Esta devia ser uma entrevista sobre um livro escrito por um homem que teve o privilégio de estar onde nem todos estiveram, possibilidades de outros tempos, em que os clubes e os jornalistas viviam uma relação mais próxima, e sobre a posição de diretor do jornal A Bola, cargo que ocupa desde 1992.

Mas falar com Vítor Serpa nunca poderia ser falar de uma só coisa. Sim, claro que percorremos algumas das histórias do livro que publicou em maio, “Há Vida nas Estrelas”, pela Cultura Editora, mas a conversa foi sobretudo sobre comunicação numa altura de extremos, em que os clubes e as instituições ignoram os media, optando por canais próprios, e em que os programas de comentário desportivo são eles próprios tópico de discussão.

Nesta entrevista cabe o passado de Vítor Serpa, no período em que era um jovem adepto do Belenenses, num tempo em que os jogos de matraquilhos não tinham bonecos do FC Porto e onde saltava à vista um boneco pintado de preto na linha de ataque - Matateu -, cabem as memórias dos primeiros jogos e dos que mais o marcaram, da final do Euro em Paris e de um SL Benfica 0 - 5 FC Porto para a Supertaça Cândido de Oliveira em 1996. Cabe ainda o Belenenses de agora, o FC Porto de agora e A Bola de agora.

Serpa fala não como quem sabe, mas como quem viveu a história do futebol português e internacional dos últimos anos. Fala, mas também tem ideias. Não gosta só de dizer que o país precisa de uma mudança de mentalidades.

Esta também é uma conversa sobre poesia e futebol que devia começar com um poema de Manuel Alegre sobre Eusébio. Aliás, que vai mesmo começar com um poema de Manuel Alegre sobre Eusébio.

Havia nele a máxima tensão / Como um clássico ordenava a própria força, / sabia a contenção e era explosão, / havia nele o touro e havia a corça.

Não era só instinto, era ciência,
magia e teoria já só prática.
Havia nele a arte e a inteligência
do puro jogo e sua matemática.

Buscava o golo mais que golo: só palavra.
Abstracção. Ponto no espaço. Teorema.
Despido do supérfluo rematava
e então não era golo: era poema.

Parece que a literatura e o futebol andam muitas vezes de mãos dadas...

Diria que hoje em dia a literatura está mais longe do futebol do que estava há uns tempos. Os grandes ídolos são menos humanizados. O Manuel Alegre tem uma poesia lindíssima sobre o Eusébio, mas dificilmente escreveria algo assim sobre Cristiano Ronaldo.

O futebol arranjou complexos com a literatura?

Se pensarmos na comunidade de países falantes de língua portuguesa, no Brasil, a literatura nunca teve complexos com o futebol, em Portugal houve tempos em que teve, hoje em dia já não terá. E houve um tempo que em África houve muitos complexos por causa do colonialismo, em que os heróis do futebol africano eram portugueses. E como eram heróis do futebol português havia aqui uma distância. Procuro relacionar tudo isto e pensar que o futebol contribuiu para que algumas feridas sarassem mais rapidamente no que diz respeito ao colonialismo.

"Acho que Cristiano Ronaldo terá de ser considerado o melhor jogador português de todos os tempos. Isto custa, evidentemente, porque a relação com Eusébio era mais próxima, mais afetiva. "

Quando falou no Brasil, quase imediatamente vieram-me à cabeça os nomes de Pelé e Garrincha.

Não deixa de ser curioso que, na literatura brasileira, homens como o Garrincha tenham inspirado mais do que o Pelé. Aqui, o Vítor Baptista inspirou muitos homens da literatura. Eram situações humanas mais ligadas ao futebol ou então do ponto de vista das questões mais estéticas, como era o caso do Eusébio que, esteticamente, era um jogador muito especial. Não há grande literatura sobre o Messi, não há grande literatura sobre o Cristiano Ronaldo, não há grande literatura sobre outros grandes jogadores e temo que daqui para a frente haja cada vez menos literatura sobre os grandes ídolos do futebol. Estão mais distantes, ganham muito dinheiro, não têm histórias de vida ou, quando têm, acabam na infância... Acredito que Maradona terá sido dos últimos assim.

Já invocámos aqui os nomes de Cristiano Ronaldo e de Eusébio e, sabendo que acha parva a discussão sobre qual deles é o melhor, aproveito para arrumar já uma questão: qual é que foi o melhor jogador que alguma vez viu jogar?

Acho que Cristiano Ronaldo terá de ser considerado o melhor jogador português de todos os tempos. Isto custa, evidentemente, porque a relação com Eusébio era mais próxima, mais afetiva. Com Cristiano Ronaldo é mais distante, tirando alguns episódios em que vivi intensamente o lado mais humano dele. A ideia que eu tenho é que é um atleta absolutamente fabuloso. Colocar as coisas fora do seu tempo é difícil, colocar Eusébio nos dias de hoje... seria um dos maiores de sempre também. Se ele conseguiria ultrapassar Ronaldo? É inimaginável.

