintetizou.
A porta de entrada desejada era o ginásio do Conor McGregor e ser treinado por John Kavanagh, seu atual treinador. Decisão tomadas, bilhete de ida comprado e a ilha como próxima casa. “A Carla, à base de emails, arranjou emprego logo. Eu consegui num hospital, fui substituto um limpador de janelas, regressou e acabei a limpar casas de banho”, recuou.
Os dias eram duros e as mesmas mãos que deixavam chão e lavatórios num brilho batiam forte e feio. “Durante um ano, acordava às 7h00 e ia para o ginásio, vinha a casa, almoço e entrava no hospital às 13h00. Às 17h00 ia a correr para o ginásio até à hora de fecho, às 22h00, chegava a casa às 22h30, às 23h00 jantava e à meia-noite estava na cama. Repetia tudo no dia seguinte”, pormenorizou. “Era um miúdo de 21 anos com todos os sonhos do mundo, sofrer sabia que fazia parte...”.
Tudo se precipitou um ano depois de ter aterrado. “Em 2018 recebo uma mensagem do meu treinador para ir ao Bellator 200 e se ganhasse conseguia contrato de várias lutas. Era a hora de mostrar o valor. Era para aquilo que tinha emigrado. Em maio, ganhei e consegui o contrato”, suspirou.
Uma lição extraída a partir de um ego inflamado
Os acontecimentos sucedem-se uns atrás dos outros. “Até que lutei pelo título mundial (Patrício Freire). Em novembro de 2020. Estava marcado para março de 2020 no dia em que a terra parou. Até as 15h00 o evento ia acontecer e foi cancelado”, sorriu ao recordar.
Relembrou esses tempos de euforia e deslumbre pessoal. “Foi um ano em que Portugal falava de MMA. Todos os dias tinha entrevistas e era um miúdo de 24 anos, imaturo, o meu ego inflamou-se e deixei-me levar. Fiquei demasiado confiante. Mistura tóxica, na minha cabeça era intocável e ser campeão era um dado adquirido e não quis saber de nada”. Não foi e caiu com estrondo. “Fez-me crescer como atleta e pessoa, foi uma lição para vida”, reconheceu.
Em finais de 2020, duas derrotas e uma reflexão. “Desci ao inferno das frustrações para renascer. Queria provar que era capaz a mim mesmo e ganhei uma luta contra quem já tinha 60 lutas. O início do ano 2021, foram seis combates, tempos muito negros, comecei a questionar tudo, voltei ao zero e reergui-me”, recuperou.
Ao fim de quase trinta minutos de conversa, deixa o passado e detém-se no presente.
“Já não sou o mesmo miúdo imaturo que se deixou levou pelas luzes da fama. Já fui vacinado”, assegurou. “Se atualmente vivo com todas as certezas de que tenho as ferramentas para posso ser campeão do mundo é porque tive todas essas aprendizagens. Para ser melhor”, certificou Pedro Carvalho.
“Se ganhar passo para 3.º do ranking”, explicou. “O objetivo é ser campeão do mundo, mas é secundário. O primário é acabar a carreira com o meu nome gravado no desporto, quero ser lembrado, quero deixar o meu cunho na história do desporto e para tal tenho de ser campeão ou algo parecido”, atestou.
O lado animalesco da luta e a tatuagem do Scarface
A pergunta cai com naturalidade. Qual é a sensação de estar na jaula. Uma violência gratuita e bela ou uma luta animalesca pela vitória.
“Não vejo mal quando se diz que é algo animal. É. É algo primitivo e essa é uma das belezas. Existem poucas coisas tão primitivas quanto lutar. As outras são comer e as relações sexuais. Estão no nosso ADN, está à flor da nossa pele, é algo animalesco”, realçou. “Lutar está no nosso ADN. Não necessitamos de caçar para comer, mas somos animais. Por muito intelectual que o ser humano se torne, a vertente animalesca está presente no nosso ADN. Esse é o primeiro ponto”, reforçou.
Fixa na primeira pessoa. “Nunca me senti tão vivo como a lutar. E a beleza nos dias seguintes à luta. Tudo é belo no planeta terra. Mesmo o sangue e as nódoas negras. Alimento-me dessa parte grotesca”, desvendou. “A seguir à luta dou mais valor à vida, tudo se torna incrível. E estar lá dentro não dá para replicar”, explicou. Lança um desafio a quem ainda não entrou no octógono. “Todo o ser humano deve, uma vez na vida, fazer uma luta”, desejou.
Define-se como uma pessoa que nunca foi violenta, nem se envolveu em rixas. “Mas adoro a violência dentro da jaula. Não tenho mais oportunidades de sê-lo a não ser ali. É o on e o off” assumiu Pedro Carvalho. “Um lutador é um artista e nós somos artistas”, comparou. “Sou muito introvertido. Aquele Pedro que sobe ao ringue e entra na jaula só eu é que sei o que ele é”, sublinhou, sem dizer quem é.
O corpo desenhado de músculos está também pintado de tatuagens. “Não são só figuras alegóricas. Tenho o nome dos dois filhos, o significado em Celta. Benjamim (o filho da felicidade) e Carolina (menina doce). São as mais importantes de todas. Tenho o nome da minha mãe na canela, o 18, ano em que comecei a viver o meu sonho e a tatuagem do Scarface, filme do Al Pacino. Tenho um balão onde está escrito “the world is yours” (o mundo é teu)”, assinalou.
Para o fim, hoje, como em outras entrevistas, deixou um desejo para o Benjamim e a Carolina. “Não gostava que os meus filhos lutassem. Se não falarem, eu também não falo, mas se falarem tentarei fazer que sejam melhores que o pai”, disparou.
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