A Superliga Europeia ainda não é um assunto morto e encerrado. Sim, já é alvo de vários memes por toda a Internet, o que não é de estranhar tendo conta que o projeto durou menos tempo do que o Evergreen a ser desencalhado do Canal do Suez (sim, esta é uma adaptação de uma das piadas). Mas aquilo de que o mundo do futebol hoje se ri pode vir a ter pouca graça. Tudo vai depender de como as instituições, sobretudo a União Europeia, e um tribunal espanhol vão reagir aos últimos acontecimentos.
Antes de mais, vamos recapitular, fintar todos os comunicados, uns mais vagos do que outros, para perceber quantos é que foram golo, quantos é que foram ao poste e ainda se algum ‘nem cheirou a baliza’ no que toca às saídas, ponderações e permanências na execução desta competição.
O projeto da Superliga foi anunciado no domingo, dia 18, por 12 clubes fundadores e acabou por ruir antes de começar, face à contestação dos adeptos e das autoridades governativas e do futebol. Primeiro saíram os ingleses — Manchester City, Manchester United, Tottenham, Arsenal, Liverpool e Chelsea — e, depois, somaram-se também as desistências do Inter de Milão e Atlético de Madrid.
Quanto aos restantes, o AC Milan e Juventus já reconheceram a necessidade de avaliar o projeto, ao passo que o FC Barcelona faz depender a sua permanência da aprovação (vontade) dos sócios. O Real Madrid é o único dos 12 clubes fundadores da competição que ainda não emitiu uma posição oficial sobre o tema.
O poder dos fãs e (uma espécie de) liga fechada da UEFA
Para Miguel Poiares Maduro, antigo ministro-adjunto e do Desenvolvimento Regional, que conta no currículo com uma passagem pelo comité de governação da FIFA, esta curta cronologia merece, essencialmente, duas leituras. Uma positiva e outra negativa.
A positiva é que "quem parou a Superliga não foi a UEFA nem a FIFA, foi a mobilização da opinião pública, dos fãs e a resposta política a essa mobilização, desde logo no Reino Unido, com a intervenção do governo britânico, a ameaça da legislação iminente no sentido de proibir a competição".
Segundo o também advogado, isto mostra "que o futebol precisa hoje de maior intervenção dos próprios fãs e de maior escrutínio público por parte da sociedade em geral", a que se devem juntar aquelas com "responsabilidade política e pública para isso".
"Os problemas do futebol não se resumem à Superliga. A Champions League já está muito próxima de uma Superliga. E isto aconteceu, em parte, porque a própria UEFA já estava a prometer, a acomodar as decisões, a reforçar e a dar mais dinheiro aos grandes clubes. Portanto, é normal que eles queiram cada vez mais. Acima de tudo, há aqui um conflito de interesses entre o papel da UEFA como regulador das competições desportivas, do futebol, incluindo a dimensão económica, e o seu papel enquanto organizador da própria competição. Isso queria um conflito de interesses que gera imensos problemas e que explica também porque estamos a perder competitividade", diz.
Somando isto a uma vitória antecipada do organismo que tutela o futebol ao nível europeu, caso a competição não avance, temos o possível desenlace negativo de tudo isto: "a UEFA sentir-se ainda mais consolidada na sua visão monopolista, sentir-se ainda mais protegida e isente de escrutínio e supervisão".
"Estava tudo tão ocupado com a Superliga que ninguém reparou que o novo modelo da Liga dos Campeões dá mais um passo em frente no sentido do reforço do poder dos grandes clubes, de agravamento de diferencial competitivo e que, pela primeira vez, prevê que haja clubes que podem aceder à Liga dos Campeões sem ser com base nos resultados desportivos que conseguirem nas ligas nacionais na época anterior. Esse aspeto de direitos históricos que estão previstos serem atribuídos a alguns clubes, chamam-lhe os clubes de elite, é um passo na direção da liga fechada", sublinha.
"Ao mesmo tempo que UEFA se opôs à liga fechada não organizada por eles, a UEFA está a dar passos em frente a uma Superliga fechada controlada pela UEFA", remata.
A UEFA, a FIFA e a Superliga entram num tribunal espanhol
Com o panorama acima traçado, surge a pergunta: qual é que vai ser a resposta a isto tudo? As instituições vão agir? Vão existir sanções? Vai-se legislar para impedir que novas tentativas de ligas fechadas voltem a acontecer? Ou a Superliga vai ser simplesmente um tema que vai ficar em águas de bacalhau como se nada tivesse acontecido?
Primeiro que tudo é importante referir que a União Europeia não intervém diretamente na autonomia das organizações desportivas. No entanto, explica Alexandre Miguel Mestre, advogado especialista nas áreas de Direito da União Europeia, Direito da Concorrência e Direito do Desporto e antigo secretário de Estado do Desporto e da Juventude, que "se existir uma queixa contra a criação de uma determinada entidade ou contra a regulamentação que essa entidade adote, como por exemplo esta Superliga, que terá necessariamente que ter uma regulamentação própria, se essa queixa chegar à Comissão Europeia e invocar a violação do direito da União Europeia (UE), então o direito da UE pode intervir".