Este ano publicou o livro “Há Vida nas Estrelas” em que conta “as histórias menos conhecidas do futebol e dos seus protagonistas”. Roubando-lhe a palavra, seria hoje inimaginável que um jornalista tivesse os acessos que os jornalistas da sua geração tiveram no passado? O que é que mudou?

Há um distanciamento muito grande devido à falta de confiança.

É uma mudança de paradigma ao nível da comunicação?

Tanto a Federação como os clubes sentem-se de alguma forma satisfeitos com aquilo que é a informação transmitida publicamente através dos seus canais. A Federação tem agora um canal de televisão, o 11, o Benfica a Benfica TV, o Sporting a Sporting TV, o FC Porto o Porto Canal. Sentem que não precisam propriamente da comunicação social para poderem transmitir as informações e aquilo que é a comunicação do clube, mas não é verdade.

Acham já não precisam dos jornais como precisavam antes?

Acho que poderei dizer, talvez com algum espanto, que em matéria de comunicação, por mais jornalistas que estejam envolvidos na área de comunicação, as instituições desportivas, sejam elas a Liga de Clubes, a Federação Portuguesa de Futebol ou os próprios clubes, ainda estão na fase amadora da comunicação. Não entendem o que verdadeiramente está em causa.

Portanto, estes órgãos próprios tornaram-se um problema?

Percebo que estas entidades tenham criado uma máquina para comunicar a parte da instituição, mas isto não serve para levar os jogadores nem os treinadores a comunicarem porque, muitas vezes, a própria comunicação do treinador e dos jogadores não é coincidente com aquilo que a máquina institucional deseja. Portanto, há aqui por vezes um conflito de interesses, um conflito, inclusivamente, de direitos, e que não se consegue resolver dessa maneira.

Hoje, por onde é que podia passar uma solução?

Eu, por exemplo, defendia a criação de um laboratório de comunicação, em que cada uma destas entidades trabalhasse para ter áreas de comunicação diferenciadas, e que se possibilitasse o contacto direto com treinadores e com jogadores em determinada fase, em determinados locais. Poderem beber café juntos, poderem, inclusivamente, uma vez por semana, fazer entrevistas abertas de forma a que as entrevistas não sejam todas iguais, para que não haja aquela ideia da conferência de imprensa em que toda a gente pergunta a mesma coisa e toda a gente responde da mesma maneira.

Lá fora, por exemplo, a diferença é enorme. Basta olhar para os clubes da Premier League e para a imprensa britânica e vemos muitos artigos intimistas, pessoais, com jogadores e treinadores. Cá é raro.

Imagina que um jornalista quer fazer uma entrevista com um jogador da moda, que marcou muitos golos e que, enfim, foi fundamental num título, seja o que for. No princípio o clube começa por ter dificuldades em aceitar. Diz que se aceitar a entrevista para este meio que vai ter problemas com os outros e que o melhor é fazer uma conferência de imprensa com todos. Isto não resulta, isto não funciona. Se o clube pensar que vai obrigar um jogador a dar uma entrevista a três jornais desportivos, eu digo: faz parte do trabalho do jogador de futebol. O seu trabalho também é ter condições para se relacionar com os órgãos de comunicação social, porque são eles que o promovem. Se isso acontecer, o que sucederá é que o jornal vai ter a preocupação de colocar o seu melhor entrevistador nessa entrevista e o resultado final é muito superior, com benefícios para todas as partes, seja para o clube, seja para o jogador, seja para o próprio jornal.

E há essa necessidade de voltar a credibilizar o jornalismo desportivo?

Um dos fatores mais preocupantes dos tempos de hoje é que realmente ninguém acredita em ninguém. As pessoas acham que as declarações podem ser falseadas ou deturpadas propositadamente. E nós estamos a trabalhar numa área em que se não tivermos confiança nas nossas fontes, e as fontes não tiverem confiança em nós, é muito difícil chegar a algum lado. Aqui há um tempo, e eu conto isso no livro, quando estive com José Mourinho em Londres, ele disse que tinha notado, ao longo deste tempo, que era importante abrir a possibilidade de os seus jogadores poderem confrontar-se com os jornalistas e apanhar um pouco de tudo, bons jornalistas, maus jornalistas, sensacionalistas, não sensacionalistas. O jogador tinha de perceber que esta era uma maneira de [aprender a] enfrentar a própria sociedade e que estaria até mais preparado para enfrentar as dificuldades de um jogo em que o público fosse adverso — porque era uma maneira de ele se desinibir, uma maneira também de ele crescer, de ganhar maturidade. Este conceito parece-me correto, mas cada vez mais fica numa hipótese.

Demasiado distante para se tornar realidade?

Acredito que um dia ela se glorifique, que mais tarde exista a consciência tanto da parte dos clubes, como dos jogadores e dos treinadores, e também da parte dos jornais, de que tem de haver uma aproximação, embora com regras claras. Admito que possa haver, inclusivamente, algum tipo de sanção para jornalistas que não cumpram algum tipo de regras de comportamento e de atitude. Por exemplo, na NBA: a NBA é o que é porque tem esse tipo de regras, este tipo de compromissos existem na relação entre os grandes jogadores da NBA, dos grandes treinadores e os jornalistas.

