Reunidos numa cimeira por videoconferência na quinta-feira, os líderes dos 27 aprovaram o pacote de emergência acordado há duas semanas pelos ministros das Finanças, no montante global de 540 mil milhões de euros, mas, como já era de esperar, não tomaram decisões sobre o fundo de relançamento, encarregando o executivo comunitário liderado por Ursula von der Leyen de trabalhar com caráter de urgência neste dossiê, interligando-o com uma revisão da proposta de orçamento plurianual da União para 2021-2027, que será a base do plano de recuperação.
Vários elementos-chave, que não somente “detalhes”, estão ainda em aberto, designadamente de que modo será financiado esse fundo, a sua interligação com o orçamento da União para os próximos sete anos, o montante do fundo, que poderá chegar aos 1,5 biliões de euros, as modalidades em que o dinheiro será concedido aos Estados-membros, se na forma de empréstimos, subvenções, se ambas, assim como os critérios para a distribuição dos apoios.
A presidente da Comissão Europeia indicou que apresentará a proposta na primeira quinzena de maio, sendo vontade expressa de todas as partes que seja possível chegar a um acordo até ao verão, mas para tal será necessário seguramente muito trabalho para aproximar posições em torno de questões que se têm revelado extremamente fraturantes no seio da UE.
Um plano de relançamento face à ameaça de o PIB europeu contrair-se até 15%
A discussão sobre o plano de relançamento da economia europeia tem lugar num quadro particularmente sombrio a nível das previsões do impacto que a pandemia deverá ter na zona euro e nos restantes Estados-membros, que, no pior cenário, poderá representar uma contração de 15% do PIB, advertiu a presidente do Banco Central Europeu (BCE).
Ainda sem projeções da Comissão Europeia – que deverá divulgar em 07 de maio as previsões económicas da primavera –, o Fundo Monetário Internacional (FMI) antecipou recentemente que o Produto Interno Bruto da zona euro poderá cair 7,5% este ano, e o do conjunto da União 7,1%.
No entanto, a presidente de BCE, que participou na cimeira de quinta-feira, advertiu os líderes de que a contração da economia europeia pode ser ainda bem mais vincada, apontando para um recuo duas vezes maior num cenário extremo, segundo várias fontes diplomáticas.
Praticamente seguro é que o choque da covid-19 na economia vai ser o pior de duas décadas de história da moeda única, e bem acima da contração verificada na zona euro no auge da anterior crise da dívida soberana, quando o PIB recuou 4,5%, em 2009.
O que já ficou aprovado
Na cimeira de quinta, os 27 aprovaram o pacote de resposta de emergência acordado duas semanas antes pelos ministros das Finanças, constituído por “redes de segurança” para Estados, empresas e trabalhadores, num montante global de 540 mil milhões de euros, e acordaram que estes instrumentos devem estar operacionais em 01 de junho próximo.
As três “redes de segurança” acordadas pelo Eurogrupo após longas maratonas negociais são uma linha de crédito do Mecanismo Europeu de Estabilidade, através da qual os Estados-membros podem requerer até 2% do respetivo PIB para despesas direta ou indiretamente relacionadas com cuidados de saúde, tratamentos e prevenção da covid-19, um fundo de garantia pan-europeu do Banco Europeu de Investimento para empresas em dificuldades, e o programa ‘Sure’ para salvaguardar postos de trabalho através de esquemas de desemprego temporário.
Segundo cálculos da Comissão Europeia, e que Von der Leyen tem feito questão de mencionar frequentemente, a resposta coletiva europeia à crise da covid-19 ascendeu já a mais de três biliões de euros, entre este pacote de emergência acordado pelo Eurogrupo, as intervenções do BCE, as iniciativas da Comissão e as ajudas estatais prestadas pelos Estados-membros, possíveis também face à revisão das regras europeias e à flexibilidade concedida no quadro do Pacto de Estabilidade e Crescimento.
