Tudo ali é branco. Tudo acolá é verde. Branco de neve. Verde da floresta, das árvores, muitas delas siamesas, coladas umas às outras, por vezes estáticas, outras vezes dançando ao sabor do vento. A paisagem é igualmente salpicada com o castanho da madeira das casas, que surgem ora compactas, ora dispersas e com a cor cinzenta dos telhados de xisto esculpidos em forma de cone invertido.

A supremacia das cores muda conforme as estações do ano. É verão. Manda o verde, o castanho. O branco, está no alto das montanhas. Parece que toca no azul do céu.

Tudo é alto. Uma altura que, por vezes, rasga as nuvens. Sentimo-nos esmagados, sufocados e pequenos perante tamanha natureza. Uma natureza bruta, imponente, mas ao mesmo tempo frágil.

Estamos no Monte Branco, nos Alpes. É a montanha mais alta da Europa Ocidental. 4.808,73 metros. O cume varia, não é fixo. É medido em função da neve acumulada no pico rochoso. O vento, o sol, a chuva e a temperatura ditam se cresce ou encolhe, uma medição feita de forma regular, de dois em dois anos.

O maciço com o mesmo nome atravessa três países: França, Itália e Suíça. No topo da montanha, os contornos fronteiriços não são exatamente claros. Em especial, o pico que lhe dá fama. Há fronteiras a mais de 2 mil metros de altitude e locais em que ao jogar ao “jogo da macaca”, damos um salto e aterramos em território transalpino, damos outro salto, e de pernas abertas, um pé fica no lado gaulês, o outro, em terra helvética.

créditos: Pedro Marques dos Santos | MadreMedia

Geografia à parte, o Monte Branco, no original, Mont Blanc, é também uma corrida, épica, por sinal, em que homens e mulheres atravessam, ao longo de 170 quilómetros, três fronteiras, 19 localidades alpinas, por um território em que a coabitação que perdura há séculos vive alheia a traçados territoriais nascidos em gabinetes estatais.

“Um projetor da paisagem de um território”

O Ultra Trail du Mont Blanc, é um evento criado em 2003 pela mão de um casal.  Catherine Poletti e Michel. “O UTMB é uma viagem, uma aventura, uma experiência. Foi este o objetivo em 2003. E que se mantém hoje”, descreve Catherine Poletti. “Funciona como um projetor da paisagem de um território”, resume.

O trajeto da icónica prova que cumpriu a 17ª edição no mês passado tem um desenho em forma de bola oval. O ponto de partida é ele mesmo ponto de chegada: Chamonix, França. É como se lançássemos um boomerang que serpenteasse, contornasse, subisse, descesse e voltasse a subir e a descer a montanha, indo de sul a norte, passando por este e o oeste. Uma viagem que termina até 46h30m depois do início da aventura.

A vida alpina é o denominador comum. Um percurso que passa por vilas e aldeias, águas termais, glaciares, chalés, refúgios de montanha, igrejas barrocas, pontos de peregrinação, estradas romanas, terras de queijo raclette e do cão São Bernardo. Um caminho das pedras que enfrenta cinco Grandes Prémios de Montanha acima dos 2400 metros e outros tantos que se situam entre essa linha e os dois mil.

A inspiração de Catherine Poletti, senhora de baixa estatura que nunca correu (deixou essa tarefa para o marido), nasceu numa prova de trail, em França. “Nas maratonas visitamos as grandes cidades. Com o trail entramos nas vilas e aldeias. Temos a oportunidade para visitar o outro lado da autoestrada”, atirou. E sem ter que ir ao fim do mundo. “(No Monte Branco) temos boas acessibilidades, estamos perto das altas montanhas, hotéis, refúgios, restaurantes, tocamos no glaciar ...”, sublinhou.

créditos: Pedro Marques dos Santos | MadreMedia

Chamonix, França. A localidade conhecida como uma famosa estância de desportos de inverno, situada num vale, serve de ponto de mira do ponto mais alto do Monte Branco.

Os teleféricos rasgam a paisagem, de um lado e de outro, com intuito de levar o homem ao topo do mundo. Uma cancela e uma buzina antecipam a passagem de um pequeno comboio que deixa a localidade para trás e segue pelo sopé da montanha.