Acaba por ser engraçado, no caso português, que os clubes ditos pequenos tenham melhor comunicação do que os grandes. O Rio Ave, o Sporting de Braga...

Isso é muito curioso. Aqui há uns tempos estava a falar com o José Couceiro, que na altura treinava o Vitória de Setúbal, e que me dizia: "Vítor, vocês não se apercebem às vezes como é doloroso ir fazer uma conferência de imprensa e ter um jornalista na sala. Eu convidava-o para bebermos um café e conversávamos um bocado. Mas um jornalista na sala? Isto é deprimente e é frustrante para o clube e para os jogadores". No caso do Rio Ave têm sido criadas aberturas com grande criatividade, permitindo até entrevistas via Skype... de todas as maneiras. O grande problema a que chegámos é gravíssimo: os grandes clubes procuram esconder a comunicação e os jornais procuram aceder ao máximo de informação possível desses clubes, e é precisamente o contrário nos clubes médios e nos clubes pequenos, onde eles querem abrir a comunicação para terem mais notoriedade, até por causa dos seus parceiros de publicidade, e os jornais não querem porque o mercado é diminuto, porque mais de 90% do mercado do futebol português está ligados a três clubes.

E isso não é comparável a nenhum outro dos principais campeonatos europeus.

É uma realidade diferente em Espanha, França, Inglaterra. A dispersão que existe nos outros países pela forma como cada cidade se liga ao seu clube, como cada região se liga ao seu clube, cria condições para que haja uma transformação muito efetiva nesta relação da comunicação com os clubes. Em Portugal, clubes como o Benfica, o Sporting ou o Porto não sentem realmente essa necessidade de se aproximar. É de reparar que, curiosamente, os principais presidentes de clubes procuram dar entrevistas, de preferência, às televisões. Não têm a preocupação de dar entrevistas, hoje em dia, a jornais desportivos, com exceção do Jorge Nuno Pinto da Costa, presidente do FC Porto, que tem noção do que o O Jogo representa estrategicamente no mercado do clube.

Mas pode-se assumir que O Jogo é um caso diferente, com uma grande influência regional.

Completamente. Mas lá está, estamos a falar de alguém que é um presidente com mais de 80 anos, que tem uma grande experiência e que sabe o que é que está a fazer. Se lhe perguntarem se ele prefere dar uma entrevista a um jornal, como O Jogo, ou a um canal de televisão, ele prefere o canal porque chega a muito mais gente, mas percebe que do ponto de vista estratégico é importante não deixar cair a ideia de que há uma boa relação, uma relação intensa, de proximidade, entre aquele jornal e aquele clube, tal como funciona com o Porto Canal.

Faz-se uso da alavanca da região?

É mais ligado à região, foge um bocadinho do conceito de televisão de clube, sendo que a influência e o dono é o próprio clube. No caso d’O Jogo funciona também um pouco assim, os níveis de influência do FC Porto no jornal são evidentes, basta abrir e ler as primeiras páginas. Percebe-se que há ali uma relação, que o clube o entende como uma relação em que tem de contribuir com alguma coisa. Não basta receber. Este tipo de procedimentos em Portugal são feitos de forma muitas vezes intuitiva ou pela mera consciência e experiência de um presidente, mas não com um elevado grau de profissionalismo.

Então onde é que encalhamos?

A comunicação dos clubes e a comunicação da Federação... A comunicação da Federação tem alguns dos melhores jornalistas da imprensa desportiva, está lá tudo, está lá a nata. Não se pode dizer que o problema possa ser do nível dos profissionais que lá estão. O problema é da estrutura de comunicação, o que é que pensa a Federação sobre aquilo que é a sua comunicação, muito embora seja verdade que, entre todos estes que eu mencionei, esta seja a melhor de todas. No último Campeonato da Europa, que Portugal ganhou, atrevo-me a dizer que a comunicação da Federação ajudou a ganhar aquele título. A maneira como a comunicação social foi recebida no centro de estágios da seleção nacional, em Marcoussis, a forma como o Fernando Santos se disponibilizou para conversas abertas com os jornalistas nessa tentativa de proximidade e conhecimento... Quando as pessoas se conhecem, quando se aproximam, quando as pessoas começam a dada altura a contar episódios da sua vida privada, não há promiscuidade, há maior confiança. E quando há maior confiança, os próprios jornalistas percebem que há determinadas linhas que não podem e que não devem ultrapassar porque estão dentro da esfera da deontologia profissional e da ética da sua profissão. E aqueles que ultrapassam, o próprio grupo de jornalistas que está a acompanhar uma competição como aquelas, naturalmente, exclui. Exclui porque este não faz parte deste grupo, procedeu mal, pôs em causa a personalidade de grupo. E esta relação é uma relação que deve ser mais intensificada e que deve ser mais profissionalizada.

Quando estava a falar do Pinto da Costa veio-me à cabeça um novo interveniente que é o Bruno Lage, que trouxe uma nova postura de comunicação, nomeadamente nas conferências de imprensa.