Uma nova proposta de orçamento da UE para 2021-2027
Os responsáveis europeus já decidiram que o orçamento da União Europeia para 2021-2027 terá um papel central no plano de recuperação, tendo a Comissão Europeia ficado com a missão de “clarificar a articulação” do fundo de relançamento europeu com o Quadro Financeiro Plurianual.
Deste modo, quando apresentar a proposta do fundo de recuperação, o executivo comunitário apresentará em simultâneo uma nova proposta de orçamento plurianual, dois anos após a primeira proposta do quadro financeiro para 2021-2027, apresentada ainda pela Comissão Europeia liderada por Jean-Claude Juncker (em maio de 2018), e sobre a qual os Estados-membros nunca chegaram a um acordo.
Em 21 de fevereiro passado, naquela que foi a última cimeira “física” de líderes da UE antes do confinamento generalizado na Europa, as negociações em torno do orçamento para 2021-2027 revelaram-se um autêntico desastre, com a proposta de compromisso apresentada pelo presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, a ser rejeitada tanto pelos países ‘frugais’, como pelos ‘amigos da coesão’.
Face à nova realidade, os líderes mandataram agora a Comissão para formular uma nova proposta de orçamento “que terá de ser ajustado para fazer face à atual crise e às suas consequências”, indicou Charles Michel, tendo já Von der Leyen adiantado que será então forçosamente necessário “aumentar o poder de fogo” do Quadro Financeiro Plurianual para “gerar o investimento necessário” em toda a União.
Von der Leyen revelou que uma possibilidade passa por aumentar o teto de recursos próprios do orçamento (constituído em cerca de três quartos pelas contribuições nacionais dos Estados-membros), dos atuais 1,2% do Rendimento Nacional Bruto, para cerca de 2%, “durante dois ou três anos”.
A grande incógnita reside em saber se os países ‘frugais’, que já se opunham a aumentar as suas contribuições, aceitarão esta ideia. Um bom sinal vem de Berlim, já que a chanceler alemã Angela Merkel já anunciou estar disposta a aumentar a contribuição alemã, o que poderá ‘contagiar’ países pouco dados a generosidade, como a Holanda.
O calendário é no entanto cada vez mais apertado, e os líderes enfrentam agora um enorme desafio, o de conseguirem nalgumas semanas ‘fechar’ um orçamento plurianual em torno do qual estão em conflito há praticamente dois anos.
A dimensão do fundo mais próxima de uma ‘bazuca’
Os 27 não definiram ainda um montante concreto para o fundo de recuperação, mas tudo aponta para que este ronde os 1,5 biliões de euros, o que parece ir ao encontro das aspirações dos países do sul da Europa, entre os quais Portugal.
"Já sabemos que não será uma fisga [para enfrentar a crise]. Agora, estamos a discutir se é uma pressão de ar ou uma bazuca", afirmou no final da cimeira de quinta-feira o primeiro-ministro António Costa, adiantando que “o BCE falou de 1,6 biliões de euros, embora outros apontem um montante menor”.
Em todo o caso, o primeiro-ministro mostrou-se agora mais otimista num acordo em torno de um fundo que constituirá uma ‘bazuca’ para os países europeus atacarem a covid-19. “Isto [o valor de 1,5 biliões de euros] é três vezes as linhas de emergência já aprovadas pelo Eurogrupo, portanto, será algo com uma grande capacidade e com uma grande robustez, tendo em conta o impacto da crise económica que temos pela frente”, afirmou.
Von der Leyen tem-se escusado a adiantar montantes concretos, mas garantiu que em causa não estão "milhares de milhões", mas sim "biliões".
Financiamento do fundo
Uma das questões fulcrais em aberto é como financiar o fundo de recuperação. Embora os chamados ‘coronabonds’, que eram reclamados pelos países do sul, com Itália à cabeça, pareçam já estar fora da equação, parece líquido que boa parte do financiamento será através de emissão de dívida por parte da Comissão Europeia.
“Nenhum país pôs em causa esse objetivo”, garantiu António Costa.
