Episódio 8: Muito mais que um jogo de futebol

Veja todos os episódios de Chegámos Lá, Cambada aqui.


A forma como o futebol é um acelerador de partículas para os nossos maiores receios e fragilidades e também para os nossos maiores feitos e capacidades acompanhou as mais de 150 horas de gravações para a série Chegámos Lá, Cambada. Mas, ainda assim, não podemos dizer que produzir o último episódio, aquele em que o tema é esse campeonato de 2016 em França em que trouxemos a taça para casa, foi igual aos outros. É verdade que vibrámos ao recordar imagens e histórias desse Euro 2004 em que fomos tão felizes apesar da tristeza. É verdade que nos detivemos nos episódios com 30 anos de Saltillo e do Mundial do México que nos transportaram para um tempo da nossa história que parece matematicamente tão perto e vividamente tão distante. Mas, 2016 e aquele minuto 109 é qualquer coisa de diferente, daquelas que se guardam, daquelas que se vão contar aos filhos e aos netos. Daquelas que nos permitem perguntar a qualquer português contemporâneo “onde é que estavas no golo do Éder” e ter a garantia ele ou ela sabem. Até pode não saber onde estava, mas não esquece o que sentiu.

Por isso, voltamos ao ponto: como é que é isso de nos sentirmos campeões? O que é que isso muda em nós? Acreditamos que aconteceu porque o procurámos ou ainda usamos a máxima de tantos portugueses que o sucesso é sorte e o fracasso é incompetência?

Talvez não seja assim tão estranho pensarmos que podemos ter ganho quando estávamos no chão. Podemos ter ganho porque o nosso melhor não estaria lá para nos salvar. Podemos ter ganho porque afinal somos sempre melhores, seja qual for a língua que falemos, quando somos uma equipa. Ou como diz o jornalista da RTP Carlos Daniel, a vitória da “ideia de que temos de nos juntar mais ainda, temos que lutar mais ainda", ele que confessa que acreditou que íamos ganhar aquele jogo no Stade de France precisamente quando Cristiano Ronaldo teve uma saída forçada de campo. Das lágrimas de tristeza - as que nos fizeram recordar 2004 - às de alegria nesse final de partida. Uma história afinal bastante comum em Portugal e com os portugueses: somos quase sempre melhores quando estamos em desvantagem, quando poucos acreditam que seja possível chegarmos lá.

Claro que esta visão psicológica de uma equipa e de um país tem uma moldura racional e pragmática. “ A nossa seleção tinha maturidade suficiente para saber que não era a melhor equipa mas que se fizesse as coisas bem feitas conseguia chegar lá”, diz Nuno Gomes. E chegaram. Com a astúcia que se reconhece a Fernando Santos e com um pragmatismo que imprimiu à seleção nacional. “Às vezes fica a sensação que temos um bocadinho de vergonha de ser feios, não ser tão bonitos - mas se isso nos trouxer a eficácia, temos de ser feios eu não me importo nada de ser feio, eu quero é que ela entre lá para dentro”, afirmou o selecionador nacional ia o Euro 2016 a meio.

É uma escolha que se faz, num país e num povo que gosta pouco de fazer escolhas. Afinal somos o povo do "assim assim" e que quer ser um pouco de tudo. Essa ideia de ganhar, assumindo que pode não ser da forma “bonita”, é toda uma ideia nova para um país habituado a discutir o jogar bem e o merecer ganhar como temas nacionais. O futebol “feio” de Fernando Santos acabou com as vitórias morais e nós gostámos disso. “Jogar bem é ganhar”, remata Vitor Serpa, diretor de A Bola. Ganhar, esse verbo que descobrimos com uma felicidade de principiante.

“Nós não ganhámos o campeonato europeu de futebol de 2016 porque tivemos sorte. Não, não, nós tivemos imenso mérito e depois tivemos essa pontinha de fortuna que ajuda os grandes líderes, que ajuda aqueles que foram audazes” - para a professora Raquel Vaz Pinto a vitória está, ainda assim, além do mito, além da sorte. A vitória foi trabalho, foi estratégia, e devemos assumi-la como tal.