Eu gosto muito das conferências de imprensa do Bruno Lage. Embora seja suficientemente contido nas suas comunicações, de maneira a que, realmente, não saia daquilo que é o essencial para ele, apesar disso, é inovador, cria alguma coisa que gera interesse ou curiosidade nas conferências de imprensa. Também gosto, ao nível dos capitães de equipa, do Bruno Fernandes, acho que tem trazido uma frescura…

Aqui há uns anos fui convidado pelo Real Madrid para ir a Madrid fazer uma mesa redonda com diretores da imprensa espanhola, do L'Equipe e do France Football, para discutirmos, precisamente, esta questão, sobre como é que um clube se deve relacionar hoje com a comunicação social. Um dos problemas que me foi colocado foi que, hoje, as grandes estrelas do futebol mundial entendem que quando dão uma entrevista a um jornal estão a dar mais do que a receber. Ou seja, que o jornal não lhes acrescentará muito do ponto de vista da fama e daquilo que é a sua notoriedade, enquanto que o jornal ganha nas vendas. Já havia quem defendesse que para essas entrevistas acontecerem tinham que ser pagas, isto depois não teve desenvolvimentos e os próprios clubes preferiram separar um bocadinho as águas e dividir as coisas, mas havia já esse nível de preocupação muito elevado.

Não saindo já dessa mesa, há aí um jornal desportivo de exceção face aos desportivos absolutamente dominados pelo futebol.

O L'Equipe beneficia de ser um jornal exclusivista do ponto de vista do desporto nacional francês e portanto pode fazer o jornal que quer. Para mim deve ser uma paixão, um gosto, uma coisa fantástica... [poder] fazer o jornal que se entende que se deve fazer. A primeira página só com Roland Garros ou o Tour de France ou com um campeonato de andebol. Deve ser fantástico um jornalista não ter de pensar nas vendas e nas audiências. Pouco ou muito (risos).

"As pessoas têm uma certa dificuldade em perceber que o futebol espelha a realidade da sociedade portuguesa com todos os seus defeitos e todas as suas virtudes"

 

Em Portugal isso não é possível?

É um problema dos países pequenos, dos países periféricos e pequenos como Portugal. Temos de admitir que temos de encontrar novas formas para trabalhar, sob risco de subitamente vermos extinguirem-se pura e simplesmente os jornais desportivos em Portugal, e de os próprios clubes se sentirem única e exclusivamente representados por órgãos institucionais que, no fundo, antes de serem órgãos de comunicação, são órgãos de propaganda. É perigoso que as pessoas entendam que uma coisa é igual à outra, não é. Uma coisa é um jornalista livre que pode perguntar aquilo que entende e pode contrariar, eventualmente, com um argumento, um jogador, um treinador, um presidente de clube. Outra coisa é um tipo de jornalismo condescendente, "yes, man", e que, portanto, não tem o mesmo nível de liberdade.

Mas não é, ainda assim, incrível que um país pequeno como Portugal tenha ainda três jornais desportivos com vendas bastantes altas?

Os três jornais desportivos, atualmente, juntos não vendem o que A Bola vendia há dez anos. Isto significa que existe claramente um decréscimo expressivo nas vendas.

O jornalismo desportivo mudou muitos nos últimos anos e o Vítor começa o livro afirmando que "quem procurar aqui a raiva e o sangue do futebol, desiluda-se desde já". Fala-se pouco de futebol hoje em dia?

Acho que sim, a minha ideia foi dar a conhecer as pessoas que estão no futebol, humanizá-las. A sociedade portuguesa não escolheu os seus piores para colocar no futebol. Aqui há de tudo, como há de tudo na medicina, na arquitetura, advocacia ou na política. As pessoas têm uma certa dificuldade em perceber que o futebol espelha a realidade da sociedade portuguesa com todos os seus defeitos e todas as suas virtudes. Aquilo que procurei fazer foi, ao fim de 50 anos de trabalho de comunicação e jornalismo nesta área, algo que também fosse um bocadinho em favor do futebol, que fosse em homenagem ao futebol. É uma área que apaixona, cria paixões, euforias e tristezas profundas, é uma área que é muito sensível, que mexe muito com as emoções.

Não fugindo à “raiva e ao sangue”, qual é o ponto de viragem neste campo. Quando é que a discussão do futebol parte para se tornar outra coisa?

A responsabilidade é basicamente das televisões, que descobriram programas de entretenimento para os seus canais que não são os canais abertos. Neste momento acham que ganham audiências se cada elemento do Benfica, do Sporting e do FC Porto interpretar o papel que eles querem que interpretem. Tudo aquilo é irreal. É que nem sequer é verdade que aquelas pessoas sejam aquilo que nos mostram. Aquelas pessoas que lá estão são atores, estão a desempenhar um papel para vender. É um papel que prestam, uns um triste papel, outros um não tão triste, para criar audiências. As pessoas são levadas ao engano e acreditam que hoje as relações entre os clubes estão muito extremadas porque também veem aquele tipo de discussão entre pessoas que tratam do futebol como se fosse uma ciência oculta.

Complicam o que é simples?