Esta solução de ser a Comissão Europeia a endividar-se, com base em garantias dos países, para alavancar dinheiro que voltará para os Estados-membros através do orçamento comunitário – sem mutualização de dívida já existente –, está prevista nos tratados e já foi utilizada na anterior crise, pelo que tem todas as condições para ser adotada, até porque também foi a via sugerida pelo Parlamento Europeu, quando defendeu os chamados "recovery bonds" (obrigações de recuperação).
Apoios canalizados através de subvenções ou empréstimos
Uma das questões que promete mais discussões e mais ameaça um entendimento é a forma como será distribuído o dinheiro, havendo duas principais correntes: os ‘frugais’ querem que seja através de empréstimos, enquanto os países mais necessitados desejam que seja através de subvenções, de modo a não agravarem ainda mais as respetivas dívidas públicas. A resposta poderá estar a meio caminho.
António Costa apontou que "a larga maioria dos Estados-membros entendeu que deveria ter como base subvenções, alguns entenderam que deveria ser um equilíbrio entre subvenções e empréstimos e uma pequena maioria defendeu que só deveriam ser empréstimos", disse, aqui numa alusão à Holanda, Áustria, Finlândia e Suécia.
Relativamente a empréstimos, a existirem, “é preciso saber qual será a taxa, qual será o período de carência e qual a sua maturidade".
“Há uma variedade de opiniões entre subvenções e empréstimos, pelo que deverá existir um equilíbrio entre ambos”, defendeu na quinta-feira Ursula von der Leyen, que poderá assim apresentar uma proposta segundo a qual parte do dinheiro é disponibilizado através de subvenções, e outra parte através de empréstimos em condições muito favoráveis, parecendo descartada a possibilidade de transferências a fundo perdido, como sugeria Espanha.
Como distribuir o dinheiro entre os 27
Por fim, uma questão particularmente delicada será a dos critérios para a distribuição dos apoios entre os 27.
Na cimeira, os líderes concordaram que o fundo “deve estar direcionado para os setores e zonas geográficas da Europa mais afetados”, mas também neste caso convidaram a Comissão a propor os critérios.
Von der Leyen adiantou que a Comissão Europeia vai ainda estudar “de forma aprofundada” o impacto da crise da covid-19 nas economias comunitárias. “Sabemos que o PIB vai cair em todos os países, mas cairá de forma mais acentuada nuns Estados-membros do que noutros, e haverá prejuízos maiores nuns setores do que noutros, como no do turismo”, apontou, numa referência que expressa que terá agradado ao primeiro-ministro português, que disse ter insistido "bastante neste ponto da importância que há em procurar salvaguardar um setor vital para a economia de toda a Europa, que é o turismo".
De acordo com uma simulação do instituto de investigação económica alemão ZEW, Portugal pode receber até 25,1 mil milhões de euros de um fundo de recuperação económica no montante global de que mais se fala, 1,5 biliões de euros.
Num cenário em que a atribuição de fundos pelos 27 países da União Europeia corresponda à quebra económica prevista pelo FMI, Portugal iria buscar 25,1 mil milhões de euros, correspondentes a 11,93% do seu Produto Interno Bruto (PIB).
Num segundo cenário elaborado pelo instituto económico alemão, que tem em conta apenas o número de mortes projetadas pelo Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde (IHME, na sigla em inglês) para cada um dos 27 países, aí Portugal arrecadaria 8,2 mil milhões de euros, 3,89% do seu PIB.
Já num terceiro cenário, em que a alocação de fundos seria feita numa proporção de dois terços tendo em conta a queda do PIB, e um terço o número de mortes projetadas pelo IHME, Portugal arrecadaria 19,5 mil milhões de euros, correspondentes a 9,25% do seu PIB.
Tem agora a palavra a Comissão Europeia, naquela que é uma autêntica prova de fogo para a União Europeia e para a zona euro.
*Por André Campos, da Agência Lusa
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