Os pergaminhos e a história do futebol valem o que valem, diz o povo. A superstição de quem acredita em vencedores predestinados também. O mesmo vale para os feelings que aparecem quando se descobre quais são as equipas que vão disputar uma final. Quando chega a altura, o momento dos conjuntos, as lesões e tudo o mais ameaçam influenciar o desfecho de uma final europeia. No entanto, há algo parece não se aplicar nestas contas quando o torneio em causa é a Liga Europa e um dos treinadores que a disputam é o espanhol Unai Emery. Aliás, a este ponto se calhar mais vale mudar o nome da competição tal é o sucesso do técnico. Afinal, o Almirante do Submarino Amarelo conseguiu a proeza de conquistar o quarto título, uma vez que no currículo já tem três troféus conquistados ao serviço do Sevilha (2013/14, 2014/15 e 2015/16).
No final de uma longa sessão de penáltis, Rashford e Bruno Fernandes estavam em lágrimas, Luke Shaw permanecia inerte como uma estátua. No ano passado, os ingleses foram eliminados pelo Sevilha nas meias finais da Liga Europa. Hoje, voltaram a cair aos pés de um clube espanhol, embora o sentimento deva ser infinitamente pior porque perder uma final traz sempre um sabor agridoce. Uma coisa é estar a um passo de lá chegar. Outra, bem diferente, é perder uma ao fim de mais de vinte penáltis.
Rio Ferdinand, atualmente comentador desportivo, é um histórico do United. Inscreveu o nome em muitas conquistas dos Diabos Vermelhos e sabe do que fala. Em declarações à BT Sport, ainda que a quente e no final do jogo, o saldo daquilo que viu esta quarta-feira à noite deveu-se ao facto de o Manchester ter estado refém de rasgos individuais durante toda época. E, quando se depende do individual ao invés do coletivo, quando este não aparece, paga-se a fatura. Esta noite pagaram por causa do comportamento dos jogadores mais avançados no último terço do campo. Faltou "imaginação e criatividade" para tirar outro resultado, vaticinou o antigo defesa inglês.
Do outro lado da barricada, temos um Submarino Amarelo que não mais é do que um exemplo em Espanha (e que devia de ser noutros países também). O Villarreal tem os gráficos das suas finanças numa situação saudável, o que lhes permitiu fazer negócios no mercado de transferências no verão passado quando a maioria dos clubes sentiu a crise provocada pela pandemia. Mas com a inteligência e diligência de estruturas que sabem o que andam a fazer.
Além de terem ido recrutar a custo zero um dos melhores jogadores espanhóis, o médio Dani Parejo, foram também buscar o seu parceiro no meio-campo do Los Che, Francis Coquelin, por apenas 5 milhões de euros. Feitas as afinações no plantel e com Emery a dar oportunidades a uma grande fatia dos seus tripulantes mostrarem serviço, o Villarreal passou pela fase de grupos da Liga Europa com cinco vitórias e um empate — marcando 17 golos nos seus seis jogos. Depois eliminou os "Dinamos": o Kiev e o Zagreb. A seguir, nas meias finais, eliminou o Arsenal. Para chegar a onde está agora e ao jogo desta final que nos traz aqui.
O primeiro golo da partida veio de um pé (ou jogador) habitual nestas andanças: Gerard Moreno. O espanhol não quis saber da corrente do jogo, do caudal ofensivo com bola do United e se a sua equipa estava demasiado recuada no relvado. Não, Moreno só quer saber de meter a bola dentro da baliza e foi precisamente isso que fez ao minuto 29’. Nem que seja porque igualou Giuseppe Rossi no primeiro posto da lista de maior artilheiro de sempre do Villarreal com 82 golos. Haverá melhor jogo do que este para ascender ao panteão dos melhores marcadores de um clube do que uma final?
A bola fez balançar a rede na sequência de um livre descaído sobre a asa esquerda já no terreno dos ingleses. Cavani, qual sul-americano de sangue quente, recuou no terreno e ao tentar recuperar a bola no meio-campo entrou mais rijo e fez falta. Parejo, o segundo homem na hierarquia do Submarino Amarelo, esteve encarregado de bater as bolas paradas com excelência e fez o que dele se espera neste tipo de situações. Mandou uma banana a cair nas costas da defesa para o coração da área e, qual jogada de laboratório, Moreno, de pé direito, ele que até é canhoto, correspondeu da melhor forma, antecipando-se à marcação inexistente de Luke Shaw, e de raspão desviou o esférico com a força suficiente para este saísse do raio de ação de De Gea.
(Pequena nota: este golo tem o seu quê de curioso. É o primeiro golo entre Villarreal e Manchester United após 389 minutos de futebol. Ou seja, nos quatro encontros entre estes dois conjuntos não havia quem acertasse passo e marcasse um tento. Foi preciso esperar até hoje. É caso para dizer que demorou, mas foi.)
