Aos olhos daquilo que foram os resultados do futebol português no século XXI, e daquilo que também eram as previsões para esta temporada 2020/21, podemos dizer que o que aconteceu na sexta jornada, a ronda em que o Sporting subiu para o primeiro lugar na liga, foi, no mínimo, inesperado.
O FC Porto, que somava um início de temporada atribulado, perdeu em casa daquela que se viria a afirmar como equipa sensação da época, o Paços de Ferreira, por 3-2. Era a segunda derrota do campeão em título e o terceiro jogo em que Sérgio Conceição e companhia perdiam pontos no arranque do campeonato. Em 18 pontos possíveis, os azuis e brancos somavam apenas 10, depois de escorregadelas contra os Castores, o Marítimo (derrota por 2-3 no estádio do Dragão) e um empate em Alvalade.
O SL Benfica, que chegava a esta ronda só com vitórias e líder da liga, foi goleado no Bessa por 3-0. Os encarnados, que gastaram mais de 80 milhões de euros em reforços, naquele que foi o maior investimento da história do clube num só mercado - e da liga portuguesa - levaram uma chapada de luva branca sobre como a Liga NOS estava longe de ser um passeio na praia para o regressado treinador Jorge Jesus e para a sua nova “super” equipa.
O Sporting CP foi a única réstia de normalidade naquilo que seria de esperar do desempenho dos chamados três grandes frente a adversários, teoricamente, mais fracos. Recebeu e goleou o CD Tondela por 4-0, assumindo assim a liderança do campeonato; lugar que não deixaria até se sagrar campeão nacional.
Desengane-se, no entanto, quem achar que esta jornada é uma espécie de resumo de perfeito desta edição do campeonato. Podia ser, em parte, uma vez que traduz os rendimentos abaixo das expectativas tanto das Águias como dos Dragões, mas, por outro lado, corre seriamente o risco de levar a uma conclusão errada, a de que os Leões são campeões mais por demérito dos adversários do que por mérito próprio, uma calúnia para uma equipa que volta a erguer o título de campeão nacional com um plantel avaliado em cerca de menos 80 milhões de euros do que Porto (263 ME) e Benfica (261 ME), com um treinador jovem, com apenas uma época de experiência com técnico principal, e que chega ao dia de hoje, data em que a matemática estabelece um cerco em torno do estádio de Alvalade e garante que dali já ninguém leva o ‘caneco’, sem qualquer derrota no campeonato.
O caminho do Sporting CP para chegar a este título que lhe foge há 19 anos, desde que László Bölöni se sagrou campeão com os verdes e brancos em 2001/02, começou verdadeiramente na temporada passada, quando Frederico Varandas cometeu aquilo que agora parece tudo menos uma loucura: depois de ter tido, na mesma época, no banco, no lugar de técnico, Marcel Keizer, Jorge Silas e Leonel Pontes, o presidente leonino decide ir buscar Rúben Amorim, então treinador do Sporting de Braga, pagando uma cláusula de rescisão de 10 milhões de euros, valor que viria a crescer até aos 14 milhões devido a atrasos no calendário de pagamentos ao emblema minhoto.
O que os Leões "perderam" em milhões, Rúben ganhou em tempo. Os 11 jogos em que o novo treinador orientou a turma de Alvalade na reta final de 19/20 (6 vitórias, 3 empates e 2 derrotas) podem parecer coisa pouca, mas foram fundamentais para ensaiar o modelo de três defesas centrais, que marcaram a passagem de Amorim pelo Braga, onde venceu uma Taça da Liga, derrotou todos os chamados três grandes e conquistou um confortável terceiro lugar na liga, antes de se mudar para Alvalade e ter falhado em roubar esse mesmo último lugar do pódio, apenas por critérios de desempate entre o emblema bracarense e equipa leonina.