De repente as pessoas estão a olhar ou a ouvir alguns comentadores e dizem "este tipo deve saber disto, eu já vejo futebol há 60 anos e nunca imaginei que isto fosse tão complexo". E é que não é. O futebol não é assim tão complexo. Este futebol que nos é apresentado por algum tipo de analista ou de comentador mais cientificado, e que se tornou diferente — porque o futebol não se tornou francamente diferente —, é mais rápido, é mais intenso. Mas estas pessoas o que trouxeram ao futebol foi a preocupação de apresentar de uma forma quase doutoral um futebol que realmente não existe, que é o futebol de televisão.

"Estamos, em matéria de relação com os árbitros e de relação com o futebol, cada vez mais a distanciar-nos da cultura europeia"

 

Essa nova forma de falar do futebol preocupa-o?

Preocupa quem realmente gosta de futebol. Se um dia se perguntar isto a um jogador é capaz de se obter respostas muito interessantes. As decisões que são tomadas [e analisadas nestes programas], principalmente aquelas [tomadas na sequência] do videoárbitro, são decisões que levam a que não haja uma interpretação humana dos lances. Há uma interpretação técnica dos lances. Na televisão consegue perceber-se se a bola passou ou não passou um risco, não se consegue perceber se determinado tipo de contacto entre um defesa e um avançado na grande área do defesa é motivo de grande penalidade ou não. Se o árbitro não tiver o feeling e a sensibilidade de um verdadeiro árbitro e não conseguir interpretar e, única e exclusivamente, se basear nas imagens de televisão, pode tomar decisões absolutamente erradas.

É contra o videoárbitro?

Não, sou a favor do videoárbitro, mas há que realçar esta realidade. O árbitro, mesmo aquele que vê o videoárbitro, tem de ser um bom árbitro, tem de ter a capacidade de interpretar um lance e perceber que o futebol é um jogo de contacto. Por exemplo, a interpretação de um lance de mão na bola ou bola na mão: um mau árbitro marca sempre grande penalidade cada vez que a bola bate no braço porque está protegido por aquilo que vê na imagem televisiva. Às vezes não é, às vezes não há qualquer tipo de intenção, às vezes o jogador não tem maneira de fugir com o braço. Depois vêm aquelas questões da volumetria, se está fora do corpo, essas coisas mais ou menos esquisitas que nos levam sempre a discussões que não têm princípio nem fim. A única coisa que interessa aqui, para além da ajuda que o videoárbitro pode dar, e que é muita, é que o lance seja interpretado por um árbitro, ou seja, por alguém que percebe deste tipo de relação que existe no contacto físico de um jogo como é o futebol, porque se não perceber nós corremos o risco de tornar o futebol muito mais pobre do aquilo que é.

Mas hoje em dia não é fácil ser árbitro.

Não, não é. Há pouco tempo dizia num programa de rádio, estavam a falar-me sobre essa questão, e eu disse: "gostava de perguntar a todos os ouvintes, sobretudo aqueles que estão em idade adulta, qual destes é que gostava de ter um filho árbitro". E eu acho que esta pergunta e a eventual resposta levanta problemas muito sérios. E quanto mais estreito for o funil, mais dificuldades vamos ter em ter bons árbitros. E é preciso que as pessoas pensem maduramente nisto. A realidade portuguesa em relação ao árbitro não tem qualquer tipo de correspondência nos outros países, poderá ter na Turquia ou na Grécia, mas não tem em qualquer um dos países mais desenvolvidos da União Europeia. Nós estamos, em matéria de relação com os árbitros e de relação com o futebol, cada vez mais a distanciar-nos da cultura europeia. O futebol precisava muito daquilo a que se poderia chamar um conselho de sábios, de pessoas ligadas ao futebol, dirigentes, treinadores, ex-jogadores, jornalistas, para se poder discutir algumas destas matérias do futebol: a comunicação, o videoárbitro, o relacionamento de instituições, para eventualmente se criar um congresso e trazer novas ideias. Porque se estamos à espera, por exemplo, da UEFA ou da FIFA bem que podemos esperar sentados. Primeiro porque a realidade na maior parte dos países não é a realidade portuguesa, segundo porque esses não estão nunca interessados em transformar e mudar verdadeiramente, só mudam se forem obrigados a mudar.

Mas como é que chegámos aqui, a uma cultura em que ser árbitro é quase uma profissão de risco, em que vemos jogos de miúdos em que só se ouvem insultos das bancadas, em que adeptos não podem ir ver jogos do seu clube fora porque podem ser insultados e até agredidos...

É cultural, mas sendo cultural tem de se resolver... É fácil dizer que é preciso uma mudança de mentalidades, isto é a forma que o povo português tem de não resolver coisa nenhuma. Qual é a maneira de mudar a mentalidade do futebol? É fazer no futebol aquilo que a UEFA e a FIFA fazem aos clubes nas competições europeias. Enquanto em Portugal se pagam 200 euros de multa, a UEFA multa em 40 ou 50 mil euros. Aí já dói.