Mais de dois mil atletas estendem-se pela rua inclinada da Igreja de Saint-Michel (São Miguel). Mochilas às costas, tubos a saírem da parte da frente, de ambos os lados, suportes de líquidos, comida variada nas costas e bastões, dobrados, que os ajudarão a trepar e a descer as encostas mais íngremes. 18h00 do dia 29 de setembro. Chove. Água que cai e ajuda a baixar a temperatura de uma tarde onde o termómetro bateu os 27 graus. Aviso prévio: não raras vezes, a montanha, oferece as quatro estações num dia.

Ao ritmo de Vangelis (Conquest of Paradise), os atletas de elite zarpam em primeiro lugar beneficiando de um compreensível tratamento especial, enquanto os restantes, que procuram ser “finishers”, saíram compactos, ordeiros, a um ritmo lento, a antítese de uma Black Friday qualquer.

O SAPO24 acompanhou durante pouco mais de 20 horas, non stop, os corredores da frente, apanhando-os em alguns dos pontos de passagem e de abastecimento de águas, chás, refrigerantes e comida. Fomos transportados numa carrinha de 9 lugares na maior parte do tempo. Mas, para sentir na pele o esforço da prova, aventurámo-nos no terreno, a subir e descer. Ao todo, pouco mais de 20 km, pelo Monte Branco. Primeiros passos dados em Les Contamines Montjoie, do lado francês, depois em Itália, no Lac Combal, um lago a 2 mil metros de altitude. Uma caminhada em inclinação que serviu de teste ao que se seguiu: Challet Val Ferret, Arnouvaz, no Vale Aosta até La Fouly, no Cantão de Valais, Suíça, um desafio entre as 04h00 e as 9h00. Primeiro, sempre a subir pela noite dentro, ver o sol a nascer no topo do Grand Col Ferret (2 537 metros) e, por último, descer a montanha à medida que o sol se elevava, até se sentar para um pequeno-almoço do outro lado da montanha e noutro país.

créditos: Pedro Marques dos Santos | MadreMedia

Das águas termais às igrejas que antecipam o fim da estrada

Rebobinemos o filme. Saint-Gervais. Primeira paragem para abastecimento dos atletas. 8 quilómetros em linha reta, o primeiro Grande Prémio de Montanha, uma subida até quase 2 mil metros, em Delèvret e, 21 quilómetros depois, descida à terra para aterrar nos "banhos de São Gervásio", nome da vila francesa do departamento da Alta Sabóia, da região de Auvérnia-Ródano-Alpes. Estância termal, conhecida como porta de entrada para glaciares, gargantas e quedas de água que nos leva ao cume do Monte Branco, alberga a igreja de Saint-Gervais Saint Protais, exemplar da arte barroca alpina, evocação dos dois irmãos Santos que remontam ao início da era cristã.

Uma água e um queijo, uma calorosa receção com música e incentivos do speaker, antecipam um caminho que será sempre a subir até Contamines Montjoie, 1200 habitantes, localidade em que 2/3 do território é Reserva Natural, típica vila de montanha a 1164 metros, decorada com chalés tradicionais.

As Igrejas de Santa Trindade e de Notre Dame de la Gorge (Nª Srª da Garganta), esta construída pela Ordem Beneditina (fundada em 529 por São Bento, a mais antiga ordem religiosa católica de clausura monástica), que marca o fim da estrada e o início do caminho de montanha, antigo local de peregrinação e oração dos alpinistas e devotos de Maria, são postais de romarias religiosas e turísticas.

A noite caiu. A corrente do rio, o “Allez, Allez”, vindo da boca de quem se alinhava ao longo do percurso e o som dos chocalhos servem de orquestra de boas-vindas. Com as lanternas enroladas à cabeça, os atletas desapareceram na escuridão.

O túnel de 11 km que liga a França à Itália

Itália esperava-nos. A nós e aos 2300 atletas. Quem estava na prova, subiu e desceu, passou por la Balme, terra de grutas e pelo refúgio de la Croix du Bonhomme, histórico local de hospedagem dos alpinistas a 2443 metros.

Col de la Seigne, marca a fronteira França-Itália. Fomos pelo Túnel do Monte Branco, 11 quilómetros em linha reta, 45,60 euros de portagem num buraco na terra que liga dois países e duas estâncias de desportos de inverno: Chamonix, na Alta Saboia (França) a Courmayeur, no Vale de Aosta (Itália).