Alexandre Mestre explica que em qualquer tribunal de um Estado membro da UE, para além das instituições europeias, se o direito da UE for invocado pode haver uma intervenção, indireta, da União Europeia. "É o direito da UE que se vai aplicar, não as instituições da UE a impedir diretamente porque, há partida. Temos aqui uma liberdade de iniciativa económica e é uma entidade livremente criada", afirma.
O advogado acredita que neste caso, em que o objeto é uma competição desportiva fechada, "pode haver um argumento do direito da UE que leve a que essa competição tenha, digamos, de deixar ser fechada". Ou seja, que a Superliga não pode existir tal como foi apresentada.
"No meu entendimento, o artigo 165.º do Tratado sobre o Funcionamento da UE, ao prever a abertura e a equidade das competições e a especificidade do desporto, demonstra a conceção que a UE tem de dimensão europeia do desporto. E essa dimensão europeia do desporto também está nesse mesmo artigo, o que significa que não podemos olhar para o desporto de forma cega, aplicar o direito da UE de forma cega, nomeadamente o direito da concorrência e achar que o facto de haver só uma federação internacional por modalidade é um abuso de posição dominante", começa por explicar.
"Há que ver caso a caso porque é que há só uma federação. Neste caso, porque é que só existe uma FIFA, só existe uma UEFA e se isso não é resultante da especificidade do desporto e se isso não é também para que haja uma uniformização das regras e para que haja a possibilidade de as competições serem com mérito desportivo por promoção/relegação e não fechadas, elitistas, por convite. Isto é, em qualquer caso prático, um juiz, um órgão juridiscional desportivo tenha que enfrentar e analisar uma argumentação sobre uma liga fechada vai olhar para outras normas, mas também vai olhar para esta norma do tratado e esta norma do tratado, a meu ver, é uma norma que torna ilegal uma liga fechada", defende.
Já no que toca à UEFA e à FIFA, Mestre explica que os estatutos de ambas as instituições têm regulamentos que podem levar a que os clubes que participem nesta Superliga sejam sancionados, e na pior das hipóteses expulsos.
No entanto, por agora, os dois organismos, o que tutela o futebol a nível mundial e o que tutela o futebol a nível europeu, estão ambos de mãos atadas depois um tribunal comercial de Madrid, na terça-feira, ter proibido tanto a FIFA como a UEFA de tomarem quaisquer medidas para impedir a realização da Superliga.
Na decisão, o tribunal ordenou a ambos os organismos que se abstivessem de qualquer ação ou declaração que bloqueasse a criação da competição, bem como quaisquer medidas disciplinares ou proibições de jogos contra os clubes, jogadores ou funcionários envolvidos. O tribunal também proibiu expressamente a UEFA e a FIFA de tomarem "qualquer medida, ação, declaração ou anúncio que impeça direta ou indiretamente a implementação da Superliga Europeia". Mais, estas organizações devem também abster-se de "preparar, incitar ou adotar" quaisquer medidas disciplinares contra clubes, jogadores ou funcionários envolvidos na liga, estendendo a proibição a todos os seus membros associados, clubes e ligas domésticas. O tribunal ditou igualmente a proibição de "excluir clubes e/ou jogadores participantes na preparação da Superliga Europeia de Futebol de qualquer competição internacional ou nacional".
"Enquanto esta providência cautelar não permitir a aplicação de sanções, UEFA e FIFA estão de mãos atadas. Terá de haver uma decisão final, que será a ação principal e não a providência cautelar", explica o advogado, afirmando que depois de ouvidas a FIFA e a UEFA, se for decidido que afinal as duas organizações podem livremente bloquear a criação de uma liga fechada, então "a UEFA e a FIFA têm desde logo a opção de aplicar as suas sanções disciplinares".
No entanto, qualquer tentativa de antecipação da decisão do juiz espanhol é altamente complicada, uma vez que as circunstâncias mudaram drasticamente desde domingo.
"Esta sociedade está descaracterizada, foi criada com o objeto de criação de uma nova competição, foi constituída com 12 clubes, 12 acionistas, e a partir do momento em que quase todos dizem que afinal já não querem elaborar essa competição, tenho dúvidas de que o juiz continue a achar que as medidas que agora decretou de inibir a UEFA e a FIFA de até comunicarem diligências, do ponto de vista até da sua liberdade associativa... o juiz com certeza vai repensar porque mudou tudo", explica o advogado.
"Poderá cair, inclusivamente poderá até haver uma própria desistência da própria ação", afirma.
Uma lei Bosman 2?
Se a Superliga Europeia ainda vive no tribunal espanhol, para além de na mente dos quatro clubes que ainda não avançaram nos trâmites de saída, o tema poderá ganhar outra dimensão caso chegue a instâncias europeias.