Voltando ao livro e falando de pessoas que conseguiram realmente mudar mentalidades. Tomei a liberdade de escolher algumas histórias e saltaram-me à vista as páginas sobre o senhor José Maria Pedroto onde você escreve: "no dia em que uma entrevista do Pedroto saía n'A Bola a polémica estava instalada no dia a seguir". É um protagonista que se estivesse vivo nestes tempos seria absolutamente arrasador na comunicação?

O Pedroto, do meu ponto de vista, tinha mais capacidade estratégica do que, por exemplo, o atual presidente do FC Porto. Pinto da Costa teve como seu mentor o José Maria Pedroto, o grande líder, o homem que concebeu a ideia do Futebol Clube do Porto forte contra o poder central de Lisboa, que entendia que todas forças da cidade e do norte deviam ser chamadas a apoiar o FCP contra o centralismo político, social, económico e desportivo que havia em Portugal. Ele tinha um sentido estratégico muito grande: ele elegia A Bola para dar as entrevistas nacionais e obviamente que quando o Pedroto dava uma entrevista à Bola, e fazia primeira página, esta era altamente polémica e era discutida no país inteiro. Ele tinha a noção de que quando tinha de dar uma entrevista mais regional, para acender a paixão pelo Porto, o regionalismo, dava-a ao Jornal de Notícias — raramente ao Norte Desportivo, que existia então, mas quase sempre ao JN.

"A questão é esta, A Bola é normalmente mais conotada com o Benfica por diversas razões, uma delas é que A Bola nunca procurou desmentir essa ideia. E nunca procurou fazê-lo porque o mercado do Benfica é um mercado que todos os jornais desportivos ambicionam ter"

 

Como é que se lembra dele?

Eu tive uma relação com ele muito intensa, passei noites a ouvi-lo falar de futebol, e muitas vezes a falar de outras coisas que nada tinham a ver com futebol. Ele era um grande jogador de cartas, um fumador compulsivo, mas um homem muito curioso e sobretudo um homem que tinha a noção de que o conhecimento não estava todo lá dentro e de que havia mais conhecimento fora dele próprio. Por isso é que ele chamou gente muito jovem, chamou o Artur Jorge, o Zé Neto, o Manuel Sérgio, que lhe falou da importância da filosofia e do homem no jogo, da relação humana. O Pedroto era um homem muito interessante e, sobretudo, morreu muito cedo. Lembro-me de achar que o Pedroto era velho e eu aprendi-a com ele, "sim, senhor Pedroto", tinha uma certa veneração quando o via. Achava que era um homem idoso na altura, mas morreu com menos de 60 anos, morreu de uma forma precoce.

Não chega a ver o Porto campeão europeu.

Não, o Pedroto chega à primeira final da Taça das Taças do FC Porto, em Basileia, mas já não vai com o Porto. É um jogo com a Juventus do Platini, uma equipa fabulosa com Boniek... Fui fazer esse jogo e quem comandou a equipa foi o António Morais, que era o adjunto, e o Pedroto morre pouco tempo depois.

É uma pena.

É, até porque tinha sido um dos discípulos dele que o tinha conseguido, o Artur Jorge.

Falando de líderes. Quando fala de João Rocha no livro, usa a seguinte frase: "os danos que causa uma liderança forte e marcante". É isso que o Sporting ainda está a viver hoje em dia ou são tempos completamente diferentes?

Um presidente hoje não se define por aquilo que manda. Hoje a autoridade é, claramente, de quem sabe. João Rocha foi um presidente do qual o Sporting CP ainda hoje está à procura de sucessor. Poderá ser Varandas? Eventualmente, esperemos. É preciso esperar para ver. Mas a sucessão brutal de presidentes que vieram a seguir a João Rocha demonstram que o Sporting, ainda hoje, está à procura de um sucessor. E isto é natural porque o João Rocha era um presidente omnipresente que teve uma visão muito clara para o clube. Ele tinha a noção de que não conseguia competir com o Benfica em termos de grandeza. Para o Sporting ser tão grande ou mais influente não podia pensar só no futebol, nasce a sensibilidade que o Sporting tem para ter grandes equipas de andebol, atletismo, com o Moniz Pereira, de vários níveis, até ao nível da ginástica, onde o Sporting chegou a ter cinco, seis mil praticantes, uma coisa monstruosa que marcava a diferença face aos outros.

No livro fala da deterioração da sua relação com Jorge Jesus no momento em que este vai para o Sporting, devido à relação de Bruno de Carvalho com o jornal A Bola. Isso é o resultado daquela ideia de senso comum: A Bola é mais próxima do Benfica, o Record do Sporting e O Jogo do Porto?

A questão é esta, A Bola é normalmente mais conotada com o Benfica por diversas razões, uma delas é que A Bola nunca procurou desmentir essa ideia e nunca procurou fazê-lo porque o mercado do Benfica é um mercado que todos os jornais desportivos ambicionam ter. Se A Bola aparece como um jornal mais próximo do Benfica e tem, portanto, um número de leitores benfiquistas muito superior aos outros [jornais], isso evidentemente traduz-se em vendas maiores. Agora não me parece que seja inteiramente real. Tivemos várias pessoas com grande influência aqui e que não eram do Benfica. O Vítor Santos, um chefe emblemático, era um homem claramente sportinguista. O próprio Joaquim Rita, que foi chefe de redação, era sportinguista. Não tem a ver com o clube, tem a ver com um facto que é determinante: o maior mercado é o do Benfica, é o que consome mais. Calcula que, evidentemente, no dia em que o Benfica foi campeão houve uma subida de vendas absolutamente brutal.