Nos primeiros 45’, independentemente do domínio territorial do United, foram os espanhóis a chegar primeiro à vantagem. Já se sabe que ter muita bola não quer dizer que esse domínio se traduza em oportunidades flagrantes. Uma coisa é estar no terreno do adversário, abusar dos laterais (Shaw e Wan-Bissaka atuaram como autênticos extremos) e andar a cheirar a área mais distante. Outra, bem diferente, é criar atividade de pré-golo clamorosa.
Ora, o caudal ofensivo dos Diabos Vermelhos nesta altura do jogo pode traduzir-se em dois remates para fora (McTominay aos 6’, Shaw aos 20’) e um remate enquadrado de Rashford para uma defesa fácil de Rulli. Pouco para quem queria repetir o feito de José Mourinho e companhia em 2017. O United de Solskjaer parece atuar melhor quando defronta um adversário que sobe as linhas e tenta ter o domínio do jogo — e esta noite teve pela frente uma equipa com uma estratégia diferente e longe de tentar assumir as rédeas.
O Villarreal manteve o conjunto compacto, coeso e não deixava espaços nas costas da defesa porque tinha as suas linhas recuadas junto à sua área. Isto levou a que os ingleses não tivessem chances para criar perigo. Unai é um homem que já ganhou três troféus — com o de hoje, quatro — e se há alguém que já conhece esta competição de trás para a frente é ele. Domínio ajuda muito, mas golos contam mais. (Basta perguntar ao Inter de Milão finalista vencido do ano passado.) E a estratégia do Submarino Amarelo de fechar com cinco homens na defesa, aliando à combatividade de Bacca e à irreverência do adolescente Pino na frente, pareciam suficientes para deixar a turma do norueguês em sentido.
Em resumo, nos primeiros quarenta e cinco minutos o plano correu de feição para Emery e, em sentido oposto, foi ao encontro de tudo menos aquilo que era a estratégia de Solskjaer. Moreno marcou o seu golo número 30 da época e o United tinha dificuldades em materializar o domínio em jogadas de perigo ou em fazer avançar o placard. Mas o desporto-rei tem 90’ e não 45’. E todos sabemos que não se ganham jogos apenas numa metade de um encontro.
O Manchester United quis inverter o curso dos acontecimentos o mais rapidamente possível. Tanto que foram a primeira equipa a sair do balneário. No sentido inverso, o conjunto espanhol tomou o seu tempo — e do que era possível aferir os jogadores revelam linguagem corporal que espelhava tranquilidade. E essa mesma tranquilidade parecia evidente quando a bola começou a rolar no segundo tempo.
Tanto que logo nos minutos iniciais o Villarreal conseguiu conduzir a bola até à área adversária. A redondinha pingou até Alfonso Pedraza, na esquerda, que bate um cruzamento venenoso. Depois o que vemos é o central francês Eric Bailly a falhar por completo — o lance causou pela certa um calafrio na espinha dos adeptos do United. Ainda no mesmo lance, imediatamente a seguir, a bola parecia que ia sobrar para Bacca — era só o colombiano rematar e fazer o golo. Mas o que acontece? Escorrega e não consegue disparar. Porém, o lance não termina aí porque a bola ainda foi pairar sobre o espaço gravitacional de Moreno, o homem golo. Só que ele também não consegue fazer rematar e a defesa inglesa alivia e o lance de um possível 2-0. Muita sorte.
E se é verdade que o ditado diz que a sorte protege os audazes, a realidade demonstra que quando se defronta Cavani, não há audácia suficiente no mundo para impedir que o uruguaio faça golos. Se no início quando aterrou em Inglaterra a sua chegada causou alguma desconfiança nos adeptos do United, os golos na Liga Europa e a excelente reta final na liga inglesa permitiram que a desconfiança desse lugar a admiração — que por sua vez levaria também à renovação do contrato para estender a ligação com a equipa por mais um ano. Enfim, todo um parágrafo para escrever que aos 54’, o avançado cirúrgico faria o empate, num golo típico deste ponta-de-lança. Não há finta bonita, recorte técnico primoroso ou highlight para o YouTube. Há faro, há instinto, há sentido de oportunidade, há golo.
O lance começou com um remate desviado de McTominay que deu canto. Há marcação sob o olhar atento da bandeirola de canto. A bola cai na área, mas é respingada de cabeça pela defesa até cair perto de Rashford. O inglês remata atabalhoado, a bola sobra para o local do caçador mortífero que dá pelo nome de Edison Cavani e este empurra-a para dentro da baliza. Convenhamos, por tudo o que já tinha feito e corrido em campo, foi um golo que — sem medos — se pode assumir como era merecido. O lance ainda foi ao VAR mas só para confirmar que o United conseguia recuperar pela décima segunda vez um resultado de desvantagem nesta temporada. Jovens (a média de idades do onze inicial era de 26 anos), mas resilientes.