Para além do novo esquema tático, pouco habitual no futebol português - mas comum aos primeiros jogos da última época em que o Sporting se tornou campeão, com Jardel, João Pinto e Niculae a formarem um tridente ofensivo que só foi desfeito pela lesão do romeno -, Rúben Amorim teve oportunidade de medir o plantel, perceber os pontos fracos e fortes dos jogadores que tinha à disposição, avaliar os objetivos do mercado de verão e conhecer os jogadores da Academia do Sporting que viriam a ser parte do seu passaporte para o sucesso na época seguinte.
Assim, no verão, e com precisão, chegaram a Alvalade Pedro Gonçalves (Médio - FC Famalicão), Nuno Santos (Extremo - Vitória de Setúbal), Zouhair Feddal (Defesa Central - Bétis de Sevilha), Tabata (Avançado - Portimonense), Matheus Reis (Médio - Rio Ave), Pedro Porro (Lateral Direito - Manchester City - empréstimo) e João Mário (Médio - Inter de Milão - empréstimo). Além disso, Amorim fez regressar de empréstimo João Palhinha (Médio Defensivo), com quem tinha trabalhado no Braga, promoveu à equipa principal Nuno Mendes (Defesa Esquerdo), Daniel Bragança (Médio), Gonçalo Inácio (Defesa Central) e Tiago Tomás (Ponta de Lança) e estreou ainda ao longo da época Eduardo Quaresma (Defesa Central) e Dário Essugo (Médio Defensivo), que não foram, no entanto, opções regulares.
Em todas estas movimentações o Sporting gastou menos de 13 milhões de euros.
Como nem tudo é um mar de rosas, nem pode ser numa equipa cujos problemas financeiros são públicos e que já tinha cometido a “loucura”, na época passada, de pagar um valor proibitivo por um treinador, sobretudo um de poucos créditos firmados, Amorim perdeu nomes fortes como Wendel, Marcos Acuña ou Luciano Vietto - curiosamente tudo jogadores que jogaram mais do que um minuto na liga esta temporada e por isso vão receber a medalha de campeão no correio. Estas vendas, a que se soma o facto de o West Bromwich ter exercido o direito de compra sobre Matheus Pereira, permitiu aos Leões encaixar quase 45 milhões de euros.
Com um plantel de valores longe dos rivais diretos e com nomes desconhecidos para maioria dos adeptos de futebol, algo que foi um contraponto com outros clubes portugueses além de Benfica e Porto - para além do Sporting de Braga, que contratou Nicolás Gaitán, ou mesmo do Boavista, que se reforçou com Rami, campeão do mundo, Angel Gomes ou Javi Garcia -, os Leões começaram a temporada a ser eliminados da Liga Europa ainda na fase de play-off aos pés dos austríacos do Lask Linz. Aquilo que foi visto primeiramente como um passo atrás nas ambições para a época, foi depois uma mais valia no que toca ao calendário, que ficou inevitavelmente mais espaçado do que o dos adversários diretos.
Aliás, não deixa de ser curioso como uma saída antecipada da Europa parece beneficiar os Leões. Já em 1999/2000, quando Augusto Inácio conseguiu colocar fim a um jejum de campeonatos nacionais que durava há 18 anos, a equipa de Alvalade tinha caído logo na primeira ronda da antiga Taça UEFA aos pés dos noruegueses do Viking.
Se a época começava com um percalço nas competições europeias, na liga nada parecia problemático. O Sporting somava vitórias, Pote destacava-se como médio goleador no lugar que outrora fora de Bruno Fernandes, a linha de três centrais convencia, na baliza Ádan dava a tranquilidade e experiência que faltavam desde a saída de Rui Patrício, Porro na direita e Nuno Mendes na esquerda mostravam ter unhas para tocar guitarra com os mais velhos, João Mário voltava a relembrar o jogador que foi antes de sair de Alvalade, e lá na frente Tiago Tomás dava cartas. Num mundo paralelo a tudo isto, Sebastian Coates incorporava a figura do capitão como não se via em Alvalade talvez desde Pedro Barbosa.