"Se todo este caso chegar a merecer uma análise da Comissão Europeia e depois, eventualmente, chegar aos tribunais europeus podemos ter, quem sabe, uma decisão Bosman 2. Agora não na lógica de se saber se se aplica a livre circulação de trabalhadores a um praticante desportivo profissional, mas sim saber se se aplicam as regras da concorrência a uma situação destas. E em caso afirmativo, até que ponto a especificidade do desporto e a defesa da abertura das competições que o Tratado também prevê é ou não suficiente para justificar as restrições dessa concorrência", explica Alexandre Mestre.
Aqui, caso a decisão do tribunal espanhol seja a favor da formação de uma Superliga Europeia, poderá servir de jurisprudência para essas futuras análises. Um caso que se juntaria a outros dois, muito citados ao longo desta semana. O primeiro, de dezembro de 2020, do Tribunal Geral da União Europeia, que considerou que as regras da União Internacional de Patinagem preveem sanções severas contra os atletas que participem em provas de patinagem de velocidade não reconhecidas, uma vez que são contrárias às regras da União Europeia em matéria de concorrência. E a segunda, a Euroliga de basquetebol, um caso único de uma competição 'fechada' no desporto europeu, criada em 2000/01, quando os clubes de basquetebol, pouco satisfeitos com a forma de repartição das receitas, decidiram criar a Euroliga, então organizada pela ULEB (União das Ligas Europeias) e fora do âmbito da FIBA (federação internacional).
Na altura, a FIBA ameaçou os jogadores das equipas participantes de não poderem representar as suas seleções em Europeus, Mundiais e Jogos Olímpicos. Nessa temporada, houve duas ligas europeias, a da Euroliga, que registou o nome, e a da FIBA, a Suproliga — embora a duplicidade tivesse a duração de apenas um ano, já que a FIBA deu um passo atrás e na segunda edição da Euroliga já participaram todas as grandes equipas europeias.
Alexandre Mestre diz que isto é uma espécie de jogo. "De que forma é que conseguimos compatibilizar o que o Tratado refere quanto à livre concorrência com o que o mesmo Tratado refere em relação à especificidade do desporto e à abertura das competições? É essa ponderação, é essa proporcionalidade que tem de ser feita. E isso pode ser feito pelos tribunais europeus, pode ser inclusivamente colocado até neste processo deste tribunal espanhol, porque o tribunal decidiu invocando o Tratado sobre o funcionamento da UE. Acontece só que este juiz não teve em conta o artigo 165, olhou para este caso como um puro caso mercantil, de negócio, como se fosse qualquer outra atividade que não o desporto".
O antigo secretário de Estado salienta, contudo, que caso venha a existir uma decisão que valide a existência de uma liga fechada, "isto depois pode ter consequências para o modelo europeu de desporto no futebol e fora dele".
"Por ventura, se a decisão for no sentido de que o desporto tem uma espécie de monopólios naturais em que há uma federação por modalidade e desde que ela adote regras que tenham um objetivo legítimo, que sejam profissionais, ela pode continuar a ser a única através de mecanismos de abertura, de mérito desportivo, então isso significa que não poderão vir a ser criadas ligas fechadas", assume.
Agarrar o tema é uma oportunidade para Portugal e para a Europa
Para o antigo ministro Poiares Maduro a União Europeia tem de criar mecanismos que lhe permitam intervir neste tipo de situações. Neste sentido, propõe "a criação de uma agência independente, mesmo ao nível da União Europeia, de supervisão sobre o desporto".
O objetivo era que esta agência impusesse "certos princípios de boa governação nesses organismos desportivos". Ou seja, a UEFA e FIFA continuariam a beneficiar de grande autonomia de regulação sobre o desporto, mas, em contrapartida, teriam de aplicar alguns princípios de boa governação como, por exemplo, "dar garantias eficazes de que as suas eleições respeitam princípios de integridade, são livres e que são genuinamente democráticas, que os seus organismos de controle são genuinamente independentes, o que não acontece hoje em dia, e uma separação dentro dessas organizações entre a sua dimensão e os papéis de regulação e as suas funções de organizador de eventos".
Para além disso, o antigo membro do comité de governação da FIFA defende que a "legislação devia fundamentalmente regular as condições de licenciamento de competições desportivas, garantido desde logo a prova dada do modelo europeu da promoção e despromoção, das ligas abertas, e mecanismos de redistribuição". Ou seja, acabavam-se os monopólios, mas impediam-se as ligas fechadas.
Segundo Poiares Maduro, Portugal, estando neste momento com a presidência da União Europeia, "tinha a oportunidade de colocar isso na agenda política e legislativa da UE", aproveitando assim esta grande demonstração dos "adeptos da Europa não quererem ligas fechadas".
"Eles não perderam porque desafiaram o monopólio da UEFA e da FIFA, eles perderam porque desafiaram esse monopólio pretendendo criar um outro monopólio ainda mais fechado. Isso que levou à reação dos adeptos", afirma o antigo ministro.
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