O telemóvel da mãe tocou e Kawhi Anthony Leonard, de apenas 16 anos, atendeu. Segundos depois desligou e deu a notícia à mãe. O pai tinha sido morto a tiro junto à estação de lavagem de carros onde Kawhi passou grande parte da infância, a ajudar o progenitor. O jovem Kawhi não sabia como reagir. Vinte e quatro horas depois, entrou dentro de campo e ajudou a sua equipa de basquetebol da Martin Luther King High School a vencer mais um jogo.

Kawhi Leonard tem quatro irmãs, todas mais velhas, e talvez por isso fosse um miúdo pouco falador. Com a morte do pai, adotou uma postura ainda mais reservada. E refugiou-se no amor que tinha pelo jogo. No liceu já lhe apontavam uma ética de trabalho invulgar, que acabou por levar para a Universidade de San Diego State. Era comum vê-lo a sair do dormitório antes das 6 da manhã, com uma lanterna na mão e uma bola na mochila, rumo ao pavilhão escuro e vazio. Ia lançar ao cesto. Sozinho.

Já ouviram aquele cliché do jogador que chega ao treino muito antes da hora e fica até muito depois de acabar o treino? Kawhi era esse jogador. Daí até à NBA foi um passo.

O base George Hill era um dos preferidos de Gregg Popovich e o treinador dos San Antonio Spurs nunca o escondeu. Mas o cinco era demasiado baixo com o trio composto por Hill, Tony Parker e Manu Ginobili. E a organização texana tomou uma das decisões mais difíceis da sua história recente, ao trocar Hill pela 15ª escolha no draft de 2011, que pertencia aos Indiana Pacers. O base seguiu para Indiana e, em sentido contrário, viajou um miúdo de 2,01 metros (e mãos com 28,5 cm!) da Universidade de San Diego State, a quem apenas era reconhecida a capacidade de defender e lutar por ressaltos. Era um risco.

Antes de cada treino dos Spurs, os jogadores são convidados a tomar uma “vitamina”. A “vitamina” é uma expressão utilizada pela equipa técnica que é sinónimo de um trabalho técnico específico, ou seja, os treinadores aconselham os jogadores a fazer lançamentos livres, a trabalhar o drible ou o passe. Por norma, são os treinadores que definem a “vitamina” que cada jogador deve “tomar”. Com Kawhi é diferente. O extremo é tão reservado que os técnicos lhe dão a possibilidade de ser ele a escolher a “vitamina”. Querem ouvi-lo a falar. Coisa rara.

Visto de fora, pode parecer insensível. Não mostra um pingo de emoção. Nem mesmo quando marca um lançamento da vitória em cima da buzina – e já marcou alguns -, daqueles que fazem saltar de alegria os colegas de equipa, os milhares de adeptos no pavilhão e mais uns milhões pelo mundo fora. Todos saltam. Todos vibram. Menos Kawhi.

Kawhi nunca sorri.

"Ele ama o jogo. E ignora tudo o resto", disse recentemente Gregg Popovich. Kawhi não fala muito dentro do balneário, foge dos holofotes e dos jornalistas, não está presente nas redes sociais – tem conta de Twitter, mas não usa - e mantém a mesma ética de trabalho do liceu e da universidade. "Aparece uma hora antes do treino, para fazer lançamentos curtos e treinar o trabalho de pés. Depois do treino, fica a treinar o lançamento de três pontos. Às vezes tenho que dizer aos meus adjuntos para o mandarem embora", confessou Pop, que acrescenta que, mesmo com ele, Kawhi é de poucas palavras: "Antes de cada jogo, vou ter com ele e digo-lhe: 'Aquilo que torna os jogadores especiais é a consistência. Faz como o Timmy [Duncan], o Dirk [Nowitzki] e o Kobe [Bryant].E ele limita-se a dizer 'Yeah'".

Seis anos depois do draft, o risco parece ter valido a pena. Foi membro da melhor equipa de estreantes (All-Rookie Team) em 2011/12, MVP das Finais em 2013/14, Defensor do Ano em 2014/15 e 2015/16, membro do melhor cinco da época (All-NBA Team) em 2015/16, All-Star em 2016 e 2017. É apenas um de três jogadores na história da NBA a ser All-Star e ganhar os prémios de Defensor do Ano e MVP das Finais na mesma época, a par de Hakeem Olajuwon e... Michael Jordan. "Não quero compará-lo com Michael Jordan, mas estamos perante um jogador muito, muito bom ofensivamente e tremendo na defesa. Definitivamente, Kawhi Leonard tem que estar na discussão para MVP", defendeu Alvin Gentry, treinador dos New Orleans Pelicans, esta semana.

Apesar das conquistas, Kawhi Leonard continua a ser o mesmo miúdo humilde que ajudava o pai a lavar carros em Los Angeles. Depois da conquista do título de 2014, cada jogador dos Spurs teve a oportunidade de levar o troféu Larry O'Brien para a sua terra-natal durante três dias e mostrá-lo à comunidade. Kawhi deixou-o em casa, porque estava a cumprir um plano de treino físico para o Verão e não tinha tempo (nem vontade) de andar a passear o troféu. Este é o mesmo jogador que manteve o Chevy Malibu que guiava na universidade durante o primeiro ano de NBA e viveu com a mãe nos primeiros três anos da carreira profissional. E foi a este jogador que os Spurs ofereceram, em 2015, um novo contrato de cinco temporadas no valor de 94 milhões de dólares.

A defesa sufocante é a sua imagem de marca e, nessa metade do campo, sempre foi um jogador de elite. Mas está a crescer a olhos vistos também no ataque. As suas médias de pontos por jogo subiram todos os anos, desde que chegou à NBA: 7.9 em 2011/12, 11.9 em 2012/13, 12.8 em 2013/14, 16.5 em 2014/15, 21.2 em 2015/16 e 26.3 esta época. E o Player Efficiency Rating (o PER é uma fórmula que soma contributos positivos, substrai dados negativos e apresenta o resultado da performance de um jogador, sobretudo no meio campo ofensivo, através de um rácio por minuto) subiu de 16.6 no seu ano de ‘rookie’ para 28.1 este ano, apenas atrás dos 30.3 de Russell Westbrook.

Se os seus números têm aumentado, as palavras nem por isso. "Os jogos são todos iguais. Há dois cestos. Há público. E tento ganhar", disse há dias. Quanto a objectivos de carreira? Simples. “Quero dar sempre o meu máximo e que a minha equipa ganhe campeonatos", afirma. Kawhi poupa nas palavras, mas não nas acções. O seu discurso é monossilábico cá fora, mas eloquente lá dentro. Conhecido por ser bem mais eloquente cá fora, Manu Ginobili tem dificuldade em encontrar adjectivos para o colega de equipa. "Surpreendentemente consistente. Ou melhor, consistentemente surpreendente", diz o argentino.

No basquetebol, a expressão «estar dentro do equipamento do adversário» é usada para dizer que um determinado jogador defende bem. Tão bem que está dentro do equipamento do atacante directo. Kawhi está debaixo da pele. Entranhado. O seu compromisso e dedicação ao jogo são tão grandes que é impossível não gostar dele. E sorrir. Sorri tu também, Kawhi.

Ricardo Brito Reis é jornalista há uma década e meia, mas apaixonado por basquetebol desde que se lembra. É um dos comentadores de basquetebol da SportTV, faz parte do departamento de comunicação da Federação Portuguesa de Basquetebol e é treinador de formação no Sport Algés e Dafundo.