Para todos os que naturalmente perderam o “episódio anterior”, farei um pequeno resumo. Na semana passada confessei que sou alérgico a algumas anástrofes, sobretudo aquelas que visivelmente facilitam a vida aos escritores de letras de canções.

Ainda recapitulando: a anástrofe é aquele recurso estilístico que permite mudar o alinhamento natural dos elementos de uma frase, mas sem que esta perca o significado. Por exemplo, “Estou a escrever uma crónica.” pode, por intermédio de uma anástrofe, ser disposto desta maneira: “Uma crónica estou a escrever”.

O que acabei de demonstrar, com este puxar do verbo no infinitivo (“escrever”) para o final da frase, é exactamente o tipo de anástrofes que me faz comichão. Se o exemplo que dei fosse verso de uma quadra, a anástrofe estava a ser usada provavelmente porque a palavra “crónica” é muito mais difícil de rimar do que a palavra “escrever”. Parece batota, assim. Verbos no infinitivo são os mais fáceis de emparelhar em rimas (acabam quase todos em “ar”, “er” ou “ir”) e por isso a anástrofe que os privilegia soa a escape dos preguiçosos.

Advogo que as figuras de estilo deviam dificultar, e não facilitar, a tarefa de escrever. Confesso, no entanto, que esta minha convicção está isenta de virtude ou sabedoria. Se digo que a língua portuguesa tem de suar para ter uma aparência honrada, daqui nunca se fará lei; é uma mera teima pessoal. Ou seja, não há nada de errado em usar as anástrofes como atalhos. Eu próprio (o niquento com o assunto) já me encontrei sem outro caminho que não o atalho. E “alergia” nem sequer é a melhor descrição para isto de que padeço; o que tenho é mais aquele desconforto raivoso que certas pessoas sentem quando ouvem outros a mastigar.

Toda esta negatividade no “episódio anterior” é também ela uma espécie de figura de estilo, quase uma antítese – a negatividade servirá, sobretudo, para contrastar e exacerbar a positividade do episódio de hoje. Da alergia passo à alegria, da esconjuração à exaltação. Mudei miraculosamente de posição. Se não foi um milagre literal foi, pelo menos, um milagre textual.

“Milagres não vou prometer” é a anástrofe que uma jovem autora e intérprete portuguesa usa a determinada altura na sua canção de título “Leva-me a dançar”. Outrora, esta subversão da ordem natural duma frase (“Não vou prometer milagres”) causar-me-ia alergia, mas surpreendentemente tornou-se no verso mais prazeroso que encontro hoje na música pop nacional. Chego a ligar o rádio apenas pela esperança de apanhar esta anástrofe. “Milagres não vou prometer” e logo quem o canta é uma milagrosa promessa da nossa música.

Chama-se Joana Espadinha, tem formação e reputação no jazz, e em 2004 estreou-se a solo com o álbum “Avesso”, disco onde a base jazzística já se mostrava permeável ao espírito pop. Entretanto a Joana tornou-se parte do grupo (que aqui mencionei e celebrei há poucos meses) Cassete Pirata e, mais recentemente ainda, participou no Festival da Canção com um tema escrito pelo Luís Nunes, vulgo Benjamim. É exactamente o Luís quem está a produzir o disco novo dela, trabalho de onde se revelou já o estupendo “Leva-me a Dançar”.

Há pouco não exagerava quando resumia os meus apetites radiofónicos a esta música. Poucas canções do momento me proporcionam tanto prazer quanto o single da Espadinha. Para ser específico, o verso mais estimulante para mim é mesmo aquele do “Milagres não vou prometer”. A frase completa é “Milagres não vou prometer/no vai-e-vem de ser mulher” – não só a Joana fica a salvo do facilitismo da anástrofe (por não rimar um verbo com outro verbo), como engendra um lema poeticamente marcante. É uma grande frase, e uma enorme contextualização de tudo o que condiciona a canção.

“Milagres não vou prometer” apanha um acorde de ré sustenido, provavelmente o meu ré sustenido preferido de sempre. É que, para além da tensão simbólica da frase, há uma tensão genial na própria construção daquele pedaço da canção: o acorde de ré sustenido traz uma linha de baixo que contempla a nota sol – isto é paleio meio técnico que, trocando por miúdos, se resume a um momento tenso. Ao acorde que por si só já nos deixa em alerta, junta-se uma nota do baixo que parece não pertencer ali. Tensão ao quadrado.  Esta inquietação não é apenas calculada e conseguida - é muito bem calculada e magistralmente conseguida. Isto que eu tentei explicar ainda soa melhor quando, sem explicações, se sente. Experimentem.

“Leva-me a Dançar” é uma canção melodicamente perfeita, por um lado simples e trauteável, por outro com a complexidade certa para que a Joana exiba os seus dotes interpretativos. Tem tensão latente em toda a estrofe (com o pináculo naquele pedaço referido nos parágrafos anteriores) para que depois o refrão seja um momento de libertação superior, um explodir sereno e melodioso daquilo que, agradavelmente, sentíamos vir a acumular. Os instrumentos não se atropelam, deixam espaço, sentem-se nos pormenores, aparecem mais polvilhados que rendilhados; acompanham ritmo, voz e mensagem na perfeição. Dá para bater o pé, abanar a cabeça, dançar ou só ouvir de olhos fechados. A mensagem é próxima o suficiente, e subjectiva o suficiente, para um dia nos revermos nela e no outro nos enchermos de dúvidas. Como não escrever uma crónica em torno duma canção destas?

Ao talento imenso da Joana Espadinha devo esta mudança de agulhas; passei da naturalidade do maldizer para uma rendição que me torna bendizente. Pelas outras coisas que já escutei do disco que se avizinha, diria que vou andar propenso a elogios nos próximos tempos. Não posso terminar, contudo, sem umas palavras sobre o Luís Nunes. O seu alter-ego Benjamim já se instalou, de forma segura e meritória, no rol de bons escritores de canções portugueses deste século. Mas o que eu prevejo para o futuro do Luís chega além disso – pode muito bem vir a tornar-se num dos mais reconhecidos produtores musicais deste país; tem o saber e o traço personalizado para se celebrizar na tarefa.  Já existem pessoas muito competentes no cargo, mas nenhuma que ande a dar autógrafos na rua por causa disso. Está tudo à tua espera, Luís.

SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS E O RESTO

3 momentos recentes para experimentarmos ouvir ao som da Joana

1. O próprio teledisco da canção, realizado pelo grande Ricardo Oliveira

2. O passe de letra, que serve para anástrofes mexicanas e catacreses brasileiras

3. O primeiro português a ganhar o Giro d’Italia