O que se passou depois foi uma autêntica odisseia inglesa à procura da vantagem. Aos 70’, ainda que o lance fosse anulado por fora de jogo, Rashford desperdiçou uma clara e evidente chance de golo. Se nas linhas anteriores se escreveu que o Manchester não criava oportunidade, que posse de bola não era sinónimo de oportunidades flagrantes, diga-se que o jovem inglês desperdiçou aqui um golo cantado, digno de figurar nos momentos do segmento Watts de um famoso canal desportivo que começa com Euro e termina em Sports. Bruno Fernandes, que hoje disputou o jogo número 59 (!) da época, deu a redondinha de bandeja mas o avançado atirou rente ao poste.
Tudo isto não significou que Emery tenha mudado de estratégia à boleia dos acontecimentos. O técnico respondeu ao golo sofrido tirando um avançado (Bacca) para colocar um trinco (Coquelin) numa altura em que o jogo estava cada vez mais partido. E, apesar das adversidades nesta fase, o Villarreal mantinha-se fiel à estratégia inicial, ainda que a partida parecesse ter sentido único após o golo de Cavani — se bem que aqui e ali os espanhóis também iam conseguindo pôr em sentido a defesa do United, especialmente na orla dos 70-80 minutos, numa série de cantos.
Todavia, sucedeu que os 90’ úteis de jogo — os últimos 10, diga-se, foram muito mal jogados e sem história — não seriam suficientes para saber quem iria levar o troféu de 15 quilogramas da UEFA, o que ditou que as equipas iriam disputar mais 30 minutos de jogo adicional no prolongamento.
Sem efetuar substituições, o United entrou a mostrar fadiga e o Villarreal (com as cinco permitidas já feitas) parecia ter começado o tempo extra por cima. Aos 98’ Moreno ameaçou tornar-se o herói e a capa dos jornais desportivos, mas desperdiçou a oportunidade de golo. Um minuto depois foi a vez do experiente Alcácer falhar as rédeas da baliza e disparar para as nuvens. Dos 90’ aos 120’, de resto, houve muita luta na disputa dos lances, substituições e um vasto bailado de pernas cansadas e corpos estoirados. Além de, claro, muitos livres de Parejo a tentar repetir o feito da primeira parte. No entanto, aquilo que se vai discutir destes trinta minutos adicionais vai ser o lance em que Fred (que começou no banco mas entrou no prolongamento) tocou na bola com a mão. O VAR decidiu que não houve penálti, embora não seja difícil assumir que muitos adeptos vão discordar da equipa de arbitragem francesa.
Volvidos os minutos adicionais, chegou a lotaria (será?) dos penáltis. Solskjaer apostou tudo nas substituições para o efeito. A equipa aguentou, claramente já em esforço, à espera deste momento. Mas não se deu mal, uma vez que Mata e Alex Telles, que entraram já no final do prolongamento, não vacilaram. Bruno Fernandes também não tremeu. Rashford idem. Cavani, sereno, bateu a negra com afinco e marcou. Alberto Moreno (o defesa, ex-Liverpool, que entrou só para bater o penálti), Paco Alcácer, Parejo, Moi Gomez, Raba e Moreno (o avançado) fizeram o mesmo para os que vestiam de amarelo. Ou seja, contas feitas, chegou-se ao 5-5. Até aqui nada de anormal. Mas o que se seguiu a seguir?
Aconteceu uma sessão muito pouco amiga para os adeptos do United ou do Villarreal que sofram do coração ou de tensão alta. É que foram marcados 21 (!) penáltis para se descobrir o vencedor da Liga Europa. A lista é de tal maneira extensa que foi preciso recorrer aos guarda-redes para bater. Só que se Rulli, guardião dos espanhóis, teve arte e engenho na ponta da bota para marcar (rematou sem grande colocação embora com força), o mesmo não se pode dizer de De Gea, guardião dos ingleses. O jogo estava empatado 10-10 e número 1 do Manchester rematou (em jeito, colocado) mas permitiu a defesa do seu homólogo. E, assim, estava encontrado o novo vencedor da Liga Europa.
O veredicto: o Villarreal tinha uma estratégia e nunca se desviou do caminho. Na segunda parte, ainda que tenha estado em campo a revelar um certo ar grogue e a nas lonas enquanto via o United a ganhar praticamente todos os duelos individuais como se estivesse em inferioridade numérica, a realidade é que o Submarino Amarelo manteve-se firme, seguro e viu o seu treinador a bater mais um recorde. Tudo somado, foi o primeiro título para o Villarreal e o quarto para Emery. Se foi sofrido? Foi. Se chegou à boleia da agonia de um momento infeliz de De Gea e depois de mais de vinte penáltis? Também. Mas quando se ganha um título europeu será que isso realmente importa?
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