“Há uma ligação entre o pontapé do Carlos Manuel em Estugarda e o do Éder em Paris. Um sem o outro não teria sido possível”, diz Pedro Adão e Silva, que recua 30 anos no tempo e descreve assim este arco suportado pelo trabalho de investigação que realizou para o livro "Deixem-nos Sonhar". Isto anda tudo ligado, já sabemos. Mas a História com H maiúsculo exige distanciamento e sim, possivelmente, precisámos de 30 anos para perceber que era preciso esse primeiro passo - essa revolução rumo à modernidade que Saltillo nos trouxe - para um dia podermos aspirar ser campeões. Para 30 anos anos mais tarde, no Stade de France, Nuno Matos e Alexandre Afonso, os míticos locutores da Antena 1 nesse jogo do nosso contentamento na final do Europeu de 2016, gritarem em plenos pulmões “nós somos campeões”.

E, mais do que isso, para sentirmos que, finalmente, chegámos lá. “E depois diz-me uma alma mais desgraçada que um jornalista não pode comemorar? Caramba, onde é que está a insensibilidade? Stade de France, 10 de julho de 2016, Portugal campeão da Europa  e nós não fazíamos isto?”, justifica Alexandre Afonso. Naquela bancada, ele e Nuno Matos, sentiram o peso da história e a leveza da libertação de um fardo que carregávamos, o do nunca lá termos chegado. Vencemos o fado. Vencemos. “Somos campeões da Europa, contra tudo e contra todos … soubemos sofrer, é uma grande seleção …e desculpem-me os franceses, c’est la vie”.

Não é por isso demais a afirmação de Rui Dias, jornalista do Record e um dos mais atentos e completos analistas da história do futebol português. “Nada se pode comparar ao pontapé do Éder. É o momento mais importante do desporto português.”, é como resume tudo o que aconteceu.

O futebol é um jogo. Podemos esquecê-lo muitas vezes, nesta era da técnica, mas continua a ser um jogo. Aliás, só é apaixonante porque é um jogo. Só nos faz vibrar porque tem essa estranha magia de inverter volta e meia as regras da lógica e permitir  que o fraco vença o forte, que David derrote Golias, que simplesmente o improvável aconteça. E quando o improvável é a nosso favor, há lá sentimento mais inesquecível que esse. Se como Einstein dizia andamos por aqui a jogar aos dados com o universo - isto somos nós a ganhar ao universo. Isto é o Eder marcar aquele golo aos 109 minutos e voltarmos todos a ser uma criança, feliz como uma criança pode ser, embalados num conto infantil em que o patinho feio se torna herói ou o sapo vira príncipe.

Mas voltemos àquilo que somos hoje, àquilo que seremos neste dia 15 de junho em que entramos em campo campeões europeus e em que tantos esperam que possamos discutir o sonho maior de sermos campeões do mundo. Pode não ser neste mundial. Podem não ser estes 23. Mas o que já ninguém nos tira é essa possibilidade. Essa ideia pacificada que um dia poderá acontecer. “Na primeira conversa que tive com eles, disse 'eu acredito e todos vamos acreditar que podemos chegar à final do campeonato e vencer'”, contou Fernando Santos sobre o Euro 2016. E acreditar é possuir antes de ter, é o que dizem.

É por isso que todos gritámos “apita, apita, apita” em coro com Nuno Matos naqueles momentos finais do Portugal-França de 10 de julho de 2016. Apita, não nos roubes esta alegria infantil como são as melhores. Apita, que há pelo menos 30 anos que esperamos este momento. Apita por causa do Carlos Manuel, do Manuel Bento, do João Vieira Pinto, do Luís Figo, do Rui Costa, do Abel Xavier, do Pauleta, do Nuno Gomes, do Ricardo, do Cristiano menino no relvado do Estádio da Luz e do Cristiano homem no relvado do Stade de France. Por causa do José Torres, do Carlos Queirós, do António Oliveira, do Luiz Felipe Scolari, do Paulo Bento e do Fernando Santos. Por causa deles todos e por causa de todos nós.


 “Chegámos Lá, Cambada” é um documentário produzido pela MadreMedia e que vai estar em exibição no SAPO24 entre 22 de maio e 14 de junho. Ao longo de oito episódios vamos contar a história de 30 anos da seleção, do pontapé de Carlos Manuel, em Estugarda, ao golo do Éder, em Paris, que nos deu a vitória no Euro 2016.

As suas memórias destes 30 anos fazem parte da história. Partilhe-as connosco através do email chegamoslacambada@sapo.pt e os melhores textos serão publicados neste dossier especial.