Ep. 5 - Alguém viu Portugal por aí?

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Há quem diga que aquele estágio da seleção nacional em Macau, de preparação para o Mundial de 2002 na Coreia do Sul e no Japão, foi quase como um Saltillo do século XXI. Dizem as más línguas que a escolha da Las Vegas da Ásia tirou o foco a vários membros da comitiva, de jogadores ao staff.

Dizem.

Rui Dias, jornalista do Record que acompanhou a seleção nacional na disputa da fase final daquele Campeonato do Mundo, rejeita essa versão da história e diz: “Macau é estritamente um inêxito desportivo”.

Mas se os relatos mais inusitados de noites longas não ligam Saltillo a Macau, a má preparação do estágio liga estas duas fases finais que não ficaram na memória dos portugueses pelas melhores razões. E se a primeira se perpetuaria nas nossas memórias devido às mudanças que permitiu alcançar no desporto, a segunda assinalaria apenas o colapso inglório de uma geração de ouro.

Em Saltillo, segundo os relatos,  houve um desleixo total, a Federação visitou o México meses antes da fase final do Mundial de 1986, escolheu o local de estágio, pediu alterações e desleixou-se a partir daí. Quando, antes do Mundial, chegou ao Motel La Torre tudo estava no mesmo estado em que tinha sido encontrado meses antes, totalmente inapropriado para uma seleção a disputar a fase final de um Campeonato do Mundo treinar. A tudo isto juntou-se a falta de equipas adversárias minimamente competitivas para fazer os jogos de preparação.

No Mundial de 2002, a história é outra e pode mesmo falar-se em excesso de zelo. Saltou-se de um extremo para o outro.

Ainda antes da seleção nacional partir para o continente asiático, em Lisboa, o médio do Marítimo Daniel Kennedy foi dispensado da equipa depois de ter acusado positivo no controlo “anti-doping” a que foi sujeito. O jogador admitiu ter tomado furosemida, um diurético que consta da lista de substâncias proibidas. Para o seu lugar o selecionador nacional António Oliveira chamava o jovem Hugo Viana do Sporting CP.

"Nós fomos para uma competição na Coreia onde a preparação foi toda pensada com muito tempo. E muitas das vezes quando temos muito tempo para pensar fazemos asneira", diz entre sorrisos o antigo internacional Jorge Andrade.

De uma seleção que tinha brilhado no Campeonato da Europa de 2000, na Holanda e Bélgica, onde só caiu aos pés daquela poderosa França, no Golo de Ouro, esperava-se tudo. A fase de qualificação também contribuiu para isso, com Portugal a qualificar-se sem derrotas e em primeiro lugar do grupo (sete vitórias e três empates).

Não havia razão para duvidar, como nos diz Nuno Gomes, "em 2002 a equipa era muito a base daquilo que foi o Europeu de 2000 com mais dois anos de experiência". Mas alguma coisa se tinha perdido, diz o jornalista do Record, Rui Dias. "Individualmente os jogadores portugueses estão todos bem instalados nos clubes onde estavam. Agora uma coisa é ter uma equipa com uma média de idades de 25 anos e outra coisa é ter uma equipa com uma média de idades de 30 anos. Digamos que de 2000 para 2002 a equipa perdeu alguma coisa".

Dois anos volvidos sobre o Euro2000, os jogadores portugueses continuavam a encantar a Europa. Luís Figo, por exemplo, chegava a Macau pouco tempo após conquistar a Liga dos Campeões pelo Real Madrid, e ainda sem ter passado um ano desde que tinha sido laureado com a Bola de Ouro pela France Football, 35 anos depois de Eusébio ter recebido o troféu.

"A fase final onde estávamos com um grupo em melhor forma, com melhor qualidade, etc, foi no Mundial de 2002, curiosamente. Tirando o Figo, que era o melhor jogador a nível mundial e que estava com um problema no tornozelo", admite Rui Jorge, antigo internacional A e atual selecionador da seleção de sub-21.

As fragilidades físicas e as mazelas da época desportiva, que pretendiam ser contornadas com um estágio bem planeado, acentuaram-se precisamente em Macau.

"Lembro-me de ter feito uma entrevista [com Luís Figo], no último dia em Macau. A entrevista foi feita na enfermaria e os médicos ficaram alucinados porque não se podia ver como é que o Figo tinha o tornozelo. Enfim, eu vi, de vez em quando ainda me lembro. Ele calçava dois números acima para jogar e para treinar", conta Rui Dias. "Agora a questão era: não convocar o Figo. O Figo tinha acabado de ser campeão europeu. Então um jogador que serve para jogar e que está em condições de jogar uma final da Liga dos Campeões por alma de quem é que não está em condições de jogar um Campeonato do Mundo?”, explica o jornalista em retrospetiva.

créditos: MANUEL DE ALMEIDA/LUSA

Carlos Daniel, jornalista da RTP, não tem dúvidas de que a situação de Luís Figo mexeu com a equipa, mas não só. “Paulo Sousa, o Vítor Baía eram jogadores nucleares, com grande peso na seleção. Essa questão é evidente, quando algumas das melhores unidades não estão muito bem a equipa acaba por se ressentir disso. Desde logo porque há dúvidas, joga ou não joga, Paulo é titular ou não é, vai ou não vai, Vítor Baía ou Ricardo, quem é que joga? Foi algo que só foi resolvido em cima já do Campeonato do Mundo e portanto mexe com a equipa".

