Messi, perdoa os idiotas. Eles não sabem o que fazem ou o que dizem. Tu és o sal do FC Barcelona que vai evitando a corrupção de um clube que, desde que te viu chegar à equipa principal, conquistou quatro Ligas dos Campeões em nove anos, quando contava apenas com uma no palmarés, erguida por Johan Cruijff e os seus pupilos no início da década de 90.
És a memória palpável do Barça joga bonito de Ronaldinho e Deco, do tiki taka de Pep Guardiola, Iniesta e Xavi, és a extensão da liberdade da imagem do miúdo do bairro que joga à bola todo o dia, que sozinho vence equipas de 10, 15, 20, muitos deles mais velhos, mas todos eles impotentes perante a relação do teu pé com a bola que num ziguezague supersónico apenas termina no golo; ora com o corpo que se lança num corrida desenfreada em direção à baliza para um confronto cara a cara com o guarda-redes, ora num remate direto que ignora todos os que a bola sobrevoa.
Hoje, mais do que nunca nesta década, o Barcelona indestrutível, mágico e vencedor é uma memória distante. Percebo-te quando te vejo no túnel, no intervalo da segunda-mão dos oitavos-de-final da Liga dos Campeões, no jogo frente ao Nápoles, perante uma vantagem confortável de dois golos, a dizer aos teus colegas de equipa “não sejamos idiotas”. Depois de uma temporada com seis derrotas na La Liga, uma das quais na jornada decisiva que acabou por dar o título ao Real Madrid, (1-2 em Camp Nou frente ao Osasuna, 10.º classificado do campeonato), com o pior registo defensivo do clube em sete anos e o pior entre os quatro primeiros classificados, da derrota nas meias-finais da nova Supertaça de Espanha e da eliminação nos quartos-de-final da Taça do Rei aos pés do Athletic de Bilbao, não pode haver espaço para idiotices.
“Não queríamos terminar desta maneira, mas foi o reflexo de toda a temporada. Temos sido uma equipa muito irregular e muito frágil, e os adversários ganham-nos na base da intensidade, da agressividade e acreditam que nos podem marcar golos com facilidade. Perdemos muitos pontos onde não deveríamos ter perdido” - declarações de Messi depois do jogo com o Osasuna.
E se há coisa a que o FC Barcelona dos últimos anos tem sido permeável é a idiotices. Vêm de toda a parte. Do banco, do lugar do treinador, vem a mais notória. Desde a saída de Luis Enrique que a equipa nunca mais se reencontrou com o melhor futebol possível. Ernesto Valverde não teve grandes mãos para tocar a guitarra e Quique Setién tarda em mostrar capacidades.
Não foi à toa que no final do desastroso jogo contra o Osasuna, num desabafo aos jornalistas, disseste “fica a sensação de que a equipa tenta e não pode, e deixa muito a desejar em muitos jogos. Já tinha dito há algum tempo que, se continuarmos desta forma, vai ser muito difícil ganhar a ‘Champions’. Se quisermos lutar pela ‘Champions’, vamos ter de mudar muito, caso contrário, vamos perder o jogo com o Nápoles [da segunda mão dos oitavos-de-final]”.
E agora, ultrapassado o obstáculo que foi o Nápoles, chegas a Lisboa com uma equipa determinada a não cometer idiotices, mas ainda assim imprevisível nesse campo, para enfrentar idiotices de outro nível, com forma na eterna pergunta: quem é o melhor do mundo? Tu ou Cristiano Ronaldo?
Ambos ignoram a pergunta e enaltecem rivalidade saudável que permitiu aos dois chegarem onde chegaram. Mas para alguns adeptos isso não chega e por cá somos peritos nessa idiotice. Fazêmo-la há anos com Cristiano Ronaldo e Eusébio. Não deve ser muito diferente do que se fará pela Argentina com o teu nome encostado ao de Diego Armando Maradona. Imagino que seja irritante. Não basta teres de evangelizar uma equipa defensivamente frágil, com um meio-campo em que Busquets é um oásis num deserto de ideias e em que tu e o Luis Suárez nunca mais conseguiram encontrar um substituto à altura para Neymar, continuando a perderem-se em amores de verão pelo regresso do brasileiro, como também ainda tens de levar com a pergunta da praxe. Será inevitável. Portugal é o país de Ronaldo, e o estádio da Luz o campo onde CR7, com o Real Madrid, conquistou a La Decima, um dos troféus mais ambicionados da história do teu maior rival.
Mas não devemos ficar por aqui. Para além de uma equipa desorganizada estrategicamente, muito por culpa da direção que tem falhado em conseguir construir uma malha de bons jogadores, como no passado, dos adeptos que vivem na dicotomia superficial do futebol, ainda virá um último batalhão de idiotas. Guardei-os para o fim porque imagino que este seja o teu grupo preferido, provavelmente o que te motivará de alguma forma dentro de campo. Falo naqueles que dizem que não tiveste uma grande época ou que a Bola de Ouro do ano passado não foi merecida. Colocaste a fasquia tão alta que uma temporada com 31 golos e 27 assistências parece coisa pouca. Esses que levantarão contra ti a estátua de Robert Lewandowski, como o ano passado levantaram a Virgil van Djik - atenção, jogadores com todo o mérito de serem contornados por ti - deverão cair na sexta-feira no jogo diante do Bayern Munich.
É neste momento em que revejo as minhas palavras que sinto necessidade de confessar que eu próprio já fui um idiota. Que eu também já negligenciei todo o teu talento, sem dúvida um dos maiores que a minha geração alguma vez viu, em prol da dicotomia cultivada. Converteste-me com o tempo, com a persistência da liberdade nos pés, da visão de um jogador contra o mundo, da capacidade de converteres um livre direto com a mesma facilidade que alguém bate uma grande penalidade, com a insatisfação da ideia de um Barcelona segundo classificado e com a distância de uma era em que o vosso futebol tocava o céu.
Em Lisboa, o estádio da Luz será o palco para a tua homilia, para o teu sermão aos idiotas. Aos que duvidam, aos que atrapalham, aos que não vêm em ti, no presente momento, um jogador capaz de carregar uma história que se possa repetir. Pergunta ao Nelson Semedo pela linha direita, teu ponto de encontro no campo. Ele conhece-a como poucos, foi a partir dela, em toda a sua longitude, que venceu duas ligas portuguesas, uma Taça de Portugal, uma Taça da Liga e uma Supertaça Cândido de Oliveira. Sei que aquele traço branco com pouco mais de 100 metros de comprimento não é o teu sítio preferido, mas é muitas vezes o teu ponto de partida para o coração do relvado. Ouve-o, conhece-o, dança sobre a linha como as crianças dançam sobre os muros nos campos de brita depois de um golo, um último tiro certeiro antes do toque para a entrada das aulas, do grito da mãe para jantar ou do sol que, fugido, permitiu que a noite escondesse a bola.
Faz-nos acreditar que se duvidámos de ti, não passámos de idiotas.
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