Não existia forma de este momento ser mais fácil ou mais bonito. As despedidas são sempre duras e o Real Madrid não é particularmente bom nelas. Não foi com Iker Casillas, Raúl ou Cristiano Ronaldo, todos eles jogadores que gravaram os melhores anos das suas carreiras no relvado do Santiago Bernabéu e que por vários motivos não as acabaram ali; e também não foi com Sergio Ramos, que também não vai pendurar as chuteiras envergando a camisola merengue.
O capitão, que chegou à capital espanhola no dia 31 de agosto de 2005, saiu ontem, quase 16 anos depois. Ramos foi para Madrid com apenas 19 anos e embalado por um valor de transferência recorde para o campeonato espanhol — 27 milhões de euros pagos ao Sevilha, emblema que o formou, cidade que lhe abriu as portas para o futebol de alta competição, ali logo em frente a Camas, cidade de onde é natural, separada de Sevilha pelo rio Guadalquivir.
Neste período que vai além de década e meia existem 22 títulos, entre os quais quatro Ligas dos Campeões e cinco La Liga, uma braçadeira de capitão e 101 golos com a camisola do Real. Para outros haverá o recorde de expulsões tanto no clube (26) como na Liga Espanhola (20). Mas a imagem que fica da conferência de imprensa de despedida do defesa central é o contraste: de um lado está o Sergio de 19 anos a receber o número 4 do lendário Fernando Hierro e a integrar o plantel dos Galáticos onde também jogavam nomes como Roberto Carlos, Zinedine Zidane, David Beckham, Raúl ou Ronaldo; do outro, um homem de 35 anos engravatado com o menor número de jogos feitos numa época desde que joga no Real Madrid (21) sobre os ombros a dizer que queria ficar no clube, que sair não era a opção. Tudo isto numa ação que decorreu durante um Europeu para o qual o central, que soma dois Euros e um Mundial no currículo com a La Roja, não foi convocado.
“Chegou um dos momentos mais difíceis da minha vida, ninguém está preparado para dizer adeus ao Real Madrid", disse, em lágrimas, o futebolista, que garantiu ainda que “nada voltará a ser como o que vivi aqui”, prometendo que isto não era um "até sempre", mas um "até já", porque, "mais tarde ou mais cedo, voltarei”.
Sobre a não renovação com o clube da capital espanhola, Ramos garantiu que “dinheiro nunca foi um problema”, assumindo que aceitaria, sem problemas, uma redução salarial. O diferendo entre o jogador e o Real Madrid estava na duração do contrato. “Ofereciam-me um ano e eu queria dois, queria continuidade para a minha família. Nas últimas negociações digo que aceito e respondem-me que já não há oferta”, revelou o central, atirando o ónus do desfecho para o mal-amado Florentino Pérez.
Mas o que é que faz de Sergio Ramos um símbolo absoluto, e muito provavelmente o último, do madridismo? Podíamos fazer um exercício abstrato como fez Ed Malyon, no artigo que escreveu para o The Athletic sobre o central, dizendo acreditar que se pedisse a alguém para desenhar o maior símbolo do Real Madrid neste século, que a esmagadora maioria desenharia a figura do defesa.
Seja tal verdade ou não, Ramos foi-se afirmando e crescendo como líder no Santiago Bernabéu. À medida que outros saíam, o defesa puxava para si as responsabilidades do clube. E não há melhor exemplo disso do que a conquista da La Decima.
A décima Liga dos Campeões fugia ao Real Madrid desde 2002/03. Os famosos Galáticos, equipa da qual fez parte o português Luís Figo, conseguiram ‘apenas’ uma orelhuda, ficando aquém do que era esperado e deixando um vazio emocional entre os adeptos e dentro do clube. A espera custava e parecia demorar ainda mais porque o FC Barcelona, eterno rival, venceu, dentro desse período, três Ligas dos Campeões.
Mas se os Blaugrana já se tinham encontrado num estilo de jogo e na magia de La Pulga, o Real ainda construía a sua identidade. Ainda procurava que os seus jogadores se encontrassem com os valores do clube. E se Cristiano Ronaldo era indubitavelmente a maior estrela do clube, não era a maior figura do madridismo, do que aquele clube representa. Esses lugares estavam reservados, na altura, a Casillas e Ramos. E o último, na final de Lisboa em 2014, sintetizou toda a história do clube naquele golo de cabeça aos 90+2 que levou a final da Champions, que todos davam como ganha pelo Atlético de Madrid, a prolongamento. Trinta minutos depois estava com o troféu nas mãos, talvez a taça mais desejada da história do Real Madrid.
Um ano de interregno depois, haveria repetir o gesto por três épocas consecutivas, mas desta vez a erguer o troféu, uma vez que Casillas tinha deixado o clube e transferiu-se para o FC Porto.
O minuto do golo marcado no estádio da Luz está tatuado na mão de Ramos, tão presente no seu corpo como as lágrimas deste adeus forçado num clube que também perdeu Zinedine Zidane como treinador.
Sergio Ramos, que decidiu tantos jogos no último minuto, que marcou golos em 17 edições seguidas da Liga espanhola — um recorde para um defesa —, que voou e caiu com o Real Madrid nestes últimos 16 anos, caiu de vez. Garantiu que não vai ficar a jogar em Espanha e as teorias sobre o seu futuro começam a ganhar forma com Paris Saint-Germain e vários clubes da liga inglesa a afigurarem-se como principais candidatos.
Em que clube é que se vai gritar golo no último minuto? Em que clube é que Sergio vai mostrar ao Real Madrid que foi um erro terem-no deixado partir? E como vai o Real sobreviver sem uma figura que seja tanto a sua cara, um homem espanhol — que admitiu que se não fosse futebolista seria toureiro —, de bom futebol e sempre com um Hala Madrid debaixo da língua pronto a sair cá para fora?
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