Vale a pena recordar que, antes do campeonato começar, o Sporting dificilmente era antecipado como possível campeão. Segundo uma avaliação feita pela Solverde, na primeira jornada da Liga Portuguesa, em setembro, o clube de Alvalade era o emblema dos três grandes com menos probabilidades de ser campeão. O Sporting tinha apenas 3% (odd 29) de probabilidade de ser campeão na temporada 2020/2021. Por outro lado, o Porto tinha 54% (odd 1.85) de probabilidade ser campeão; e o favorito era mesmo o Benfica, que começou o campeonato a golear o Famalicão - 66% (odd 1.6) de probabilidade de ser campeão.
À medida que as jornadas iam passando, aquela liderança que os Leões nunca mais largaram começou a parecer cada vez menos casuística. O primeiro grande sinal disso, foi quando o Sporting chegou ao Natal no primeiro posto, algo que não acontecia há 19 anos, desde que os verdes e brancos tinham sido campeões com Boloni. Depois veio a conquista da Taça da Liga, com vitórias sobre Porto e Braga na Final Four em Leiria e que fizeram praticamente esquecer a eliminação da Taça de Portugal nos oitavos-de-final, uma semana antes, diante do Marítimo.
Mas se o futebol apresentado era bom, se tudo indicava que este ano o Sporting que na liga teimava em não perder - e não perdeu nenhum jogo até hoje -, o sportinguista continuava a achar que a coisa podia não correr bem. Afinal de contas, se a tabela mostrava boas possibilidades até ao título, a memória dos sportinguistas exibia quase em simultâneo as imagens de 2004/05, a famosa época “do quase”, em que os Leões perderam o campeonato para o SL Benfica na reta final da competição, ficando como momento eterno dessa disputa o golo de Luisão ao minuto 83 da jornada 33, que ainda hoje não gera consenso entre os adeptos dos dois clubes, sobre se terá ou não havido falta do central brasileiro sobre o guarda-redes Ricardo, e perderam também a final da Taça UEFA em casa diante do CSKA Moscovo; existem ainda as imagens de 2006/07, quando os Leões ficaram apenas um ponto do FC Porto, mas sobretudo 2015/16, quando, com Jorge Jesus, 86 pontos foram insuficientes para roubar o título ao Benfica de Rui Vitória, campeonato esse que tem também uma imagem, uma que gera mais pesadelos do que discussões: Bryan Ruiz a falhar um golo de baliza aberta num jogo diante do encarnados em Alvalade na segunda metade do campeonato.
A expectativa para voltar a ver o Sporting campeão era muita. Já tinham passado quase 20 anos e por isso o adepto não queria deixar-se enganar. Rúben Amorim, apesar de não ser sportinguista e tendo um passado ligado e assumido ao Benfica, sabia disso como qualquer adepto do futebol português o sabe. Por isso, e para conservar a boa saúde mental de um balneário ainda demasiado jovem para lidar com as contas do título, cimentou a certeza antes de assumir, formalmente, a candidatura.
Falar para um público sedento de conquistas não é fácil. É preciso ser-se cuidadoso. Claudio Ranieri, em 2016 também o foi. Só assumiu que o Leicester era candidato ao título a quatro jornadas do fim da Premier League, depois de ter garantido a presença na Liga dos Campeões na época seguinte e assegurado uma distância confortável de quatro pontos para o segundo classificado, o Tottenham Hotspur. E não, este que vos escreve não está a comparar os Foxes ao Sporting CP, são clubes com histórias diferentes, mas cujas travessias no deserto, cada uma com o seu contexto, levaram a gestões de entusiasmos semelhantes.
Voltando ao nosso calendário. O início de 2021 terá sido o momento mais importante para o resto do campeonato dos Leões. Não só cimentaram a liderança com estilo como venceram o Benfica em Alvalade (1-0), empataram no Dragão, venceram a Taça da Liga e Amorim conseguiu duas peças chave para o plantel, uma para o balneário, o experiente lateral direito João Pereira, que já tinha passado por Alvalade em entre 2015 e 2017, e Paulinho, internacional português com quem tinha trabalhado no Braga e que era um desejo do técnico desde que assinou pelo Sporting.