Esgotou, imagino.

Há sítios onde podemos dizer que há aumentos de 500 e 600 por cento de vendas nestas circunstâncias. Isto evidentemente que conta.

Assumo então que terá estremecido, como conta no livro, quando Vale e Azevedo o chamou ao seu escritório para lhe propor algo absolutamente surreal que, em poucas palavras, passava pelo Benfica controlar todas as notícias do clube no jornal.

Isso foi uma luta muito intensa, muito complicada. As relações eram tão difíceis... A Bola tomou uma posição muito difícil contra Vale e Azevedo, não tanto pelas suas diabruras no Benfica, como gestor e presidente, mas precisamente pelo nível de relação que tinha com A Bola. Eu assumi os riscos todos, muito graves.

A Bola teve um comportamento mais próximo do Manuel Vilarinho e portanto não foi equidistante, e as pessoas sabiam. Isto foi de tal forma que no dia da eleição os assessores vieram ter com os jornalistas d’A Bola e disseram: "vocês gozem tudo hoje que a partir de amanhã não metem mais os pés no estádio da Luz". Enganaram-se porque o Vale e Azevedo perdeu as eleições e todos os jornalistas de todo o lado puderam meter os pés no estádio da Luz, e nós pudemos contribuir com a nossa parte para a recuperação de um clube como Benfica e também para o restabelecimento de uma ordem natural que havia entre as partes, os clubes e os jornais.

"Não quero fazer parte desta polémica, sendo que é conhecido que eu sou sócio do Belenenses desde que nasci, foi o meu avô que me fez sócio, mas sou sócio do Clube de Futebol Os Belenenses, não sou sócio da SAD"

Ainda nessa ligação com o Benfica, Marcelo Rebelo de Sousa, o atual Presidente da República, costumava fazer-lhe uma picardia quando lhe dizia que você podia ser do Belenenses, mas lá no fundo era um bocadinho do Benfica.

Ainda recentemente recebeu-me no Palácio de Belém porque tive a honra de lhe poder oferecer um livro pessoalmente. Estivemos 45 minutos a conversar e uma das coisas que eu disse ao Presidente, num tom já de maior intimidade, foi que era curioso que sendo o Presidente da República um homem do Sporting de Clube de Braga, que não aceite que haja uma pessoa que seja do Belenenses. Ele acha que as pessoas do Belenenses também são do Belenenses, mas que no fundo são do Benfica ou do Sporting, que é aquilo que acontece na maior parte dos clubes. O que é que acontecia no meu tempo? Em 1951, no ano em que eu nasci, em dezembro, havia um trio que era o BSB, Benfica, Sporting e Belenenses. Os três maiores clubes de então eram esses, eram os três de Lisboa. Eram os três que decidiam quem era o presidente da Federação: ou era do Benfica, do Sporting ou do Belenenses, o Porto não contava naquela altura. Os jogos de matraquilhos eram do Benfica contra o Belenenses, do Sporting contra o Belenenses ou do Benfica contra o Sporting. E nos jogos do Belenenses o avançado, o homem do meio dos matraquilhos, era pintado de preto porque era o Matateu. Isto para se ver que para um miúdo com seis anos, o Belenenses era realmente um grande clube.

Ia muito ao estádio do Restelo?

Eu não falhava um jogo do Belenenses em casa. Toda a minha família tinha lugares cativos. Chorei quando o Belenenses perdeu, lembro-me ainda de ver no Restelo jogos como o Belenenses - Académica com o Mário Wilson a jogar a central. Nessa altura eu vivia o Belenenses de uma forma... Agora, evidentemente que quando uma pessoa vai para um jornal e se torna diretor... Recordo-me, e isto é uma história que eu não conto no livro, que num dia em que o Vítor Santos me marcou um jogo do Belenenses lhe pedi para mudar. Tinha medo de prejudicar o Belenenses, de na tentativa de ser suficientemente isento acabar por prejudicar. Então disse, "Ó chefe, não me marque o Belenenses. Marque-me qualquer jogo menos o Belenenses".

Nunca mais voltou ao Restelo?

Voltei, mais tarde. Ultimamente não tenho ido porque não quero fazer parte desta polémica, sendo que é conhecido que sou sócio do Belenenses desde que nasci, foi o meu avô que me fez sócio, mas sou sócio do Clube de Futebol Os Belenenses, não sou sócio da SAD.

Estávamos a falar de Marcelo Rebelo de Sousa. Quando o atual Presidente colaborou com A Bola, no Mundial de 2006, é verdade que escrevia as crónicas antes dos jogos?