Macau era suposto ser o plano perfeito, mas saiu completamente ao lado. “Má preparação, má escolha do local para fazer o estágio. Foi a falência total de um plano que partia de um princípio de que aquelas eram as condições que íamos encontrar na Coreia do Sul. Tudo mentira. Digamos que o clima que foi encontrado na Coreia do Sul era um clima normalíssimo. Os jogadores saíram muito pior de Macau do que quando chegaram", observa Rui Dias.

As consequências não tardariam a chegar, era inevitável. E logo no primeiro jogo da fase de grupos, Portugal dá por si a perder por 3-0 por volta da meia-hora de jogo.

"Fomos apanhar o primeiro jogo com os Estados Unidos, alta rotação, toda a gente nos Estados Unidos com certeza que é mais atleta de atletismo do que futebol, não é?", diz-nos Jorge Andrade, um dos jogadores que naquele dia pisaram o relvado do estádio da cidade de Suwon.

Os argumentos físicos dos norte-americanos apenas colocavam em evidência as fragilidades da seleção das quinas. "Portugal esteve a perder 3-0, não é? Fez 3-2. Quando faz 3-2 ainda faltavam 20 minutos para o jogo acabar e passou a linha do meio campo três vezes. Não dava. Os jogadores não tinham condições para fazer um jogo com um adversário que há falta de argumentos técnicos tinha um poder físico tremendo", sublinha Rui Dias.

Depois de, dois anos antes, ter brilhado no Europeu, Portugal entrava no Mundial da pior forma. Mas a seleção soube levantar-se e no jogo seguinte, diante da Polónia, venceu a equipa da Europa de Leste com alguma facilidade e com Pauleta a assinar um hat-trick.

A seleção das quinas só dependia de si própria para passar à próxima fase. Para isso tinha de derrotar uma das seleções anfitriãs do torneio: a Coreia do Sul. Teoricamente acessível, fisicamente inacessível.

Foi um daqueles jogos em que a Lei de Murphy se aplica na perfeição e tudo o que podia correr mal correu, no pior momento possível.

Ao 27º minuto, João Pinto teve uma entrada dura, por trás, sobre um adversário, tendo o árbitro Angel Sanchez mostrado o cartão vermelho direto ao número “8” português, que protestou veementemente, tendo dado um soco no estômago ao juiz da partida.

créditos: AFP PHOTO / EMMANUEL DUNAND

Mais tarde, aos 70 minutos, o avançado sul-coreano Park Ji-sung colocou a bola no fundo das redes e silenciou um país.

"Acabamos por perder o jogo, mas podíamos ter ganho, houve aqueles episódios da expulsão...Quando menos esperamos é que sofremos estes dissabores e normalmente é quando tendemos a relaxar, porque o adversário, teoricamente, é mais fácil. E depois queremos dar a volta e o estado de espírito já não é o mesmo e, quando queremos ir atrás dos prejuízos, às vezes não pensamos com a cabeça, às vezes pensamos mais com o coração e sai asneira", explica Nuno Gomes.

Ainda não era o momento, diz Carlos Daniel, ainda não estávamos suficientemente organizados e preparados para ganhar. Mas a mudança, essa estava ali tão próxima, e começava a ficar patente no futebol nacional no ano seguinte quando o FC Porto de José Mourinho conquista a Taça UEFA.

Por outro lado a seleção da Coreia do Sul empoleirada em arbitragens polémicas chegaria às meias-finais do Mundial, onde foi eliminada pela Alemanha. Na final, os germânicos foram impotentes perante um Brasil que ao ritmo de Ronaldo festejou o pentacampeonato.

2002 ficará para sempre como uma oportunidade perdida na história da Geração de Ouro. Depois do crescimento nos anos 90 da seleção, Portugal desiludia e só em 2004 se redimiria chegando pela primeira vez à final de uma grande competição. Tínhamos um plano, mas saiu tudo ao lado.

As suas memórias destes 30 anos fazem parte da história. Partilhe-as connosco através do email chegamoslacambada@sapo.pt e os melhores textos serão publicados neste dossier especial.

(Notícia corrigida às 08h08 de 6/06/2018: alteração no lead, Portugal jogou na Bélgica e Holanda e não em França)