Lac Combal (lago a 2 mil metros) foi o ponto de encontro e reabastecimento. Com a dobragem do dia, aproveitando mais de uma hora de vantagem em relação a quem corria, o SAPO24 fez mais uma incursão, a solo, pela montanha, à procura de uma luz. Os atletas, vindos da mais profunda escuridão, pareciam pirilampos a descer.

Músicos espalhados pela floresta antecipavam a passagem dos “super-heróis” no refúgio Maison Vielle, na descida para Courmayer, no sopé do Maciço do Monte Branco. A maior “comuna” da região e também a mais alta, 1224 m, ostenta meia centena de quilómetros de pistas esquiáveis e é ponto de partida e chegada do skyway, uma obra de engenharia que leva o homem até ao céu (3466m), numa bolha de aço. “Pit-stop” no centro de alto rendimento de desportos de montanha.

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Terra de queijos e do cão São Bernardo

A Suíça, terra dos queijos, chocolates, relógios e bancos está ao virar da esquina. Quem corre passou por mais dois ícones de pedra e madeira que servem quem por aqui caminha no alto dos 2 mil metros acima da linha do mar: refúgio Bertone (cabana construída em memória do alpinista George Bertone, que faleceu num acidente de avião no Monte Branco) e refúgio Bonati.

04h00. Chegou a hora de sentir na pele a caminhada pela montanha. Depositados em Arnouvaz, enfrentámos o Grand Col Ferret que liga Courmayeur no vale de Aosta, Itália, a Orsières, no cantão suíço de Valais e cujo topo (2537m) simboliza a fronteira entre os dois países. O nosso transporte estará em La Fouly, do outro lado de lá.

Ao todo, 15 quilómetros. 700 metros de desnível. Nós, sete jornalistas, um guia de montanha (Jean Claude), uma lanterna nas mãos, 30 a 40 centímetros de caminho para pôr os pés e em que os três metros da luz antecipavam que o chão estava bem longe de nós.

À medida que subimos, pausadamente, mas com a tarefa em mente que tínhamos que chegar ao céu antes do primeiro atleta, a respiração ia acelerando e faltando. E quase faltou. Não devido ao cansaço. Antes, por causa do nascer do sol em Grand Col Ferret, onde a Itália dá as mãos à Suíça. Ficámos sem fôlego e com frio (2 graus centigrados).

Do retrato fazem parte duas tendas médicas, meia dúzia de aventureiros que queriam ver a beleza do momento da bola amarela a intrometer-se entre vales e montanha cobertas de verde e branco e uma cruz (com a inscrição “correr por Deus”) que ilumina o caminho da Peregrinação da Notre Dame de Guérison que passa pela estrada de Vale Veny e desemboca no Santuário com o mesmo nome (1537), local outrora utilizado pelos romanos para chegar à Gália e, hoje, aberto só durante o verão.

créditos: Pedro Marques dos Santos | MadreMedia

Território do famoso cão São Bernardo, que tem direito a trilhos próprios, o caminho fez-se caminhando entre La Peule, local de fabrico do queijo raquelete, La Fouly, aldeia de 100 habitantes cercada por picos afamados entre quem anda pelas montanhas, como Le Dolent, Le Tour Noir e l'Aiguille d'Argentière, que apresenta paisagens alpinas e natureza imaculada e foi também o local onde estava a nossa boleia que nos levou até Champex-Lac o “pequeno Canadá” suíço, com a sua vasta e densa floresta e chalés de madeira.

Faltava cerca de 1/3 para o fim. A estrada, com o comboio ao lado, antecipa mais uma passagem fronteiriça (da Suíça para a França), segue durante 30 quilómetros até Chamonix, com passagem por Trient, que outrora, beneficiando da linha férrea, ajudava no transporte de gelo retirado do glaciar existente, Vallorcine e La Flégere.

Na meta, o espanhol Pau Cappel (20h11m44) foi o primeiro a cortar a chegar depois de correr 170 km sempre a olhar para trás. Chegou com ar de quem ia começar. O fim da prova só aconteceu no dia seguinte, dia 31 de agosto, às 16h30.

A semana dedicada ao Monte Branco terminou em festa. “Quem vem, regressa. Para esqui, escalada, turismo e tudo o mais que se partilha pelas 19 comunidades”, garantiu Catherine Poletti que não se cansou de repetir que a corrida é o maior postal de uma vida, costumes e de uma comunidade (alpina) que unem três países.