Passado os primeiros dois meses de 2021, o título pareceu uma realidade cada vez mais próxima. O Sporting CP, como fiel fator instável dos cardiogramas dos adeptos, ainda pregou um susto, com uma pequena baixa de rendimento, aparentemente pela dificuldade em integrar Paulinho no esquema tático da equipa e face a uma perda de rendimento de João Mário, o que resultou em três empates em quatro jogos.
Se à jornada 24 os Leões levavam 10 pontos de vantagem sobre os Dragões, à 28ª essa diferença era apenas de 4 pontos. Mas logo na jornada seguinte os eletrocardiogramas da nação sportinguista voltaram ao normal com uma vitória da equipa de Alvalade sobre o Braga, aumentada pelo empate dos azuis e brancos em Moreira de Cónegos. Um novo empate do FC Porto, desta vez na Luz (1-1), na jornada 31 deu aos Leões novamente uma vantagem confortável, desta vez de 8 pontos, que praticamente garantia o título a uma equipa que já batia recordes de invencibilidade nunca antes registados pelo clube de Alvalade - e no campeonato português.
Com um triunfo no reduto do Rio Ave (2-0), na 31.ª ronda da edição 2020/21, o Sporting bateu o recorde da I Liga de futebol de jogos consecutivos sem perder na mesma época, ao chegar aos 31. Com 24 vitórias e sete empates, o conjunto de Rúben Amorim logrou o que nenhuma outra equipa de qualquer clube tinha conseguido na história da prova, sendo que esta é apenas a 26.ª vez, em 87 edições, que a prova tem mais de 30 rondas.
Na ronda anterior, com um triunfo por 2-0 na receção ao Nacional, o Sporting já tinha igualado os registos de Benfica (1972/73 e 1977/78) e FC Porto (2010/11 e 2012/13), que tinham acabado invictos em quatro campeonatos com 16 equipas a competir. Em campeonatos com mais de 30 rondas, o recorde pertencia ao FC Porto, que, em 1987/88, época em que venceu a Taça Intercontinental, a Supertaça Europeia, o campeonato e a Taça de Portugal, só perdeu a invencibilidade à 29.ª jornada.
Depois de 21 vitórias e sete empates nos primeiros 28 jogos, os ‘dragões’ perderam por 2-1 em Alvalade, a 9 de abril de 1988, culpa dos golos de Paulinho Cascavel e Mário Jorge, contra um de Jorge Plácido. Seria o único desaire, em 38 embates.
Nas anteriores 22 edições com 34 rondas, o máximo também era do FC Porto e datava de 2003/04, época em que os comandados de José Mourinho estiveram 27 jogos sem perder, até caírem no reduto do Gil Vicente, em embate da 29.ª ronda – tinham um jogo em atraso.
Foi precisamente após estabelecer este marco e depois de ganhar uma nova distância de conforto para o FC Porto, apenas com a necessidade de ter de fazer dois pontos em três jornadas, que Rúben Amorim, pela primeira vez, admitiu que o Sporting era candidato ao título.
“Sempre disse que, se chegássemos a este ponto, em que estivessem em jogo três pontos que nos dessem um título, obviamente que somos candidatos ao título.
A certeza chegou esta terça-feira, dia 11 de maio de 2021. 6.953 dias depois do dia 28 de abril de 2002, o Sporting é novamente campeão nacional naquele que é um manifesto do que é o clube, com a Academia em destaque, com um capitão que personifica como poucos o amor à camisola, e sobretudo em grande estilo, numa série vitoriosa nunca antes vista. Esta época foi um manifesto de como o Sporting Clube de Portugal é um dos grandes clubes de Portugal e nunca deixou de o ser.
Nota: Todos os valores de transferências e de avaliação de jogadores foram retirados do site https://www.transfermarkt.pt/
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