Era um desafio que ele fazia a ele próprio. Dizia "Vítor, vou escrever a crónica antes disto acontecer. Palpita-me que vai ser assim, se não for a gente muda depois". Era um jogo que ele fazia com ele próprio e posso dizer que 80% das vezes acertava e tinha de mudar apenas ali uma ou outra coisa, aquilo dava-lhe um gozo suplementar, digamos assim. Ele aliás, ainda recentemente, antes de ser Presidente, dizia-me que tinha saudades de escrever as crónicas d'A Bola e isso é algo de que, obviamente, nos orgulhamos, até porque se trata de um presidente especial, um homem que consegue sempre transmitir um lado humano, não é um político distante e inatingível ao qual ninguém chega, mas é um de nós e essa ideia de ser um de nós é algo que eu procurei também transmitir no livro.

créditos: Madremedia

Publica um livro como este após 50 anos em comunicação e jornalismo desportivo, é diretor d’A Bola desde 1992. Como é que isto tudo começou? Ainda se lembra do primeiro jogo que fez?

Eia... o primeiro jogo. Terei feito, provavelmente, como primeiro jogo… Houve uma altura em que o Diário Popular me mandava para alguns estádios, terá sido ou a Tapadinha ou o estádio do Oriental, ambos no tempo em que o Atlético e o Oriental não estavam ainda na primeira divisão, estavam na segunda. O Diário Popular nessa altura publicava uma segunda edição nos domingos à tarde apenas com relatos de futebol e nós tínhamos uns telefones, no caso da Tapadinha, com uma linha que ia só para o Popular, no qual não se marcavam números, dava-se à manivela e atendiam-me da redação e eu ia dando a informação de como o jogo estava a correr. Quando faltavam um ou dois minutos para acabar o jogo o texto estava pronto. Naquela altura era muito complicado. O texto era enviado para a tipografia, a tipografia fazia em chumbo esse texto, depois ia para uma impressora e às seis, seis e meia da tarde, o Diário Popular estava na rua, em Lisboa, basicamente, em toda a Grande Lisboa. Portanto, os primeiros jogos que eu fiz foi aí, da segunda divisão.

E qual é que é o jogo que não esquece enquanto jornalista?

Para mim, aquele que mais me marcou, foi um recente, a final de Paris em que Portugal ganhou o Campeonato da Europa. É um jogo único e inesquecível, evidentemente. Aquilo que é a emoção de um jornalista...

Eu tenho dois jogos que são muito muito fortes e que me criaram a ideia de que é possível contornar as emoções. Um deles foi este [em Paris]. Portugal é campeão da Europa, mas eu não posso ir para o campo dar saltos, tenho que escrever rapidamente uma crónica que reflita aquele momento de emoção, a forma como se viveu o jogo, e, ao mesmo tempo, [relate] o que realmente aconteceu no jogo da perspetiva do jornalista. Para isso é preciso alguma frieza, alguma lucidez. E o outro foi um célebre Benfica - FC Porto para a Supertaça em que o Porto ganhou por 5-0 e em que, antes de o jogo acabar, eu tinha sido avisado de que o Nuno Ferrari, um grande amigo meu e um fotógrafo emblemático d’A Bola, tinha morrido. O que não era verdade, ele não tinha morrido, morreu um dia depois. Tinha tido um ataque de coração gravíssimo, tinha ido para o hospital, mas a informação que me tinha chegado é que tinha falecido no carro quando ia para a redação depois de fotografar o jogo, para editar as fotografias. E nesse dia tive de escrever a crónica com essa perturbação evidente, procurando também ter uma capacidade de lucidez para poder escrever para o leitor que é, evidentemente, o destinatário final. É um bocadinho como a história da ópera do palhaço: o palhaço tem de continuar a atuação apesar das tragédias que vão acontecendo.

O que é que hoje os mais novos não sabem sobre futebol?

Se se gosta muito de futebol deve-se procurar jogar futebol. Não quer dizer que se seja profissional, mas quando se está em campo e se joga futebol tem-se uma perspetiva completamente diferente do jogo, das áreas, dos momentos, do guarda-redes, do passe, da dificuldade do passe, da dificuldade do passe do lado da pressão... Há um conjunto de fatores que só quem joga se apercebe no futebol. Depois é perceber que o futebol se joga também no choque físico e que há um choque físico que é legal, que é aceitável. Depois, há pequenos truques que fazem parte do jogo como fazem parte da vida. Além disso, há que perceber as nossas limitações, perceber que quando dizemos "olha para aquele parvo, falhou-me um golo daqueles" que afinal não é assim tão fácil marcar aquele golo. Perceber que tecnicamente uma bola corrida é sempre muito mais difícil de dominar ou chutar do que uma bola parada e perceber sobretudo que o futebol no campo é completamente diferente do futebol que a gente vê na televisão. Na televisão vemos uma representação do que é o futebol no campo e só se apercebe disso quem jogou futebol a sério.

Noutros tempos toda a gente tinha uma equipa para jogar algures?

Nós jogávamos n'A Bola, joguei no Liceu… Jogávamos muito futebol e tínhamos essa noção. Havia torneios de comunicação social, havia tudo isso. Tínhamos uma perspetiva completamente diferente do que era futebol e sabíamos mais de futebol.