Há incerteza sobre o que o líder socialista Pedro Sánchez vai decidir. Há quem veja na surpreendente crise política aberta por Sánchez um movimento estratégico tendo como objetivo, a partir da vitimização, sair reforçado, com revalidação, através de moção de confiança, do apoio da plataforma parlamentar maioritária formada pelo conjunto de oito partidos da esquerda e do centro que incluem nacionalistas e independentistas bascos e catalães. É a plataforma que compõe a maioria absoluta (179 dos 350 deputados) que viabilizou a investidura do governo Sánchez. Se a intenção for essa de moção de confiança, o lance político contém riscos, até porque daqui a duas semanas há eleições na Catalunha, num quadro em que todas as sondagens dão os socialistas na frente e é sabido que o Junts per Catalunya (obstinadamente independentista, politicamente à direita do centro) de Carles Puigdemont é imprevisível e tem o costume de pôr qualquer apoio político a preço alto, que passa por ampla amnistia aos independentistas (é o caso dele, Puigdemont, que se entrar em Espanha é detido) e convocação de referendo sobre a independência da Catalunha (esta, uma exigência que Sánchez nunca poderá aceitar).
Há a possibilidade de Sánchez decidir sair. A ser assim fica desencadeado um terramoto político a abrir brechas ainda maiores na sociedade espanhola, com as esquerdas a acusarem as direitas de baixeza nos métodos com o fim de deslegitimar o adversário colocado como inimigo num quadro em que nenhum compromisso ou sequer diálogo é possível.
Se Sánchez escolher a demissão, as eleições antecipadas aparecem como o caminho quase inevitável. Nesse caso, sem Sánchez, a esquerda não tem líder que se imponha em modo óbvio para a encabeçar. As direitas (PP e Vox) que tudo têm feito para abater Sánchez e a coligação das esquerdas com nacionalistas e independentistas, ficam expostas à fogueira da discussão sobre os modos brutais de exercer oposição.
No centro destes por agora cinco dias de crise política está Begoña Gómez, casada com Pedro Sánchez. Na quarta-feira, El Confidencial, jornal digital alinhado com as direitas, publicou que o juiz Juan Carlos Peinado, da Audiência Provincial de Madrid (da 4aª secção do tribunal de instrução de Madrid) tinha aberto diligências de investigação sobre a prática de tráfico de influências e corrupção por parte da esposa do presidente do governo.
Essa investigação foi aberta pelo juiz na sequência de uma denúncia remetida por Miguel Bernad, personagem com passado franquista, agora secretário geral de “Manos Limpias”, uma organização que se apresenta como “sindicato de funcionários da administração pública”, na órbita da direita ultra. A denúncia, em sete páginas, junta o texto de oito publicações em canais digitais, onde se lê que Begoña Gomez, sendo diretora de um instituto da universidade Complutense de Madrid, que tem protocolo de cooperação com a Air Europa, teria influenciado para que o governo Sánchez fosse generoso na ajuda financeira aquela companhia de aviação na paralisação pela pandemia; noutra publicação é levantada a suspeita por Begoña ser subscritora de uma das 32 cartas de recomendação de um empresário numa candidatura a um concurso público.
Perante a notícia da investigação à mulher, nesse mesmo dia, após uma manhã de debate no parlamento, em que apareceu com expressão que evidenciava revolta, Sánchez foi ao encontro da mulher e, juntos – ao que se sabe, sem dar conhecimento ao núcleo político mais próximo ou a assessores – escreveu uma carta aberta à cidadania espanhola, na qual diz que “perante ataques à mulher, com base em factos inexistentes”, entende que precisa de “parar para refletir” sobre se, perante este quadro de pântano “merece a pena continuar à frente do governo”. Sánchez acrescenta que toma cinco dias para refletir. Fixou para esta segunda-feira, em conferência de imprensa, o anúncio do que tiver decidido.
A direita saltou a gritar que Sánchez está a exagerar a dramatização e a explorar a vitimização como manobra de marketing política.
Alguns comentadores admitiram que Sánchez queira mesmo deixar o governo e apontar para o futuro pessoal a presidência do Conselho Europeu, cargo para o qual está bem posicionado, sobretudo perante o impasse atual de António Costa.
À esquerda, há levantamento geral da cúpula e das bases do PSOE a reclamar a Sánchez que continue (“Não podemos deixar que os que querem o pântano e degradam a política possam ficar a ganhar” – uma das frases mais vibrantemente aplaudidas na manifestação de sábado frente á sede dos socialistas, em Madrid). Os nacionalistas bascos do PNV (centristas) e os independentistas catalães da ERC (esquerdista) declaram apoio a Sánchez e incitam-no a continuar e avançar com o plano de mudança política de Espanha – está em fundo, transferência de mais poder de Madrid para as diferentes regiões, ideias que as direitas rejeitam. A partir das esquerdas também muitos ataques à hiperativa “direita mediática que inventa histórias e de modo canalha envenena o debate político em Espanha”.
No meio desta alta tensão, o denunciante Miguel Bernad, apareceu a dizer que limitou a enviar para o juiz excertos do que tinha visto publicado. Acrescentou não ter provas da veracidade, por isso enviou ao juiz para que indague.
A Fiscalia (Procuradoria) fez investigação sumária sobre a matéria na queixa e requereu ao juiz o arquivamento do processo. Concluiu que o apoio estatal à Air Europa foi proporcional ao concedido a milhares de empresas durante o período de paralisação pela pandemia. A carta de recomendação assinada por Begoña Gómez é uma de 32, limitando-se a atestar factos.
A posição da Procuradoria, coincidente com a posição de Bernad a colocar-se como mero repetidor do que leu mas sem provas, levou a que na manhã de sábado, a meio do período de reflexão fixado por Sánchez, se instalasse entre os apoiantes das esquerdas, a convicção de que Sánchez iria decidir continuar, apostando no recurso à moção de confiança.
Mas, já neste domingo, percebeu-se em dirigentes socialistas mais próximos d Sánchez, preocupação por “não verem fácil que Sánchez se disponha a continuar”. O ministro dos Transportes, Óscar Puente, declara-se mesmo pessimista.
Há grande incerteza sobre o que vai acontecer na Espanha política a partir desta segunda-feira. Pode surgir um terramoto político, se Sánchez optar pela demissão. Há incerteza suplementar se Sánchez decidir apresentar uma moção de confiança, quando se sabe que entre os oito parceiros há quem, como o Junts, não seja 100% fiável.
Sánchez ao longo da carreira política tem mostrado ser um resistente. Até dentro do PSOE foi valente a desafiar os chamados barões que preferiam outra escolha para liderar o partido. Mostro sempre grande capacidade para encaixar vários golpes, alguns muito baixos. Surpreende que, perante este caso, dê sinais de fragilidade, a ponto d ter provocado este golpe de teatro com cinco dias com 48 milhões de espanhóis em espera.
Há um facto inquestionável: na Espanha dos últimos anos tornou-se impossível qualquer espécie de negociação para acordos e prática política construtiva. Impera o que um cientista político definiu no canal 24 da RTVE como “prática canalha de destruição do contrário”. Não se vê que esta crise possa melhorar o mau estado da convivência política em Espanha, com funda fratura entre direitas e esquerdas, entre a Espanha de Castela e a das periferias, sobretudo País Basco e Catalunha.
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